sábado, janeiro 13, 2007

As máscaras africanas de Tony Blair

Reagindo ao afluxo de emigrantes aos enclaves espanhóis de Ceuta e Melilla, em Marrocos, a Comissão Europeia propôs uma “Estratégia para África”. O plano inscreve-se numa longa série de iniciativas, entre as quais a da comissão ad hoc presidida por Tony Blair em 2005. No entanto, as medidas avançadas pelo primeiro­‑ministro britânico, retomadas pelo G8 em Julho passado, não dão qualquer indicação de mudança ao nível da orientação económica.

Fazer com que a pobreza seja uma coisa do passado em África, tudo graças a um «plano Marshall moderno»: eis a ambição declarada pela Cimeira do G8, que teve lugar em Gleneagles (Escócia), entre 6 e 8 de Julho de 2005. Nada foi deixado ao acaso no sentido de encenar este propósito. O primeiro-ministro britânico, Tony Blair, anfitrião da Cimeira, recorreu inclusive ao serviço dos músicos Bob Geldof e Bono para organizar gigantescos concertos de sensibilização.

Uma campanha desta magnitude não é novidade: após o lançamento da Nova Parceria para o Desenvolvimento de África (NEPAD) [1], em 2001, floresceram discursos similares. Mais ainda, os países do G8 já tinham adoptado um plano de acção para África na Cimeira de Kananaskis (Canadá), em 2002, plano que continuou praticamente a ser letra morta. Apesar das aparências, a iniciativa de Gleneagles não deixa de ser muito ortodoxa e a multiplicação deste tipo de operações traduz sobretudo a vontade dos países do Norte de continuarem a ditar os termos em que se desenrola o debate sobre o desenvolvimento, mesmo diante do fracasso patente das suas prescrições [2].

De há muitos anos a esta parte, Blair apresenta-se como um campeão da “luta contra a pobreza” em África. Foi neste espírito que ele pôs de pé, em 2004, uma Comissão para África, cujo relatório, entregue em Fevereiro de 2005 com o título “O Nosso Interesse Comum”, serviu de base aos trabalhos do G8 [3]. Presidida pelo primeiro­‑ministro britânico, esta comissão integra dezassete personalidades, entre as quais o antigo director­‑geral do Fundo Monetário Internacional (FMI) Michel Camdessus, o presidente tanzaniano Benjamin Mkapa, o ministro sul­‑africano das Finanças Trevor Manuel, o primeiro-ministro etíope Meles Zenawi e... Bob Geldof.

Após algumas frases anódinas – do tipo «A pobreza e a estagnação de África são as maiores tragédias do nosso tempo» –, o relatório da Comissão pretende explicar a miséria do continente com um conjunto «complexo» de factores políticos, estruturais, ecológicos e humanos. Mas apresenta a geografia e a má governação como os factores decisivos. Todos os outros – conflitos, dependência em relação a produtos básicos, escassa produtividade agrícola, degradação dos sistemas educativos e sanitários, peso da dívida externa, fuga de capitais, deterioração da competitividade comercial, êxodo de cérebros, etc. – desempenhariam apenas um papel secundário.

Esta análise retoma as banalidades habituais formuladas pelos “especialistas” ocidentais, pelos seus apoios africanos e pelas instituições multilaterais. Ela minimiza sobretudo os factores externos: é assim que o papel das circunstâncias internacionais (deterioração da competitividade comercial e fuga de capitais) acaba por ser analisado de forma técnica e parcial. Não é feita uma única menção às relações de poder que caracterizam as relações internacionais e que explicam a dominação dos países do Norte sobre as instituições multilaterais coordenadoras.

O relatório ignora particularmente o papel desempenhado pelos programas de ajustamento estrutural do Banco Mundial e do FMI na degradação económica e social do continente [4]. Quase não menciona a herança colonial, apesar do seu impacte na “balcanização” do continente. E atribui inteiramente a «má governança» aos africanos, o que permite escamotear as consequências do sistema neocolonial posto em prática após as independências.

Por outro lado, a crítica da origem da dívida externa revela uma ligeira inflexão do discurso. Com efeito, o relatório reconhece que «a dívida foi essencialmente contraída por ditadores que enriqueceram graças ao petróleo, aos diamantes e aos outros recursos dos seus países e que, durante a Guerra Fria, beneficiaram do apoio dos países que exigem hoje o pagamento da dívida. Muitos desses dirigentes pilharam milhares de milhões de dólares... servindo-se dos sistemas financeiros dos países desenvolvidos».

Para remediar o empobrecimento do continente, o relatório formula cinco recomendações clássicas: a instauração da “boa governança”, o restabelecimento da paz e da segurança, o desenvolvimento dos recursos humanos, a aceleração do crescimento económico e o desenvolvimento das exportações. Com este fim, preconiza uma duplicação da ajuda anual de forma a que esta atinja o valor de 25 mil milhões de dólares até 2010. Um balanço será feito nessa data e, caso se venha a revelar satisfatório, uma segunda fatia anual de 25 mil milhões de dólares seria eventualmente acordada, para o período que vai de 2011 a 2015.

EXPLORAR OUTRAS VIAS

Entretanto, na ausência de mudanças fundamentais na concepção e na aplicação da ajuda, a eficácia desta medida parece duvidosa. Segundo a associação britânica Action Aid, os países “doadores” recuperam, sob a forma de compra de bens ou de reembolso de empréstimos, 90 por cento da ajuda concedida. Além disso, esta última serviu e continua a servir – como demonstram diversos estudos e relatórios – os interesses económicos, políticos e estratégicos dos países doadores [6]. Por fim, a maioria dos condicionalismos associados a este apoio (liberalização da economia, inserção na globalização ... ) tendem a anular qualquer potencial benefício, o que aliás é reconhecido pela Comissão Blair.

O Reino Unido sugere que este aumento da ajuda seja financiado através de somas obtidas nos mercados financeiros graças à aplicação do Financiamento Internacional Facilitado (FIF). Cada país contribuinte comprometer-se-ia a entregar, durante quinze anos, um certo montante ao FIF em troca de compromissos económicos reforçados por parte dos países beneficiários. Os fluxos financeiros de ajuda ao desenvolvimento seriam desta forma previsíveis e estáveis. E o FIF poderia levantar imediatamente essa ajuda nos mercados internacionais de capitais com vista a desembolsá-la em favor dos Estados pobres. Acontece que este mecanismo reforça os condicionalismos económicos que pesam sobre os países do Sul. E, ao concentrar-se no desenvolvimento, o FIF deixa para segundo plano a reforma do sistema comercial ou a criação dos bens públicos globais [7]. O Reino Unido propõe a exploração de outras vias, tais como a instauração de taxas sobre os transportes, sugerida pela França.

Além do aumento da ajuda, o G8 preconiza também a anulação de 100 por cento da dívida de certos Estados, no quadro da Iniciativa a Favor dos Países Pobres muito Endividados. Mas esta anulação não abrange mais do que dezoito países dos sessenta e dois apontados pelas Nações Unidas no quadro dos Objectivos do Milénio para o Desenvolvimento (OMD), e estende-se por quarenta anos. É por isso que, como sugere a Eurodad, uma coligação de associações europeias de luta contra a pobreza, sediada em Bruxelas, o valor real das anulações chegaria aos 17 mil milhões, e não aos 40 mil milhões [8]. Além disso, a cada dólar de dívida anulada corresponde um dólar de ajuda a menos. A decisão do G8 parece por isso claramente insuficiente no que diz respeito aos Objectivos do Milénio [9].

Mas a condição principal de anulação da dívida externa é a aceleração de políticas de liberalização e de privatização. O essencial dos recursos a favor do desenvolvimento é suposto chegar do sector privado – daí o destaque posto na “boa governança”, que deve criar condições favoráveis aos investimentos estrangeiros. Retomando uma das recomendações da Comissão Blair, o G8 sublinha que «a iniciativa privada é o principal motor do crescimento e do desenvolvimento». Nem uma palavra sobre o papel do Estado na redistribuição da riqueza, no acesso aos bens e serviços de primeira necessidade, como a água e a electricidade, ou sobre a luta contra as desigualdades.

Nesta óptica, os países africanos devem liberalizar mais as suas políticas comerciais, apoiando-se no G8, no Banco Mundial e no FMI para criarem «a capacidade física, humana e institucional necessária ao comércio, compreendendo as medidas de facilitação» deste último. Estas prescrições fazem lembrar as que foram fixadas nos últimos vinte e cinco anos pelas instituições multilaterais e pelos investidores, cujo custo social e económico foi avaliado como sendo extremamente elevado pela Christian Aid (perda de empregos, ruína das pequenas empresas, etc.); assim, desde 1985, a liberalização do comércio teria feito com que os países africanos perdessem 270 mil milhões de dólares.

O G8 evita cuidadosamente abordar a questão dos subsídios agrícolas nos países ricos, que no entanto explicam parciamente a pobreza nos países africanos. Em 2002, por exemplo, os subsídios massivos concedidos pelos Estados Unidos aos seus 25.000 produtores de algodão fizeram cair em 25 por cento o preço do algodão no mercado mundial e custaram cerca de 300 milhões de dólares em receitas de exportação ao Benin, ao Burquina­‑Faso e ao Mali, todos eles incluídos na categoria dos países menos avançados. Contudo, a Comissão Blair observa que um crescimento de 1 por cento das exportações africanas levaria o seu valor anual a um valor de 70 mil milhões de dólares, ou seja mais de quatro vezes o montante da ajuda pública ao desenvolvimento.

UM BOM TESTE À SINCERIDADE

Uma das originalidades, se não a única, do relatório da Comissão por África, sobranceiramente ignorada pelo G8, é o apelo lançado para que se faça o repatriamento dos fundos subtraídos aos povos africanos por regimes não democráticos e depositados em países desenvolvidos. Segundo o relatório, esses fundos elevar-se-iam a mais de metade do montante da dívida externa do continente, ou seja centenas de milhares de milhões de dólares. A aplicação desta medida pelo governo de Blair seria além do mais um bom teste à sinceridade do primeiro­‑ministro britânico.

Na verdade, a vontade manifesta do G8 de lutar contra a pobreza mascara interesses económicos e preocupações geoestratégicas. O controlo dos enormes recursos naturais em que África é fértil poderia efectivamente conferir uma vantagem considerável na guerra económica a que se entregam os países ocidentais. Como de resto a Comissão Blair deixa entender, «à medida que o mundo mudar e se desenvolver, é provável que os vastos recursos naturais de África continuem a ser vitais para a prosperidade do mundo». Não por acaso, a pretexto da luta contra o terrorismo, os Estados Unidos empreenderam a «securização» dos países africanos ricos em petróleo.

Paralelamente, Washington e a União Europeia aumentam a sua pressão comercial e económica sobre o continente. Em 2000, Washington pôs em prática um instrumento de penetração das economias africanas, o African Growth and Opportunity Act (AGOA), que tem por objectivo fazer levantar todas as barreiras tarifárias e não tarifárias que possam afectar os produtos americanos. Por seu lado, a União Europeia pretende impor a África os acordos de “comércio livre”, conhecidos sob o nome de Acordos de Parceria Económica (APE) [10].

Mas os Estados Unidos e o Reino Unido compreenderam também que uma África “pobre”, com os Estados em falência, constituiria um terreno fértil ou um santuário para grupos terroristas. Aliás, um dos autores dos atentados falhados de 21 de Julho de 2005, em Londres, foi detido na Zâmbia. George W. Bush, citado no relatório da Comissão Blair, não esconde esta preocupação: «A pobreza e a opressão persistentes podem conduzir ao sentimento de impotência e ao desespero. E quando os governos não respondem às necessidades mais elementares dos seus cidadãos, esses Estados em situação de risco podem tornar-se refúgios para os terroristas...»

Apesar da campanha mediática e das esperanças surgidas antes da Cimeira do G8, esta saldou­‑se num falhanço. Um falhanço compreensível: como é que se pode fazer com que a pobreza seja coisa do passado sem enterrar, ao mesmo tempo, as políticas e as instituições que criam e espalham a pobreza no planeta?


[1] Tom Amadou Seck, Leurres du Nouveau partenariat pour l’Afrique, Le Monde diplomatique, Novembro de 2004.
[2] L’Intervention du FMI et de la Banque mondiale en Afrique. De l’échec des programmes d’ajustement au fiasco de l’initiative PPTE, International South Group Network, Quezon (Filipinas), Junho de 2005.
[3] Commission pour l’Afrique, Notre intérêt commun, Fevereiro de 2005.
[4] The Economics of failure: the real costs of “free” trade for poor countries. A Christian Aid Briefing Paper, Londres, Junho de 2005.
[5] Real Aid: An Agenda for Making Aid Work [pdf], Maio de 2005.
[6] David Sogge, Une nécessaire réforme de l’aide internationale [ed. brasileira: Ajuda que expolia], Le Monde diplomatique, Setembro de 2004.
[7] Ver no sítio do Haut conseil de la coopération internationale.
[8] Détails machiavéliques: les implications de la proposition du G7 sur la dette [pdf]. Briefing d’Eurodad aux ONG, Bruxelas, 14 de Junho de 2005.
[9] Centre national de coopération au développement, “Ce qu’il faut comprendre de la décision du G8”, Bruxelas, 30 de Julho de 2005.
[10] Raoul Marc Jennar, Ces accords que Bruxelles impose à l’Afrique [ed. brasileira: O triunfo do pós­‑colonialismo], Le Monde diplomatique, Fevereiro de 2005.
Demba Moussa Dembélé
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/mundo/mundo209.htm

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