domingo, dezembro 03, 2006

O novo Japão

O Nordeste Asiático, muito abalado pelo ensaio nuclear efectuado em 9 de Outubro pela Coreia do Norte, ficou igualmente inquieto, uns dias antes, a 26 de Setembro, com a entrada em funções no Japão de um novo primeiro­‑ministro, Shinzo Abe. Oriundo, como o seu antecessor Junichiro Koizumi, do Partido Liberal Democrata (PLD), que desde 1955 domina a vida política no País do Sol Nascente, Shinzo Abe, de 52 anos, é o mais jovem primeiro-ministro nipónico desde 1945. Mas nem por isso deixa de ser visto pela esquerda japonesa como um político ultraliberal, extremamente conservador e nacionalista. Os seus adversários na região classificam­‑no mesmo como um “falcão”.

Filho dum antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, Shinzo Abe faz parte duma grande dinastia da direita japonesa, com um passado particularmente inquietante [1] de que ele não se distanciou. Seu avô, Nobusuke Kishi, foi ministro no governo de guerra do general Tojo, que lançou o ataque contra Pearl Harbor. Detido em 1945 e encarcerado como suspeito por crimes de guerra, Kishi acabou por não ser julgado pelo Tribunal Militar de Tóquio (equivalente, no tocante aos grandes criminosos de guerra japoneses, ao Tribunal de Nuremberga, onde foram julgados os dirigentes nazis), porque os norte-americanos, com a Guerra Fria já encetada, queriam reconstruir uma direita japonesa. Kishi foi portanto um dos seus homens. Libertado em 1948 e nomeado duas vezes primeiro-ministro, em 1957 e 1958, assinou um novo tratado de segurança mútua com os Estados Unidos.

Um tio-avô de Shinzo Abe, Yosuke Matsuoka, ministro dos Negócios Estrangeiros, defendeu o expansionismo nipónico na Ásia, levando o Japão, em 1940, a aderir ao Eixo, a aliança formada pela Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini. Também ele acusado de crimes de guerra, morreu na prisão antes de ser julgado.

Num país que não pediu oficialmente perdão pelos crimes de guerra que cometeu, Shinzo Abe nunca renegou verdadeiramente esse passado familiar. Pelo contrário, ao denunciar os que têm uma visão «masoquista» da história do Japão, minimiza as responsabilidades do seu país. Abe costumava ir regularmente ao santuário de Yasukuni, onde são venerados os militares «que deram a vida pelo Japão», entre os quais catorze criminosos de guerra (e o seu tio-avô Yosuke Matsuoka). O mesmo fazia Koizumi, coisa que levou Pequim e Seul, como se recorda, a não mais o receberem, acusando-o de «revisionismo» e de «pretender glorificar o passado militar do Japão».

Oriundo do clã mais direitista do PLD, Shinzo Abe edificou a sua carreira política clamando contra a situação dos sobreviventes japoneses que haviam sido sequestrados, no tempo de Kim Il-Sung, por agentes norte­‑coreanos nas praias nipónicas. Tornou-se popular reclamando cada vez mais firmeza e sanções contra a Coreia do Norte, de resto com alguma demagogia (porque restaria apenas um caso em litígio), e lisonjeando os sentimentos racistas anticoreanos propalados por muitos media. No passado dia 19 de Setembro voltou a exigir e conseguiu novas sanções contra Pyongyang, após os ensaios balísticos norte-coreanos de 5 de Julho [2]. E anunciou, com o pretexto da «ameaça norte-coreana», a sua intenção de modificar, através dum referendo, o artigo 9º da Constituição pacifista [3], para que as forças de autodefesa do Japão se transformem em verdadeiras forças armadas, sem as limitações exigidas em 1945 pelos vencedores [4]. Essa intenção é actualmente encorajada, em Washington, pelo círculo do presidente George W. Bush, que deseja ter no Nordeste Asiático um aliado militarmente poderoso para conter a China.

Tudo isto faz temer um rearmamento do Japão, que já dispõe do segundo mais importante orçamento militar mundial, logo a seguir ao dos Estados Unidos, e poderá acelerar a corrida aos armamentos já encetada numa das regiões mais perigosas do planeta. Como a maioria dos japoneses continua a mostrar-se hostil a semelhante perspectiva, Shinzo Abe teve aliás de precisar, no passado dia 10 de Outubro, que o seu país – protegido pelo guarda-chuva nuclear norte-americano – não encarava a possibilidade de vir a apetrechar­‑se com armas nucleares [5]. Na prática, porém, Tóquio dispõe, pelo menos, de 43,8 toneladas de plutónio, produzidas pelos seus reactores civis, e poderá fabricar um engenho nuclear em poucos meses...

Foi sem dúvida para assinalar a que ponto o novo primeiro­‑ministro japonês constitui, a seu ver, um perigo, que a Coreia do Norte procedeu ao seu condenável ensaio nuclear, no próprio dia, 9 de Outubro, em que Shinzo Abe chegou a Seul, à península coreana. Foi uma mensagem de advertência irresponsável, recebida pelo mundo inteiro com inquietação, mas essa mensagem veio confirmar que as tensões não deverão diminuir no Nordeste Asiático, a não ser que as teses nacionalistas do novo primeiro-ministro japonês sejam objecto de uma (improvável) modificação.

[1] Philippe Pons, “Shinzo Abe, ‘prince’ de la droite”, Le Monde, 21 de Setembro de 2006.
[2] Ignacio Ramonet, Tensões na Coreia, Le Monde diplomatique, Outubro de 2006.
[3] Este artigo estipula que o Japão «renuncia para sempre à guerra, abole as suas forças armadas e compromete­‑se a nunca mais as restabelecer».
[4] Ichiyo Muto, Revise the peace constitution, restore glory to empire!, Japonesia Review, n.º 1, Tóquio, Janeiro de 2006.
[5] El País, Madrid, 11 de Outubro de 2006.
Ignacio Ramonet
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/autores/ramonet/ramonet099.htm

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