domingo, dezembro 03, 2006

Por que não teve o Azerbaijão a sua “revolução”?

Depois da Sérvia, da Geórgia e da Ucrânia, pensar-se-ia que o Azerbaijão conheceria uma “revolução colorida”. Mas não foi asshn, tendo o escrutínio legislativo de Novembro de 2005 sido vencido pelos partidários de Ilham Aliev, filho do ex-presidente Gaidar Aliev. Repressão, nacionalismo e maná petrolífero explicam a perpetuação de um poder quase dinástico. E o perigo de um novo conflito com a vizinha Arménia.

Tal como os azeris, os observadores internacionais subestimaram o presidente Ilham Aliev. Em Novembro, embora tivesse sido escolhido para suceder a seu pai, Gaidar Aliev, revelava seguramente falta de experiência política e muitos comentadores punham em dúvida a sua capacidade para dirigir o Azerbaijão e manter a recente estabilidade do país. No entanto, após ter sido eleito para a presidência, em 2003, e depois da vitória dos seus seguidores no Milli Mejlis (Parlamento nacional), em Novembro de 2005, Ilham Aliev afirmou-se como o dirigente incontestado do país.

De 125 lugares, apenas 11 foram ganhos pelos partidos da oposição, pertencendo os outros ao Yeni Azerbaydjan (Novo Azerbaijão), o partido dirigente, e a representantes “independentes” considerados próximos do regime. A oposição e os observadores internacionais bem falaram de escândalo, mas o Yeni, com a bênção dos observadores da Comunidade dos Estados Independentes (CEI) [1], tem o aparelho de Estado nas mãos. Por conseguinte, os protestos contra as irregularidades que mancharam as eleições terão pouco efeito.

As revoluções pacíficas democráticas subsequentes a eleições contestadas nos vizinhos Estados da Geórgia, da Ucrânia e do Quirguizistão fizeram temer acontecimentos dramáticos noutras repúblicas ex-soviéticas por ocasião de actos eleitorais. Mas Aliev estava convicto de que o regime não se encontrava ameaçado. A um jornalista que lhe perguntou se seria possível uma revolução no Azerbaijão, respondeu: «Nem pensar!» Acrescentando depois: «Cada nação tem a sua própria história.» [2]

A história do Estado azeri moderno está ligada à da família Aliev, que desde há trinta e seis anos tem moldado a política do país. O reinado dos Aliev começou com Gaidar, antigo oficial do KGB que em 1969 acedeu ao lugar de primeiro secretário do Partido Comunista Azeri e em 1982 entrou no Politburo soviético. Teve de se aposentar à força, em 1987, com Mikhail Gorbatchov, no contexto da Perestroika e da tentativa de reformar a administração brejneviana, profundamente corrupta, das repúblicas soviéticas. Mas essas reformas causaram instabilidade, e ao mesmo tempo deflagrou um conflito territorial com a vizinha Arménia, a respeito do Alto Karabakh, e uma rude luta pelo poder opôs em Bacu a nomenklatura local à Frente Popular do Azerbaijão (FPA), então no seu período ascensional.

O TEMA DA ESTABILIDADE

A actual fraqueza da oposição resulta em grande medida do período de 1992-1993 em que a FPA ficou no poder, sob a direcção do antigo dissidente Abulfaz Eltchibey, período esse marcado por uma recessão económica, uma má gestão e um desemprego maciço. Na política estrangeira, a nova equipa privilegiou Ancara em detrimento de Moscovo; as suas declarações sobre a unificação do Azerbaijão com o “Azerbaijão do Sul” (actualmente iraniano) causaram grande sobressalto em Teerão [3]. Por outro lado, o conflito do Alto Karabakh intensificou-se. Após uma série de vitórias e a ocupação de uma quarta parte da zona setentrional desta região, as forças azeris foram derrotadas. O caos que então se registou não atingiu apenas a frente de combate, chegando também a Bacu.

Foi nessas condições que Gaidar Aliev voltou a dominar politicamente esta república. Depois de lançar uma campanha maciça nas frentes da guerra do Karabakh, acabou por assinar, em Maio de 1994, um cessar­‑fogo, ainda hoje em vigor. Em seguida reprimiu os diversos grupos armados que se tinham formado durante a guerra, montando assim uma polícia musculada, que continua a ser um dos pilares do Estado. Por último, assinou em Setembro desse mesmo ano, com um consórcio dirigido pela British Petroleum, um contrato de exploração petrolífera de 8 mil milhões de dólares que é considerado o “contrato do século”. Os principais fundamentos do Estado azeri confinuam a ser o statu quo no Karabakh, o Estado policial e o maná petrolífero que unifica a elite dirigente.

Desde a sua morte, em 2003, a personalidade de Gaidar Aliev passou a ser objecto de um crescente culto. Os seus retratos, ao lado do jovem presidente, proliferam. Discursos e textos referem-no como o fundador do Azerbaijão moderno. Quando um grupo de académicos que estava a trabalhar na redacção da enciclopédia nacional azeri cometeu o «erro» de descrever a década de 1970 como um período de «estagnação» e corrupção, foi chamado ao gabinete de Ilham Aliev, que lhe fez uma severa reprimenda e o intimou a proceder a uma revisão do texto [4].

Tadeusz Swietochowski, eminente especialista da história do Azerbaijão moderno, não vê nada de surpreendente na emergência duma dinastia dirigente, a primeira do género num país ex-soviético. Por um lado, conforme explica, o tema da «estabilidade», cara ao pai e ao filho, «sensibiliza muitas pessoas na sociedade azeri»; por outro lado, Ilham Aliev «herdou uma base política importante sob a forma do partido dirigente, o Yeni. De resto, a vida política é acima de tudo caracterizada pelo importante papel desempenhado pela família, as origens regionais e as ligações clânicas». A família Aliev e outras relevantes figuras do Estado são originárias do Nakhitchevan ou nasceram na Arménia, sendo aliás chamados o “clã de Nakhitchevan”. «O facto de na sua acção política Ilham Aliev nada poder inscrever no capítulo do período soviético pode ser considerado uma vantagem para ele, mesmo relativamente a alguns dirigentes da oposição conhecidos como “os dissidentes soviéticos”».

Quando o estado de saúde de Gaidar Aliev piorou, a elite dirigente escolheu o filho dele como sucessor [5]. Na eleição presidencial de Outubro de 2003, em que Ilham Aliev venceu o candidato da oposição, Issa Gambar, tudo aconteceu como se já estivesse feito. A Organização de Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) bem pôde contestar a regularidade do escrutínio e a oposição bem pôde encetar umas tímidas acções, porque a polícia logo reprimiu as manifestações e prendeu os activistas, evidenciando assim que o novo presidente tinha o apoio da elite dirigente e do seu aparelho repressivo.

Com falta de experiência, Ilham Aliev pôde todavia contar com os poderosos conselheiros de seu pai, que mutuamente se dilaceravam em lutas pelo poder. Ao mesmo tempo que as “revoluções coloridas” alastravam nos países ex-soviéticos, nada permitia dizer se certas facções da elite dirigente iam passar para a oposição.

Uma série de acontecimentos isolou esta oposição, provocando uma atmosfera de medo e incerteza. Primeiro, em Março de 2005, foi o assassinato de Elmar Huseynov, brilhante jornalista e crítico feroz do regime. Depois rebentou um escândalo à volta de Ruslan Bashirli, responsável de um movimento de jovens, que uns vídeos dados a público pelo governo pretendiam mostrar recebendo dinheiro de oficiais dos serviços secretos arménios e que o regime acusou de ter o apoio do National Democratic Institute for International Affairs de Washington para fomentar uma revolução no Azerbaijão. Por fim, foram presas várias personalidades suspeitas de prepararem um golpe de Estado, entre as quais o ministro do Desenvolvimento Económico, Farhad Aliev, e foram destituídos o ministro da Saúde Ali Insanov, um dos fundadores do partido dirigente, e o chefe da administração da presidência, Akif Muradverdiev, entre outros responsáveis impopulares, com o provável objectivo de o regime voltar a conquistar a confiança da opinião pública azeri [6].

A estes trunfos – a fraqueza da oposição e a lealdade do aparelho de Estado –, Aliev pode acrescentar o de um maná petrolífero em pleno crescimento. Após uma década de promessas e a inauguração em Maio de 2005 do oleoduto Bacu-Tbilissi-Ceyhan, o petróleo azeri aflui aos mercados mundiais. Foram precisos seis meses para encher este oleoduto de 1770 quilómetros, cuja construção custou 4 mil milhões de dólares e que em 2008 deverá escoar o correspondente a um milhão de barris por dia. Com base em 45 dólares por barril (no final de 2005 o barril já valia 60 dólares), os rendimentos petrolíferos do país poderão atingir os 160 mil milhões de dólares em 2030, um montante enorme se pensarmos que o orçamento do Azerbaijão foi de 2 mil milhões de dólares em 2005 [7].

Estará o país em condições de receber um tal afluxo de divisas? Não está, responde Thierry Coville, investigador associado do Centro Nacional de Investigação Científica (CNRS, França), especialista da gestão das economias baseadas nos hidrocarbonetos. «Antes de mais nada, o principal problema que se põe às economias petrolíferas é conseguirem edificar uma economia paralela, não baseada nos hidrocarbonetos, e poderem depois utilizar os rendimentos do petróleo para desenvolver as infra-estruturas e o sector social. Mas, num país onde não há transparência, a tendência será para aplicar o maná do petróleo no clientelismo».

No fim do século XIX, Bacu era uma importante cidade petrolífera. Em 1900, só esta cidade produzia metade dos hidrocarbonetos do mundo. O futuro da dinastia Aliev e o futuro do país dependem da maneira como os rendimentos do petróleo forem geridos. Os peritos já começaram a fazer advertências contra o “síndroma neerlandês” que atinge uma economia excessivamente dependente da produção petrolífera, levando-a a ter uma divisa nacional forte quando os outros sectores não são rentáveis e se mostram difíceis de desenvolver. Actualmente, o petróleo representa 80 por cento das exportações azeris [8]. Durante a sua campanha eleitoral, Ilham Aliev prometeu criar 200.000 empregos, lutar contra a corrupção e reduzir a pobreza [9].

ORGULHO NACIONAL FERIDO

Surge também o perigo de uma nova guerra, financiada pelos rendimentos do petróleo, para o Azerbaijão se reapoderar do Karabakh. Depois das tentativas de negociação de um acordo de paz durante o governo de Gaidar Aliev, Bacu volta a reivindicar o princípio da integridade territorial do país. Os arménios do Karabakh, apoiados por Ierevan, querem a autodeterminação. Os dois países vizinhos não têm, a bem dizer, contactos nenhuns, afora encontros periódicos entre os respectivos ministros dos Negócios Estrangeiros.

Bacu receia que a recente evolução dos acontecimentos no Kosovo, em particular o apoio da “comunidade internacional” à independência do Kosovo, crie um precedente na resolução dos conflitos étnico-territoriais. As autoridades azeris já avisaram que recorrerão a uma solução armada se os meios diplomáticos se mostrarem insatisfatórios. As despesas militares do país pularam de 175 milhões de dólares em 2004 para 300 milhões no ano seguinte. E ainda há pouco o presidente comprometeu-se a duplicar este orçamento em 2006, significando isso que passaria a equivaler ao orçamento total da Arménia [10]...

A transferência para Gumri, na Arménia, de equipamentos militares russos instalados nas antigas bases soviéticas da Geórgia inquieta as autoridades azeris. Após a retirada dos americanos das suas bases no Uzbequistão, alguns rumores têm aludido a conversações entre Washington e Bacu com vista à instalação no Azerbaijão de um ponto de apoio para as operações do exército norte-americano na Ásia Central [11]. Irá o petróleo alimentar uma corrida aos armamentos no Cáucaso? No Azerbaijão e na Arménia, as opiniões públicas divergem radicalmente. A maioria dos arménios pensa que o conflito terminou, que restabeleceram uma justiça histórica, ao passo que para os azeris o Karabakh simboliza um orgulho nacional ferido que impõe satisfações.

Deste modo, um segundo boom petrolífero está de novo a abalar o Azerbaijão. No início da década de 1990, centenas de milhares de azeris emigraram para a Rússia por motivos económicos; actualmente, o fluxo migratório, que é interno, ruma das províncias em declínio para a capital, desfazendo o tecido social do país. Segundo algumas estimativas, metade da população azeri estará hoje a viver em Bacu e suas periferias. Simultaneamente, o país encontra-se em plena transformação geopolítica, apanhado entre relações difíceis com a Arménia e uma aliança com a Geórgia “revolucionária”, entre a Turquia e o Irão, entre as ambições militares norte­‑americanas e os esforços da Rússia para preservar a sua influência. Os rendimentos petrolíferos vão consolidar a unidade da elite. Mas irão eles favorecer também reformas que a longo prazo se traduzam numa mudança social? É muito pouco seguro.
[1] A CEI reúne doze ex-repúblicas soviéticas.
[2] Aida Sultanova, “Azerbaijan’s discontent unlikely to swell”, Associated Press, Bacu, 29 de Junho de 2005.
[3] O “Azerbaijão do Sul” é constituído por três províncias situadas a noroeste do Irão, onde a cidade principal é Tabriz e onde a população de língua azeri está avaliada em 12 milhões de pessoas.
[4] O relato dessa entrevista encontra-se no sítio Day.az, 9 de Abril de 2004: http://day.az/news/politics/6292.htlm.
[5] Vicken Cheterian, Succession ouverte en Azerbaïdjan, Le Monde diplomatique, Outubro de 1999.
[6] Nick Paton Walsh, “Azerbaijan ministers accused of coup plot”, The Guardian, 21 de Outubro de 2005.
[7] Shahin Abbasov e Khadija Ismailova, Pipeline opening helps spur political opposition in Azerbaijan, Eurasianet, 6 de Junho de 2005.
[8] “The oil satrap: Face Value”, The Economist, Londres, 11 de Junho de 2005.
[9] Na campanha eleitoral, Aliev declarou o seguinte: «Nos dois últimos anos, o nível de pobreza no Azerbaijão passou de 49 para 40,2 por cento» (Tass, Bacu, 12 de Maio de 2005).
[10] Azer Tag, Bacu, 20 de Dezembro de 2005.
[11] Le Monde, 5 de Novembro de 2005.
Vicken Cheterian
Le Monde diplomatique

http://www.infoalternativa.org/europa/e062.htm

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