Mais uma vez, a administração Bush parece estúpida exactamente quando pensa que está a ser inteligente, ou quando pensa que está a ser estratégica nas suas acções. Saddam Husayn não era o seu tirano típico: ele não foi nem mesmo um ideólogo coerente, ao contrário do que os seus apoiantes gostariam de pensar. Saddam alterou os seus pontos de vista e posições conforme os interesses do seu regime tirânico. Ele namorou (e mais do que namorou) com os EUA e Israel durante grande parte da década de 1980. Era pagão e ateu na década de 1970: você pode ver isso nas biografias encomendadas daquele tempo (Iskandar, Matar, etc), antes de descobrir a piedade após a sua derrota em 1991 – ver meu artigo no Muslim World Journal, no qual comparo Nasser após a derrota de 1967 com Saddam após a derrota de 1991, em como ambos descobriram a religião e a Jabriyyah no seu pensamento político. Mas o que sempre foi persistente nele era o seu profundo ciúmes de Nasser, e a sua profunda ansiedade por emular Nasser (isto assemelha-se à profunda inveja que caracteriza a atitude de Walid Jumblat para com Hasan Nasrallah). Mas ele não tinha nenhuma das qualidades de Nasser: não era modesto no seu estilo de vida, nem tão pouco a sua família – para dizer isto suavemente, e não tinha nada dos dotes retóricos de Nasser. Saddam teve de pagar para obter apoio fora do Iraque. Nasser nem teve de pagar nem um centavo. O colunista libanês Samir Atallath conta a história do jornalista árabe que visitou Saddam durante os anos duros da guerra Irão-Iraque. Quando o jornalista estava no gabinete de Saddam escutou-se uma enorme bomba maciça e ela abalou o edifício onde estavam sentados. Saddam não se moveu nem mostrou qualquer emoção. Ele voltou-se então para o jornalista e perguntou: Pensa você que Nasser teria actuado tão calmamente? O povo iraquiano naturalmente tem o direito, se quiser, de exigir uma punição de Saddam pelos seus crimes contra os iraquianos (e contra outros). Mas a execução foi arruinada por um certo número de questões que posteriormente servirão como tiro pela culatra contra o governo fantoche do Iraque, e os seus apoiantes nos EUA. 1) Todo o curso dos processos legais e políticos no Iraque, incluindo eleições, é ilegítimo com a presença dos ocupantes americanos. Hoje, durante o dia inteiro, os propagandistas da administração mantiveram-se a afirmar que foi uma decisão iraquiana. Sim, naturalmente. Este ano, responsáveis fantoches iraquianos, incluindo o antigo primeiro ministro fantoche, admitiram que de facto o primeiro ministro em exercício do Iraque não pode dar ordens a um oficial de polícia acerca de uma missão sem a autorização dos ocupantes americanos. E eles agora querem-nos fazer acreditar que os iraquianos actuam inteiramente por si próprios, como se eles pudessem. E a própria escolha do momento: não foi ela ditada pelos cálculos americanos? E o Iraque não é suposto ser soberano e independente? E os 140 mil soldados das tropas americanas estão ali simplesmente para a finalidade de controlar o tráfego no país? Quer se trate de eleições ou julgamentos, os processos sob ocupação estrangeira não são legítimos ou válidos, certamente não aos olhos da opinião pública árabe. 2) O próprio julgamento, tal como tudo o que os EUA administraram no Iraque, foi mal feito. Se os ocupantes americanos queriam mostrar aos árabes um sistema legal ou um procedimento judicial diferente do que eles dispõem nos seus próprios países, os EUA fracassaram miseravelmente, assim como fracassaram miseravelmente na concretização de qualquer das promessas da sua retórica vazia. O julgamento foi de facto uma caricatura e tão politicamente administrado quanto julgamentos em países árabes vizinhos. Desde a mudança de juiz (e o que aconteceu àquele juiz que foi despedido no momento em que disse no “tribunal” que não considerava Saddam como um tirano?), à selecção dos crimes – claramente destinada a preservar países do Golfo, da Europa e os EUA das suas associações embaraçosas com os crimes de Saddam durante os anos da guerra Irão-Iraque. Foi por isso que – de todos os seus crimes – Dujayl foi o escolhido. E perceba-se que o julgamento Anfal foi apressado a fim de não ser ligado aos seus outros crimes durante o período. 3) A decisão de executar Saddam agravará mais as tensões sectárias na região. Sistani teve mesmo de mudar o dia do Id Al-Adha. Mesmo que o Id pôde ser alterado pelo mais covarde dos clérigos, o qual foi covarde sob Saddam e é covarde sob a ocupação americana. Naturalmente, isto podia não ser inevitável. Por outras palavras, tivessem os governos fantoches do Iraque actuado não de modos e formas grosseiramente sectárias – e a ocupação americana aprovou-as desde o princípio ao utilizar, ainda que sem êxito, e explorar diferenças sectárias no Iraque – o povo do Iraque poderia ter-se mantido unido na condenação dos crimes de Saddam e na aceitação de um julgamento correcto e legítimo. Mas os sucessivos governos sectários xiitas do Iraque ocupado pelos EUA, e as suas sectárias milícias xiitas, conduziram muitos dos sunitas do Iraque para mais perto de Saddam. E o apoio que o governo fantoche do Iraque receber do Irão e do Hizbullah – abertamente ou não tão abertamente, pouco importa – serve apenas para reforçar a vesguice sectária do governo fantoche em vigor. Esta execução afundar-se-á como uma decisão sectária e não como uma decisão política ou legal, como deveria ser, porque o governo em vigor a) apoia-se sobre um exército estrangeiro de ocupação; b) porque o governo em vigor emprega esquadrões da morte sectários que têm estado a matar sunitas iraquianos e palestinos; c) porque os esquadrões da morte dominantes são inspirados por um Grande (nem tanto) Aiatola que saiu da sua casa apenas uma vez em 6 anos. Al Arabiya (arma virtual do aparelho de propaganda da ocupação) pensou que estava aser inteligente quando pediu a um clérigo xiita que aparecesse e louvasse a execução. Mas aquele clérigo é conhecido como um advogado da ocupação. 4) Isto não representará o fim do Partido Bath. De facto, o Partido Bath livrou-se da sua pior bagagem. Agora o Bath pode, infelizmente, refazer-se e reemergir sem ter de responder ou prestar contas pelos crimes de Saddam. Agora eles podem afirmar que não sabiam, e não autorizaram – que cabia tudo a Saddam e aos seus dois filhos que estão mortos. O Partido Bath voltará, assim como os Talibans parecem estar a retornar – mais um outro sinal dos fracassos da Doutrina Bush. Nem um único elemento daquela doutrina foi cumprido, ou será cumprido. E o Partido Bath, como sempre argumentei, é tão brutal na clandestinidade como era no governo. 5) Os regimes árabes estão mais seguros do que nunca – não dos seus povos (os quais estão a dormir ou ultrajados com os cartoons dinamarqueses) mas sim da ira dos EUA. Todos os regimes árabes sabem agora que a opção de uma outra guerra americana contra qualquer outro regime árabe está excluída durante um longo tempo daqui em diante. Aquela opção foi esmagada pela estupidez desta administração, e pelos fracassos abissais da doutrina Bush. Os regimes árabes agora estão seguros na crença de que os EUA recorrerão a ameaças, mas a ameaças de uma espécie diferente. Isto explica o recente tom de auto-confiança dos regimes iraniano e sírio. 6) A qualidade dos fantoches americanos em Bagdad, de uma forma estranha (e infeliz) aumentou a credibilidade de Saddam aos olhos de alguns iraquianos e demais árabes não iraquianos. 7) Ataques de vingança serão planeados e executados, no Iraque e for a dele. A execução de Saddam será encarada pelos baathistas e não baathistas afins como a morte de um “líder” e será utilizada para justificar o assassínio de líderes do Médio Oriente, especialmente aqueles que estão próximos dos EUA. 8) O povo na região lembrará Saddam com alguma nostalgia porque os líderes árabes são agora mais submissos e subservientes do que nunca aos EUA/Israel, e a linguagem bombástica e agreste de Saddam nos seus últimos anos será recordada. 9) Isto é um sinal de que a administração Bush nada tem a oferecer, apenas mais do mesmo. Algumas brilhantes mentes na Casa Branca, suspeito, saíram-se com esta ideia da execução na esperança de que galvanizaria a opinião públlca americana – eles não pensam para além disso. 10) Isto pode ser um sinal de que os EUA estão prontos para deixar o Iraque. Pode fazer parte da amarração dos nós antes de abandonarem; estão a tentar garantir que Saddam não ficará ali depois de eles abandonarem. 11) Por Saddam ter sido um tirano brutal, merecia ser julgado num tribunal legítimo e real, onde um governo não sectário pudesse faze-lo prestar contas pelos seus crimes. Mas isto não pode acontecer na presença de um sectário governo fantoche, suportado pelos ocupantes estrangeiros. 12) Eu pessoalmente estou mais feliz por Saddam não produzir mais novelas e poesias. (Não posso acreditar que Abdul-Bari Atwan no seu mais (grotesco) tributo hagiográfico a Saddam tenha-se hoje referido às diatribes de Saddam no tribunal como “eloquentes”)! 13) Não estou satisfeito com a cobertura que estou a ver agora no AlJazeera. É de um modo demasiado sombrio e melancólico, e eles exibem sem parar uma declaração do sobrinho de Saddam, o dia todo, assim como a cobertura do Al Arabiyya é de modo celebratório e falso ao tentar negar os subtons sectários da percepção da execução (que é percebida como um acto das milícias curdas e xiitas (apoiadas pelos EUA) contra um “sunita”. Não é irónico que Al Arabiya esteja a palrar vozes xiitas para legitimar a execução no mesmo dia em que um alto clérigo Waabita na Arábia Saudita declarava oficialmente a infidelidade dos xiitas? A AlJazeera precisa aumentar a extensão e cobertura dos crimes de Saddam. 14) A história contemporânea do Iraque continuará a ser sangrenta. Outrora pedi ao meu professor, Hanna Batatu (pesquise os arquivos deste sítio para ver a minha entrada sobre o seu grande livro sobre o Iraque), porque demorara tanto a produzir o seu livro sobre o Iraque. Ele contou-me que quando acabara a sua dissertação estava pronto para transformá-la num livro. Mas o banho de sangue do princípio da década de 1960, e o enforcamento de comunistas em postes de electricidade pelos baathistas, angustiaram-no amargamente. Já não podia voltar às suas notas, contou-me ele.
Asad AbuKhalil
http://resistir.info/
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