segunda-feira, janeiro 15, 2007

A Índia inventa o rendimento rural garantido

Pela primeira vez, foi aberta a linha de demarcação que divide a Caxemira entre a índia e o Paquistão, de modo a facilitar as operações de socorro após o sismo que, a 8 de Outubro, matou cerca de 50.000 pessoas do lado paquistanês e 1.500 do lado indiano. Do ponto de vista da diplomacia, o governo de Nova Deli procura dar impulso a um novo rumo, mas do ponto de vista da política interna as mudanças são mais lentas.

Confrontado com os fortes protestos dos partidos de esquerda que apoiam, sem nele participarem, o governo de coligação minoritária dirigido pelo Partido do Congresso, indigitado em Maio de 2004 [1], o primeiro-ministro, Manmohan Singh, suspendeu finalmente a venda de 10 por cento das acções do grupo industrial do Estado Bharat Heavy Electricals Corporation (BHEL). Fez saber igualmente à Frente de Esquerda que renunciava à abertura do capital das empresas públicas muito eficazes – as famosas Navratnas.

O governo voltou assim atrás numa opção que representava um golpe de grandes dimensões nos compromissos do Programa Nacional Mínimo Comum (NCMP) definido pela coligação governamental – a Aliança Progressista Unida (APU) – e pela Frente de Esquerda. Em Junho de 2005, após o anúncio destes projectos de privatização, os partidos de esquerda tinham deixado a comissão de coordenação estabelecida entre os signatários do programa. Voltaram à comissão no passado mês de Outubro.

Este programa enuncia seis grandes princípios: combater todos os fundamentalismos e promover a harmonia social através da afirmação do carácter laico do Estado indiano; assegurar uma taxa de crescimento anual de pelo menos 7 a 8 por cento, a fim de favorecer o emprego; melhorar o bem-estar do mundo agrícola e dos operários, nomeadamente os do sector informal; garantir plenamente os direitos das mulheres; assegurar a igualdade de oportunidades no domínio da educação e de emprego para as “castas baixas”, as “outras classes atrasadas”, as tribos e as minorias religiosas; permitir o dinamismo de todas as forças produtivas do país e a boa governação. Segue-se uma longa lista de medidas detalhadas que formam o esqueleto de um programa de governo.

O poder prevê um crescimento de 6,9 por cento apesar do aumento dos preços do petróleo e do maremoto; adianta 250 mil milhões de rupias [2] suplementares (cerca de 4,6 mil milhões de euros) consagrados à aplicação das promessas, o aumento de 47 por cento (em relação ao orçamento inicial de 2004-2005) das dotações para o desenvolvimento rural e de 49 por cento das que são destinadas ao sector social. Aquando do primeiro aniversário da sua chegada ao poder, Singh anunciou um «gigantesco projecto para o desenvolvimento rural» estimado em 32 mil milhões de euros. Os seus detractores deploram a insuficiência das dotações, em relação às necessidades, mas também em relação aos objectivos proclamados no NCMP.

O exemplo mais emblemático destas dificuldades diz respeito ao compromisso de garantir pelo menos 100 dias de trabalho por ano a cada família rural. Esta medida-âncora, apelidada Employment Guaranty Act (EGA), deveria ser aplicada nos primeiros cem dias que se seguiram à tomada de posse do governo. Mas só foi votada a 24 de Agosto de 2005, um ano após essa data limite. Sobretudo, a sua trajectória é reveladora das tensões que reinam no seio da maioria. As disposições iniciais do projecto revelaram-se muito distantes das recomendações do Conselho Consultivo Nacional: este direito ao trabalho só devia abranger afinal as famílias que vivem abaixo do limiar de pobreza; o salário mínimo não era quantificado; o governo tinha o poder de anular o programa nesta ou naquela zona, segundo a sua vontade; não havia qualquer obrigação de estender o programa, inicialmente aplicável a 150 distritos, ao conjunto dos 587...

Todavia, mesmo esta versão suavizada do projecto, apresentada em Dezembro de 2004 no Parlamento, não chegou a passar a fase do exame pela comissão permanente da Assembleia Nacional. Foi preciso esperar por uma grande manifestação popular, em Maio de 2005 [3], para que a comissão para o desenvolvimento rural se decidisse a recomendar uma modificação positiva do projecto governamental.

MALABARISMOS ARITMÉTICOS

A nova lei acorda, a cada lar rural, uma garantia de rendimento irreversível, prevê um salário mínimo de 60 rupias (1,11 euros) por dia [4] e obriga o governo a estender este programa ao conjunto da Índia rural dentro de cinco anos. Em princípio, 30 por cento dos beneficiários deverão ser mulheres. Além disso, a gestão do programa está confiada às instâncias eleitas localmente. No entanto, a lei não reteve a recomendação da comissão de ampliar a garantia de rendimento a cada indivíduo – ela só está prevista para uma pessoa em cada lar.

Acresce que o problema do financiamento continua por enquanto de pé: os especialistas estimam que seriam necessários entre 4,65 e 8,36 mil milhões de euros por ano. Ora, em 2004-2005, o programa “Trabalho por Comida” (Food for Work), precursor da EGA, obtivera 334,4 milhões de euros, verba elevada a mil milhões de euros para o exercício 2005-2006 [5]. Globalmente, as dotações para o emprego rural deveriam atingir 1,67 mil milhões de euros em 2005-2006 (contra mil milhões no ano anterior), longe das somas necessárias para a EGA.

A dificuldade de financiamento afecta outros domínios considerados prioritários. É o caso da saúde, cujo orçamento chegou aos 1,89 mil milhões de euros este ano (contra 1,56 mil milhões no ano passado). Acontece que o NCMP prevê que, no termo da legislatura, a despesa neste sector atinja entre 2 e 3 por cento do Produto Interno Bruto (PIB), o que se deverá traduzir numa soma algures entre os 13 e os 19,5 mil milhões de euros por ano, se nos basearmos nas previsões do PIB contidas na lei das finanças 2005-2006. As dotações para a educação primária – mais de 1,44 mil milhões de euros, aos quais é preciso acrescentar 613 milhões para as cantinas escolares – continuam, também elas, muito longe do objectivo fixado de 6 por cento do PIB até ao fim da legislatura.

Mesmo se insuficientes, estas dotações só foram desbloqueadas à custa de um passe de magia. E há motivos para isso. No quadro da orientação fortemente liberal da sua política económica e fiscal, o governo pretende baixar ao mesmo tempo a fiscalidade e o défice. O orçamento prevê uma redução do IRC de 35 a 30 por cento, o fim da taxa sobre os serviços de um grande número de fornecedores e reduzir o IRS.

Baixam igualmente o IVA sobre os produtos considerados de luxo neste país (ar condicionado, pneus...), que passa de 24 para 16 por cento, as taxas aduaneiras sobre muitos bens de produção (a taxa mínima desce de 20 para 15 por cento, e em alguns produtos de 15 para 10 por cento, ou mesmo 5 por cento) [6]. Todavia, o peso de todas estas receitas (impostos e taxas) no PIB é ridiculamente diminuto: 9,8 %. Quanto à lei sobre a responsabilidade fiscal e a gestão orçamental, votada mesmo antes da queda do governo dirigido pelo Bharatiya Janata Party (BJP) e aplicada desde Julho de 2004 pela APU, impõe a si mesma limites ao prever a eliminação do défice orçamental até ao ano 2008-2009 e a redução do défice fiscal para menos de 3 por cento do PIB. Como é que se poderá financiar, mesmo parcialmente, as promessas do NCMP, ao mesmo tempo que se aligeira o cinto às empresas e aos agregados fiscais de rendimentos elevados, sem deixar de respeitar escrupulosamente a redução dos défices?

O “passe de magia” consiste em esconder os défices, recorrendo a diversas técnicas. É da praxe o governo fazer uma projecção excessivamente optimista das receitas esperadas, contando ajustar as despesas no fim do exercício orçamental. Quem pode garantir que os projectos do NCMP não serão afectados com estes arranjos?

O governo pode também recorrer aos meios extra-orçamentais. Uma parte das despesas é transferida para organizações públicas. Desta forma, a Food Corporation of India (FCI) deve contribuir para o programa “Trabalho por Comida” fornecendo 50 milhões de toneladas de alimentos por um valor de 930,17 milhões de euros (o que permitiu ao ministro das Finanças afirmar que as dotações para este programa eram de 1,93 mil milhões de euros). Esta transferência, porém, agrava o défice próprio da FCI, até agora coberto por um subsídio. Nada garante que no futuro ela não seja pura e simplesmente desmantelada, em nome do credo liberal que é a redução dos subsídios. Como assinala o economista Prabhat Patnaik, «aumentar o défice fiscal (...) através de organismos públicos não constitui um problema, com a condição de que exista paralelamente uma política de defesa destes últimos. Mas não podemos ter a certeza de que isso será feito» [7].

Por fim, uma parte do défice é transferida para os estados provinciais. Antigamente, era o Estado central que emprestava dinheiro para que eles financiassem os seus projectos. Agora, eles têm que procurar crédito directamente no mercado. Da sua capacidade de se financiarem dependerão os investimentos em muitos domínios, entre os quais o sector agrícola, dependente em larga medida da competência que revelem. Apercebemo­‑nos da real medida da mudança quando sabemos que as dotações para a agricultura, no orçamento central, são praticamente insignificantes, apesar do seu forte aumento: 1,15 mil milhões de euros para este ano, contra 856,6 milhões no ano passado.

Estes malabarismos aritméticos poderiam eventualmente dar a ilusão de que o governo conseguiu lançar­‑se na trajectória de um “crescimento justo”, ao levar avante as reformas liberais enquanto respeita – pelo menos em parte – os compromissos do NCMP. Mas trata-se de facto de uma ilusão.

As divergências entre o governo e os seus detractores antiliberais aumentam de dia para dia. Elas dizem respeito às privatizações das empresas públicas, às quais acaba de ser imposta uma paragem brusca, mas também aos investimentos directos estrangeiros. O relatório económico apresentado no Parlamento pelo ministro das Finanças recomenda o reforço das medidas duras em curso neste domínio. A esquerda não manifesta à partida uma posição hostil, mas exige que esses investimentos estejam estritamente regulados, a fim de aumentar as capacidades produtivas, de gerar emprego e de contribuir para o progresso tecnológico. Não é esse o caso quando o tecto para os investimentos estrangeiros é aumentado em sectores como o dos seguros (de 26 a 49 por cento) e no sector bancário (há uma lei em preparação). As críticas são mais violentas em relação aos projectos de flexibilização do mercado de trabalho, num momento em que já não existe qualquer segurança mínima garantida.

Quanto à agricultura, cuja taxa de crescimento foi de apenas 1,1 por cento contra mais de 8 por cento para a indústria no ano passado, o relatório põe o acento na desregulação do mercado e preconiza o início da transição de uma agricultura subsidiada para uma «agricultura internacionalmente competitiva», em conformidade com a agenda da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Ao desacordo sobre estas orientações junta-se o descontentamento ligado ao atraso na aplicação de medidas emblemáticas, que não exigem esforço financeiro mas uma real vontade política: garantir 33 por cento de representação feminina no Parlamento e nas Assembleias Estatais; estender ao sector privado a política de acção positiva no domínio do emprego em favor das castas desfavorecidas; legislar sobre o direito das tribos a viverem nas florestas... Em contraste com estas tergiversações, a emenda sobre o direito das patentes farmacêuticas foi decidida por decreto, em Dezembro de 2004, antes de a lei ser votada em Março de 2005.

Singh considera necessário obter um consenso à volta da sua política, sem o conseguir totalmente, nomeadamente sobre a questão da desregulamentação do mercado de trabalho. Segundo ele, isso retarda as reformas, travando assim o crescimento e os projectos de desenvolvimento [8]. O secretário-geral do Partido Comunista Marxista da Índia, Prakash Karat, considera pelo contrário que a continuação da linha política actual poderia levar a Frente de Esquerda a votar contra o governo, nomeadamente no caso da privatização dos fundos de pensões ou da modificação da lei sobre a regulação bancária, pretendidas pelo governo [9].

No entanto, dar o alarme não equivale a uma vontade de fazer cair o governo. Para começar, porque à falta de uma terceira força capaz de oferecer uma verdadeira alternativa antiliberal, essa queda beneficiaria o BJP. Depois, porque o balanço da APU no domínio das liberdades públicas e da afirmação do carácter laico do Estado continua a ser incontestavelmente positivo, como fica testemunhado pela revogação da lei para a prevenção do terrorismo (POTA) ou pela retirada dos manuais escolares fortemente imbuídos de ideologia nacionalista hindu. Além disso, a política externa do governo em relação ao Paquistão e à China suscita aprovação, mesmo se, recentemente, tenham surgido graves tensões no que diz respeito ao voto contra o Irão na Agência Internacional da Energia Atómica, a 24 de Setembro [10]. A Frente de Esquerda considera este voto como um abandono da política externa independente da Índia, sob pressão americana. Enfim, e sobretudo, a aplicação, mesmo se parcial e insuficiente, do Programa Nacional Mínimo Comum representa um progresso em relação à política seguida durante a legislatura anterior.

[1] Num total de 543 lugares, a coligação dirigida pelo Partido do Congresso obteve 217 lugares, a do Bharatiya Janata Party (BJP) 185 e a Frente de Esquerda 59.
[2] Uma rupia vale 0,0186 euros.
[3] Mais de 150 organizações cidadãs, partidos e sindicatos de esquerda organizaram uma “viagem pelo direito ao trabalho” através de todo o país.
[4] O salário mínimo varia de estado para estado, mas não pode descer abaixo das 60 rupias por dia.
[5] Todos os números do orçamento são tirados do discurso de Palaniappan Chidambaram na Assembleia Nacional, a 28 de Fevereiro de 2005, www.finmin.nic.in.
[6] Christophe Jaffrelot, L’Inde rétive au libéralisme total [ed. brasileira: Globalização a passos contados], Le Monde diplomatique, Janeiro de 2004.
[7] Frontline, vol. 22, n.º 6, Chennai, 12-25 de Março de 2005.
[8] Entrevista concedida ao McKinsey Quaterly, extractos publicados por The Hindu, Nova Deli, 26 de Agosto de 2005.
[9] Frontline, vol 22, n.º 12. Chennai, 4-17 de Junho de 2005.
[10] Georges Le Guelte, Sessenta anos de (não-)proliferação nuclear, Le Monde diplomatique, Novembro de 2005.
Jyotsna Saksena Le Monde diplomatiquehttp://www.infoalternativa.org/asia/india003.htm

Sem comentários: