domingo, novembro 05, 2006

Insubmissão

Aquando duma conferência dos ministros chinês, russo e indiano dos Negócios Estrangeiros realizada em Vladivostoque, em 2 de Junho de 2005, Pequim e Moscovo assinaram a regulamentação do seu diferendo de fronteiras e Nova Deli confirmou os seus investimentos no petróleo russo – mil milhões de dólares destinados ao projecto chamado Sakalina I. Os três países apelaram à rejeição do princípio de “dois pesos e duas medidas” nas relações internacionais, fórmula que visa a administração Bush. Em Agosto de 2005, ante o protesto geral que suscitou no Congresso estadunidense a eventual aquisição da empresa petrolífera americana Unocal por uma empresa chinesa, a CNOOC Ltd., esta renunciou à sua proposta, rendendo-se assim a livre circulação dos capitais aos “imperativos de segurança”. Nesse mesmo mês, o Irão rejeitou as propostas de três países europeus (França, Alemanha e Reino Unido), apoiadas pelos Estados Unidos, que implicavam o abandono definitivo da sua actividade de enriquecimento de urânio, quando o tratado de não proliferação nuclear (TNP) lhe reconhece o direito a essa tecnologia. Em Teerão, onde se mantém viva ainda a memória das intervenções estrangeiras – desde a da Rússia, no século XIX, à da CIA em 1953 –, desfralda-se a bandeira da soberania.

Três acontecimentos entre outros: a multiplicação das viagens de dirigentes chineses a África e à América Latina; as tensões comerciais entre os Estados Unidos, a Europa e a China a propósito da indústria têxtil, dos aviões e da agricultura; o reconhecimento pela Coreia do Sul do direito que assiste a Pyongyang de dispor de uma indústria nuclear civil, em contradição com as posições de Washington. Se os ligarmos, estes factos dispersos esboçam os contornos duma geopolítica mundial muito mais complexa do que por vezes se imagina e que não se reduz à propagação impetuosa da globalização liberal. Por toda a parte persistem os nacionalismos, as culturas das sociedades, as ambições enraizados na história; são cada vez mais numerosos os que recusam submeter­‑se à ordem mundial.

Ao mesmo tempo, não se vê emergir nenhum “supra-imperialismo” capaz de pôr fim às rivalidades e à concorrência. Face a uns Estados Unidos que não hesitam, como no caso da Unocal, em proteger os seus interesses, vai-se afirmando, de Pequim a São Paulo, de Seul a Nova Deli, um patriotismo económico e político, a determinação de todos e cada qual com vista a defenderem a sua própria independência. Já em Setembro de 2003, em Cancun, vinte países do Sul, nomeadamente a Índia, o Brasil e a África do Sul, provocaram o revés da conferência da Organização Mundial do Comércio (OMC), não tendo as suas reivindicações sido satisfeitas. Em França, a oposição maciça a uma eventual aquisição da Danone pela PepsiCo tem por base a mesma lógica.

O «fim da história», como explicava Francis Fukuyama, anunciava o triunfo não só da globalização mas também do modelo liberal encarnado pelos Estados Unidos. Ora, desde há mais de uma década, estes mostram­‑se incapazes de conquistar “os corações e as mentes”. Em 1789, as ideias da Revolução Francesa espalharam­‑se pela Europa e por outras paragens; a Revolução Soviética, durante muito tempo, foi um desafio ao Ocidente, tanto ideológico como militar. Mas o apogeu da força militar dos Estados Unidos coincide com o ponto mais baixo da sua popularidade no mundo. A imagem de Washington no estrangeiro nunca foi tão negativa. «Até a da China é melhor», dizia um título do International Herald Tribune de 24 de Junho de 2005 [1].

É certo que nenhum grande país, no horizonte da próxima década, pode esperar rivalizar com os Estados Unidos como a União Soviética fez durante a segunda metade do século XX. Entretanto, potência militar sem equivalentes, a América continua apesar disso atolada no Iraque, afrontando a resistência de apenas alguns milhares de combatentes que obrigam à presença no terreno de 148.000 soldados americanos. E os escândalos de Guantánamo, de Abu Ghraib, a tortura, a progressiva eliminação das liberdades fundamentais, tudo isso são coisas que minam a pretensão que os Estados Unidos têm, e por vezes também a Europa (este duo a que se chama o Ocidente), de definir sozinhos os valores universais – direitos humanos, democracia, liberdades, etc. –, de proclamar o Bem e o Mal, de decretar qual é ou não é o regime aceitável, qual é ou não é passível de sanções.

Por todo o lado se recusa a sua tentativa de impor, nomeadamente através dos media, uma visão truncada do mundo, do direito e da moral. O êxito no mundo árabe dos canais televisivos via satélite, em particular a Al­‑Jazira, e o lançamento na América do Sul da Telesur, atestam esta insubmissão que se estende a todos os âmbitos, políticos, económicos e culturais. Ainda que por vezes uma tal recusa assuma as formas transviadas do extremismo religioso ou nacional e possa alimentar a ideia de um “choque das civilizações”.

No dealbar do século XVIII, a Europa tinha imposto a sua hegemonia às outras potências. A historiografia contemporânea mostra-nos que essa primazia resultou duma conjuntura singular, nomeadamente a vantagem obtida com a posse da América do Norte e com a economia do tráfico de escravos [2]. Essa hegemonia traduziu­‑se numa preponderância militar que tornou possível o Velho Continente submeter o resto do mundo ao jugo colonial. E a Europa procurou legitimar uma tal dominação com a pretensa superioridade milenar dos seus valores e do seu pensamento, em particular a filosofia grega [3], desprezando todas as outras culturas, consideradas “bárbaras” ou “inferiores”. Ora, presentemente, os Estados Unidos, e por vezes a Europa, parecem voltar a adoptar esses preconceitos de outras eras. Deverão porém lembrar-se que os impérios coloniais, mais “avançados”, mais “desenvolvidos”, acabaram por desaparecer...

[1] Brian Knowlton, The U.S. image abroad: Even China’s is better, International Herald Tribune, 24/06/2005.
[2] Ler, nomeadamente, Christopher Alan Bayly, The Birth of the Modern World. 1780-1914, Blackwell, Oxford, 2004, e Kenneth Pomeranz, The Great Divergence. China, Europe, and the Making of the Modern World Economy, Princeton University Press, 2000.
[3] Sobre o carácter exorbitante de semelhante visão, ler Marcel Detienne, Les Grecs et nous, Perrin, Paris, 2005.
Alain Gresh
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/mundo/mundo192.htm

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