NUMA trapalhada de notícias indirectas e desmentidos confusos das autoridades, ficou-se a saber, na semana passada, que o Ministério da Educação (ME), pelo menos pensou em acabar com as «pausas» lectivas do Natal, do Carnaval e da Páscoa dos professores; além de que estes seriam obrigados a dar oito horas de docência por dia, para além das horas de reuniões, substituição de professores, etc. Que os desmentidos do ME anulem o «anúncio» daquelas decisões (fazendo tudo isto parte, talvez, das técnicas de propaganda do Governo) nada tira ao escândalo que é o poder-se ter pensado em tais medidas (e isto é indesmentível). Devo dizer que fiquei siderado ao ler o primeiro cabeçalho do «Público», que as publicava.
Jamais, assim, a política educativa do Governo criaria as condições para a transformação profunda do ensino de que o país tanto precisa. Porque essas medidas supõem que se trata a escola como uma empresa, e que a preocupação em reconciliar o seu funcionamento obedece a critérios puramente econo-micistas e estatísticos. Menos oito mil professores o ano passado, menos cinco mil este ano — «uma boa gestão», como diz um secretário de Estado.
Mas gerir uma escola não é gerir uma empresa, e a racionalização do ensino tem de ter em conta um parâmetro «imaterial» — o desejo de aprender e conhecer que, inerente ao desenvolvimento da criança, deveria ser expandido, diversificado e intensificado no básico e no secundário. Este «dado» — muitas vezes esquecido pelas teorias cognitivistas da aprendizagem — implica que se olhe para a relação mestre-aluno com um cuidado especial. Não se pode tratar o professor como um produtor comum de bens materiais.
Significa isto que se deve também pensar atentamente no papel e na acção do professor, quando se concebem planos de transformação da sua docência. O que o professor dá de si, — o investimento da sua disponibilidade, o seu prazer em ensinar, o seu trabalho de preparação das lições, o clima afectivo da aula, o laço que se estabelece entre ele e a turma — são factores decisivos da aprendizagem (para além das suas competências pedagó-gico-científicas) e implicam uma longa elaboração da sua experiência de docente, da sua inventividade, da sua autenticidade enquanto professor. E tudo isso requer tempo para si próprio e lazer (trabalha-se consciente e inconscientemente, mesmo no ócio). Um segundo factor marca a singularidade do trabalho do professor: o seu desgaste «psicológico». O investimento na docência convoca forças de toda a ordem, os dons, a capacidade de se autocontrolar e de controlar, a plasticidade para se adaptar a, e lidar com cada aluno em particular, o equilíbrio incessante entre o papel de docente e o de educador, o constante brio que exige de si (o terrível superego do professor que o força a ter a melhor imagem de
si para estar em paz consigo mesmo), a responsabilidade que assume pelo aproveitamento dos alunos, etc. Ele não investe uma ou duas «competências», investe na aula a sua existência inteira.
Para obter bons resultados, boas estatísticas, boas médias, é preciso ter bons professores. Para os ter, tem de se considerar a especificidade do seu trabalho.
Não é atafulhando o seu tempo com oito horas diárias, nem cortando as «pausas» — de que precisa como de pão para a boca — que se formarão docentes «competentes». Parece haver uma preocupação obsessiva com a quantidade (em todos os domínios) no ME, que o torna cego às virtudes da qualidade. Que os responsáveis pela educação do nosso país possam ter pensado em esmagar assim os professores é sinal de que qualquer coisa de incompreensivelmente absurdo se está a passar nas suas cabecas.
José Gil
Nascido em Muecate, Moçambique, em 1939, é filósofo e ensaísta. Estudou em França, nomeadamente com Gilles Deleuze. Professor de Filosofia na Universidade Nova
de Lisboa e no Colégio International de Filosofia de Paris, publica, desde 1983, obras sobre temas variados, que vão das metamorfoses do corpo ao poeta Fernando Pessoa, passando por Salazar. Em 2004, obteve um grande êxito com «Portugal, hoje: o medo de existir» (Relógio D'Ãgua Editores).
Retirado de: Courrier Internacional nº 83, p.8, 3 a 9 de Novembro de 2006.
Jamais, assim, a política educativa do Governo criaria as condições para a transformação profunda do ensino de que o país tanto precisa. Porque essas medidas supõem que se trata a escola como uma empresa, e que a preocupação em reconciliar o seu funcionamento obedece a critérios puramente econo-micistas e estatísticos. Menos oito mil professores o ano passado, menos cinco mil este ano — «uma boa gestão», como diz um secretário de Estado.
Mas gerir uma escola não é gerir uma empresa, e a racionalização do ensino tem de ter em conta um parâmetro «imaterial» — o desejo de aprender e conhecer que, inerente ao desenvolvimento da criança, deveria ser expandido, diversificado e intensificado no básico e no secundário. Este «dado» — muitas vezes esquecido pelas teorias cognitivistas da aprendizagem — implica que se olhe para a relação mestre-aluno com um cuidado especial. Não se pode tratar o professor como um produtor comum de bens materiais.
Significa isto que se deve também pensar atentamente no papel e na acção do professor, quando se concebem planos de transformação da sua docência. O que o professor dá de si, — o investimento da sua disponibilidade, o seu prazer em ensinar, o seu trabalho de preparação das lições, o clima afectivo da aula, o laço que se estabelece entre ele e a turma — são factores decisivos da aprendizagem (para além das suas competências pedagó-gico-científicas) e implicam uma longa elaboração da sua experiência de docente, da sua inventividade, da sua autenticidade enquanto professor. E tudo isso requer tempo para si próprio e lazer (trabalha-se consciente e inconscientemente, mesmo no ócio). Um segundo factor marca a singularidade do trabalho do professor: o seu desgaste «psicológico». O investimento na docência convoca forças de toda a ordem, os dons, a capacidade de se autocontrolar e de controlar, a plasticidade para se adaptar a, e lidar com cada aluno em particular, o equilíbrio incessante entre o papel de docente e o de educador, o constante brio que exige de si (o terrível superego do professor que o força a ter a melhor imagem de
si para estar em paz consigo mesmo), a responsabilidade que assume pelo aproveitamento dos alunos, etc. Ele não investe uma ou duas «competências», investe na aula a sua existência inteira.
Para obter bons resultados, boas estatísticas, boas médias, é preciso ter bons professores. Para os ter, tem de se considerar a especificidade do seu trabalho.
Não é atafulhando o seu tempo com oito horas diárias, nem cortando as «pausas» — de que precisa como de pão para a boca — que se formarão docentes «competentes». Parece haver uma preocupação obsessiva com a quantidade (em todos os domínios) no ME, que o torna cego às virtudes da qualidade. Que os responsáveis pela educação do nosso país possam ter pensado em esmagar assim os professores é sinal de que qualquer coisa de incompreensivelmente absurdo se está a passar nas suas cabecas.
José Gil
Nascido em Muecate, Moçambique, em 1939, é filósofo e ensaísta. Estudou em França, nomeadamente com Gilles Deleuze. Professor de Filosofia na Universidade Nova
de Lisboa e no Colégio International de Filosofia de Paris, publica, desde 1983, obras sobre temas variados, que vão das metamorfoses do corpo ao poeta Fernando Pessoa, passando por Salazar. Em 2004, obteve um grande êxito com «Portugal, hoje: o medo de existir» (Relógio D'Ãgua Editores).
Retirado de: Courrier Internacional nº 83, p.8, 3 a 9 de Novembro de 2006.
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