Uma farsa montada pelos EUA e uma estranha noção de justiça dos dirigentes europeus
A primeira das sentenças preparadas contra Saddam Hussein foi cuidadosamente marcada para as vésperas das eleições nos EUA, de modo a que os Republicanos pudessem tirar efeito do acontecimento perante o eleitorado norte-americano. Bastaria saber isto para se ver no acto o sentido de uma jogada partidária da parte da administração Bush e para mostrar como a justiça está fora desta história.
O efeito para o resultado das eleições revelou-se nulo, porque a opinião pública norte-americana preocupa‑se com o Iraque, mas, neste momento, não propriamente pelas mesmas razões do governo Bush. A maioria não acredita na possibilidade de vencer a guerra; e só uma pequena minoria foi para as eleições preocupada com o terrorismo – como mostraram sondagens feitas nas vésperas da votação.
A jogada em volta da sentença também não terá, seguramente, para o curso político iraquiano, mais efeito do que teve a encenação montada por Paul Bremer sobre a captura do presidente iraquiano, ou o anúncio da liquidação de Al-Zarqaui. Que foi, como se sabe, zero.
Mas o julgamento de Saddam levanta outras questões que não podem ser passadas em claro. A primeira, é a da ilegitimidade do julgamento e do tribunal. Os EUA são culpados, à luz do direito internacional, do crime dos crimes, que é, como o disse o tribunal de Nuremberga, o de agressão.
Como refere Sara Flounders, co-directora do International Action Center (IAC), de Nova Iorque: «O Tribunal Especial Iraquiano e o julgamento de Saddam Hussein são uma violação da lei internacional. A Convenção de Genebra, de que Washington é signatária, proíbe explicitamente uma potência ocupante de criar tribunais».
Os EUA, como potência ocupante de facto, não dispõem, assim, do direito de julgar os crimes de que Saddam é acusado; nem as autoridades iraquianas, instaladas e inteiramente dependentes dos ocupantes, têm legitimidade para o fazer.
A segunda, decorre do modo como o julgamento se processou. Nenhumas garantias de isenção foram asseguradas, como desde início denunciaram, entre outros, o juiz Ramsey Clark, fundador do IAC e ex‑ministro da Justiça dos EUA, que se ofereceu para defender Saddam e foi impedido de o fazer; ou o juiz Richard Falk, coordenador do júri do World Tribunal on Iraq, reunido em Istambul em Junho de 2005. Com efeito, três dos advogados de defesa do réu foram sucessivamente assassinados, entre nove pessoas com ligação ao processo que acabaram mortas. Um primeiro juiz foi substituído a mando do governo iraquiano sob pretexto de ser “condescendente” com o réu. As provas da acusação não foram dadas a conhecer à defesa antes do julgamento.
Por isso, Malcolm Smart, da Amnistia Internacional declarou, logo após a sentença: «Não achamos que tenha sido um processo justo. O tribunal não foi imparcial. Não foram aplicadas adequadas medidas para garantir a segurança dos advogados de defesa e das testemunhas». Insuspeitos de qualquer animosidade anti‑americana, também Pacheco Pereira e Marcelo Rebelo de Sousa se pronunciaram sobre a nulidade jurídica do julgamento.
Nada disto impressionou os líderes europeus, portugueses incluídos. Pelo contrário. A ministra britânica dos Negócios Estrangeiros «saudou» a sentença, e Romano Prodi achou que a condenação reflectia «o julgamento de toda a comunidade internacional» acerca do «ditador».
Depois destes gestos de espontânea congratulação, as tardias (mais de 24 horas depois!) e titubeantes demarcações das autoridades da União Europeia, e portuguesas, em relação à sentença de morte – não ao tribunal nem ao processo – apenas podem soar a remendo, passando completamente ao lado do essencial. A piedade humanitária e a recusa formal da pena de morte encobrem, no caso, uma completa conivência com a ilegalidade de fundo e com a farsa de justiça acima resumidas.
Os dirigentes europeus e portugueses revelam com isto uma estranha concepção de justiça, ficando a dúvida sobre se admitem que a justiça seja uma na Europa e outra lá fora; ou se acham mesmo que o modelo made‑in‑USA aplicado ao Iraque é, em limite, universalmente aceitável.
Manuel Raposo
Política Operária
http://www.infoalternativa.org/iraque/iraque077.htm
A primeira das sentenças preparadas contra Saddam Hussein foi cuidadosamente marcada para as vésperas das eleições nos EUA, de modo a que os Republicanos pudessem tirar efeito do acontecimento perante o eleitorado norte-americano. Bastaria saber isto para se ver no acto o sentido de uma jogada partidária da parte da administração Bush e para mostrar como a justiça está fora desta história.
O efeito para o resultado das eleições revelou-se nulo, porque a opinião pública norte-americana preocupa‑se com o Iraque, mas, neste momento, não propriamente pelas mesmas razões do governo Bush. A maioria não acredita na possibilidade de vencer a guerra; e só uma pequena minoria foi para as eleições preocupada com o terrorismo – como mostraram sondagens feitas nas vésperas da votação.
A jogada em volta da sentença também não terá, seguramente, para o curso político iraquiano, mais efeito do que teve a encenação montada por Paul Bremer sobre a captura do presidente iraquiano, ou o anúncio da liquidação de Al-Zarqaui. Que foi, como se sabe, zero.
Mas o julgamento de Saddam levanta outras questões que não podem ser passadas em claro. A primeira, é a da ilegitimidade do julgamento e do tribunal. Os EUA são culpados, à luz do direito internacional, do crime dos crimes, que é, como o disse o tribunal de Nuremberga, o de agressão.
Como refere Sara Flounders, co-directora do International Action Center (IAC), de Nova Iorque: «O Tribunal Especial Iraquiano e o julgamento de Saddam Hussein são uma violação da lei internacional. A Convenção de Genebra, de que Washington é signatária, proíbe explicitamente uma potência ocupante de criar tribunais».
Os EUA, como potência ocupante de facto, não dispõem, assim, do direito de julgar os crimes de que Saddam é acusado; nem as autoridades iraquianas, instaladas e inteiramente dependentes dos ocupantes, têm legitimidade para o fazer.
A segunda, decorre do modo como o julgamento se processou. Nenhumas garantias de isenção foram asseguradas, como desde início denunciaram, entre outros, o juiz Ramsey Clark, fundador do IAC e ex‑ministro da Justiça dos EUA, que se ofereceu para defender Saddam e foi impedido de o fazer; ou o juiz Richard Falk, coordenador do júri do World Tribunal on Iraq, reunido em Istambul em Junho de 2005. Com efeito, três dos advogados de defesa do réu foram sucessivamente assassinados, entre nove pessoas com ligação ao processo que acabaram mortas. Um primeiro juiz foi substituído a mando do governo iraquiano sob pretexto de ser “condescendente” com o réu. As provas da acusação não foram dadas a conhecer à defesa antes do julgamento.
Por isso, Malcolm Smart, da Amnistia Internacional declarou, logo após a sentença: «Não achamos que tenha sido um processo justo. O tribunal não foi imparcial. Não foram aplicadas adequadas medidas para garantir a segurança dos advogados de defesa e das testemunhas». Insuspeitos de qualquer animosidade anti‑americana, também Pacheco Pereira e Marcelo Rebelo de Sousa se pronunciaram sobre a nulidade jurídica do julgamento.
Nada disto impressionou os líderes europeus, portugueses incluídos. Pelo contrário. A ministra britânica dos Negócios Estrangeiros «saudou» a sentença, e Romano Prodi achou que a condenação reflectia «o julgamento de toda a comunidade internacional» acerca do «ditador».
Depois destes gestos de espontânea congratulação, as tardias (mais de 24 horas depois!) e titubeantes demarcações das autoridades da União Europeia, e portuguesas, em relação à sentença de morte – não ao tribunal nem ao processo – apenas podem soar a remendo, passando completamente ao lado do essencial. A piedade humanitária e a recusa formal da pena de morte encobrem, no caso, uma completa conivência com a ilegalidade de fundo e com a farsa de justiça acima resumidas.
Os dirigentes europeus e portugueses revelam com isto uma estranha concepção de justiça, ficando a dúvida sobre se admitem que a justiça seja uma na Europa e outra lá fora; ou se acham mesmo que o modelo made‑in‑USA aplicado ao Iraque é, em limite, universalmente aceitável.
Manuel Raposo
Política Operária
http://www.infoalternativa.org/iraque/iraque077.htm
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