quarta-feira, janeiro 17, 2007

O uso perverso da linguagem

É frequente os seres humanos praticarem acções que no fundo desconhecem. O facto de alguém fazer algo não é demonstrativo de que saiba o que está a fazer. Costuma-se atribuir às máquinas a particularidade de realizarem uma finalidade que ignoram. O automóvel leva-nos a um destino sem disso ter consciência. É conduzido a ele. Porém, como diz E. Rauter, o facto de que nos comportemos como máquinas só na aparência é raro [1] . Assim, falar é uma das acções humanas mais comuns. Contudo a maioria dos enunciados das pessoas são falsos. O anúncio da banca, por exemplo, propala a afirmação: "Ponha o seu dinheiro a trabalhar connosco". E muitos trabalhadores também dizem "O dinheiro trabalha", ainda que sejam eles a fazê-lo e não o dinheiro. Operários e empregados repetem o que ouviram, aonde vão eles buscar estas ideias que viram o mundo de pernas para o ar? Os professores de economia afirmam o mesmo nas escolas e universidades já há muitos anos. Dizem que a terra, o capital, o trabalho e a publicidade comercial são factores de produção. Porém o capital não faz nada, nem a terra, nem o trabalho [NT1] , nem muito menos a publicidade comercial. Quem faz tudo são os trabalhadores, os empregados e alguns empresários. A que devemos então a persistência de tais tergiversações, destes falsos enunciados? Talvez ao efeito gerado por essa forma de apresentar a produção, a saber: que os trabalhadores e empregados considerem o capital como algo que é mais importante que eles próprios, apesar de serem eles a criar o capital. Esse efeito é esta modéstia. [E uma tal modéstia] é uma qualidade dos escravos. Na década de 1960 a 1970 o mundo empresarial considerou que a democracia havia ido longe demais. Basta-nos recordar as revoltas universitárias contra a guerra do Vietname nos EUA, o Maio francês de 68 ou o Junho de Berlim posterior. Havia que contrapor a estes movimentos campanhas de propaganda directa e indirecta, e influenciar o conteúdo das ideias académicas. As subvenções à investigação aumentaram então consideravelmente. Mas esse dinheiro assumiu um claro cunho ideológico com a criação de cátedras universitárias denominadas da "livre empresa". A sua função consistiu na inversão da tendência anti-empresarial dominante. Numerosas fundações e institutos, como o American Enterprise Institute, grupos de peritos cooptados, os chamados "reservatórios de ideias", dedicaram os seus esforços à preparação e difusão de material educativo, programas de televisão, controlo ideológico dos meios de comunicação, etc. Abreviando em muito a exposição, estes recursos e esforços iriam culminar pouco tempo depois na relação "universidade – empresa". A sua criação sujeitou a teoria económica aos interesses das empresas, infectando-a. As investigações orientaram-se desde então para o interesse particular, e não ao geral. Nos anos 80, com Reagan e Thatcher, impôs-se o denominado neoliberalismo, a desregulação e privatização do público. Institucionalizou-se a apologia do militarismo, desprezando-se por completo a análise dos efeitos dos gastos militares sobre a inflação e a produtividade. O desemprego passa a ser justificado como "voluntário", como "tempo de busca de trabalho" pelos trabalhadores. Os controles meio-ambientais são declarados improcedentes pelos seus elevados custos, com os economistas a ignorarem ou a ocultarem os seus benefícios sociais, inclusive o da saúde da população. Os que expressam opiniões concordes com os interesses das empresas são muito bem pagos e dispõem de todos os meios que desejem para publicar as suas opiniões. Una vez modelada a opinião dos profissionais, o seu impacto na opinião pública equivale a um exercício brutal de violência psicológica. Era necessário brutalizar a linguagem para impor ao público a aceitação de uma explicação da realidade que não era outra coisa senão pura ideologia patronal. Na sua fase actual, o capitalismo impôs uma série de conceitos que lhe camuflam a sua índole predatória e que contaminam as consciências. Assim, por exemplo, de há uns decénios para cá define-se a si próprio como sociedade livre de mercado. Pois bem, como em informação não há nada inócuo, a colocação do qualificativo "livre" depois de "sociedade" e anteriormente a "mercado" faz-se para destacar conscientemente que esta sociedade e este mercado são livres. E isso, por oposição a quê? A outras sociedades existentes, a outras formas de organizar a convivência humana e o intercâmbio económico que, segundo os ideólogos do capitalismo, não seriam nem poderiam ser livres. Entre os conceitos mais rigorosos de liberdade encontramos o de Baruch Spinoza, filósofo holandês filho de emigrantes portugueses judeus, castelhanizado Benito Espinosa, que a entendia como conhecimento da necessidade, e o do biólogo evolucionista espanhol Faustino Cordón, que a define como a capacidade para prever a acção futura. A concepção histórico-materialista entende que a liberdade consiste no conhecimento da necessidade objectiva e na capacidade que lhe está subordinada de aplicar conscientemente as leis da natureza e da sociedade a fim de obter um domínio crescente sobre estas. A liberdade inclui também as condições económicas, políticas, jurídicas, espirituais, colectivas e pessoais. Daí que esteja submetida a um processo histórico. Nas actuais condições do capitalismo tardio, as liberdades introduzidas pela burguesia ao longo dos séculos XVIII e XIX foram-se reduzindo à " liberdade de comprar e vender". Hoje em dia, a retórica da "sociedade livre" mostra a sua face mais falaz. Só violentando em extremo a linguagem se poderiam qualificar como sociedades livres todas as que durante o século XX estiveram sujeitas às ferozes ditaduras dos nazis, dos tonton macoutes de Duvalier, dos Trujillo, Somoza, Videla, Pinochet, Mobutu, Idi Amin, e tantos e tantos mais. A lista seria interminável, e também inclui as do século que agora se inicia, como as satrapias do Médio Oriente impostas e sustentadas pelas tropas neocoloniais dos EUA e dos seus cipaios europeus. No entanto nem um só destes regimes sanguinários alguma vez saiu fora do conceito de "sociedade livre de mercado". A realidade é que o imperialismo vem declarando guerra a toda a sociedade livre e democrática ali onde ela surja e se oponha aos seus interesses de predador. Pode servir como exemplo a sinceridade brutal com que se manifestou H. Kissinger perante o golpe fascista contra a democracia chilena do 11 de Setembro de 1973. À pergunta do que se devia preservar, se a democracia ou a economia, o então secretário de Estado de Washington respondeu sem hesitar: "a economia". [2] Torna-se assim evidente que o prioritário está na segunda parte da frase em questão, no "livre mercado". Porém, se observarmos um pouco mais de perto o defensor estrénuo desta liberdade de mercado, os Estados Unidos, e se deitarmos uma olhadela à sua legislação, verificamos que não existe nenhum outro país no mundo que tenha imposto tantas leis restritivas à liberdade de mercado e de comércio. Como se sabe, estas restrições à livre circulação de mercadorias constituem a principal causa da pobreza do que se costuma chamar o Terceiro Mundo, ou seja, da maioria dos países. Esta linguagem falsa, conscientemente elaborada para enganar, cada vez convence a menos e indigna a mais cidadãos, sejam eles dos países pobres ou dos ricos. Os protestos multitudinários de Seattle, Génova, Hong Kong, etc., aumentam ano após ano os níveis de consciência. A cada dia são mais numerosos os artigos, os livros e os organismos populares que denunciam esta situação injusta e falsa. Como diz Siv O'Neal, "O conceito de livre comércio erigido pelos ricos em salvador do mundo da pobreza e do aumento do desemprego e da horrenda desigualdade não é senão um acto de prestidigitação, uma ilusão vazia. É uma maneira de nos enganar a todos para que continuemos a acreditar que algo de positivo poderia alguma vez brotar desse imenso logro". [3] Contudo a realidade dos factos é casmurra e põe a descoberto a falácia de tal linguagem. As desigualdades entre ricos e pobres aumentam em vez de se reduzirem. Sem incluir os milhões que existem nos EUA., 852 milhões de pessoas passam fome neste mundo, outros 815 milhões sofrem de desnutrição, 1.200 milhões vivem com menos de 1 dólar por dia, 250 milhões de crianças realizam trabalho em condições de semi-escravatura, sem mencionar as carências em medicamentos, em escolas e noutros direitos humanos fundamentais. A esperança de vida em África reduziu-se a 40 anos. Julio Yao resumiu na perfeição o que o capitalismo oculta por detrás do conceito de livre comércio. Na comunicação que apresentou ao Encontro Internacional de "Propostas Alternativas na Agricultura, Acesso a Mercados, Comércio e Meio Ambiente, em alternativa à da Conferência Ministerial da OMC", expressa-o assim: À luz da história, o "livre comércio" é um eufemismo que entranha um conflito semântico, uma contradição intrínseca. Que liberdade reconheceram os europeus aos povos africanos quando repartiram entre si esse continente sem pedir autorização aos verdadeiros donos? Que liberdade tinham esses povos africanos quando se os obrigou a firmar centenas de acordos comerciais e territoriais, de resto todos eles violados pelos europeus? De que liberdade gozavam os povos africanos se nem sequer tinham liberdade para ser pessoas, quando foram submetidos à escravatura, ao tráfico e comércio de escravos, para enriquecer tanto a Europa como os Estados Unidos nas plantações, nas fábricas e cidades? Que liberdade tiveram os peles-vermelhas, os Sioux, os Cheyennes e outras nações da América do Norte para regulamentar o seu comércio com os invasores quando a única liberdade que se lhes permitiu foi a de entregarem incondicionalmente todas as suas riquezas, possessões e patrimónios, as suas vidas? Que liberdade tinham os cubanos quando lhes impuseram em 1903 a Emenda Platt e quando lhes ocuparam Guantánamo? Que liberdade tinham os panamenhos quando em 1903 os Estados Unidos lhes impuseram um Tratado assinado por um estrangeiro [NT2] , mediante o qual o Canal, construído para o "livre comércio", permaneceria em perpetuidade nas mãos dos Estados Unidos, sem se permitir sequer ao Panamá o comércio na antiga Zona do Canal? Aí estão a confirmá-lo, depositadas na Secretaria-Geral das Nações Unidas, as reclamações desses povoadores indígenas ao governo federal dos Estados Unidos pelas violações de centenas de tratados subscritos durante o século XIX. No "livre comércio" de hoje não há mais liberdade do que a que gozaram os escravos e servos para negociar o seu labor, ou seja, a sua produção, o seu património e a sua vida, com os esclavagistas e senhores feudais. Por outras palavras: nenhuma! E é esta a realidade do nosso sistema internacional e do comércio internacional: o seu carácter profundamente assimétrico e feudal. Não há livre comércio quando as partes negociantes ou contratantes actuam a partir de uma base profundamente desigual de poder. Não há livre comércio quando o objecto da negociação – o comércio internacional – está rodeado de circunstâncias estruturadas em manifesto benefício de uma das partes e em notório prejuízo da outra. Não há livre comércio quando o propósito da negociação é em si mesmo um objecto ilícito, algo que não é susceptível de ser negociado, como o é a forma e o conteúdo da vida dos povos. Não há livre comércio quando a negociação obriga à aceitação de compromissos que atentam contra a ética, a solidariedade humana e o direito à vida. Não há livre comércio se os acordos são o resultado predeterminado e lógico das condições e estruturas que rodeiam a negociação. Não há livre comércio se não se produz a vontade das partes contratantes mediante o seu livre consentimento. Não há livre consentimento se a vontade de uma das partes foi forçada, por qualquer meio que seja, à aceitação de um acordo. Não há livre comércio se as partes negociantes ou contratantes não detêm capacidade jurídica para comprometer o destino dos nossos povos. E se nas negociações não se verificam nem o livre consentimento nem a capacidade plena das partes contratantes ou negociantes, então os acordos comerciais estão viciados de nulidade e carecem de validade jurídica." [4] A liberdade de mercado e de comércio significa, por exemplo, que o Iraque não podia vender o seu petróleo para satisfazer as necessidades da sua população e desenvolver a sua economia, ou que a Espanha não pode exportar para a Venezuela 12 aviões defensivos porque contêm peças fabricadas por companhias estadunidenses. Mas o caso mais gritante é o de Cuba, que sofre um bloqueio há já 47 anos num persistente propósito de lhe afogar a economia, a sua soberania e, em última instância, a sua revolução. Os EUA, o paladino do "livre mercado" e da "liberdade de empresa", não só proíbem os seus nacionais de vender ou comprar produtos a Cuba, como também promulgaram leis que impõem castigos aos que comerciem com Cuba, ainda que não sejam cidadãos ou empresas estadunidenses. Vejam-se, por exemplo, as leis Torricelli e Helms-Burton. Nelas se legisla a respeito da organização da sociedade cubana uma vez que se reincorpore ao capitalismo. Estabelece-se, inclusivamente, um organismo dedicado à tutela dos órfãos provocados pela intervenção militar. A quantos pensam então matar? Que negócios já têm maquinados com essas crianças? A sua venda para adopção ou a dos seus órgãos para transplantes a crianças ricas? Como afirmámos num outro texto [5] , "ao longo de milhares de anos, os seres humanos desenvolveram a linguagem para a compreensão e a cooperação na resolução das suas tarefas. Mas hoje em dia as palavras e os conceitos são conscientemente utilizados para lançar a confusão, para violentar o entendimento e, em última análise, impor significados que entram em contradição com a realidade. A Bíblia (Génesis, 11) diz que Deus confundiu aqueles que construíam a torre de Babel para lhes deter o progresso da obra, tornando incompreensível o que diziam. E é como se o Sr. Helms, o Congresso e o Governo dos EUA, todos eles supostos conhecedores da Bíblia e acérrimos defensores da civilização cristã, se houvessem erigido em deuses modernos, ocupados em confundir as pessoas e em impedir que a humanidade avance em direcção a formas de convivência mais solidárias e justas do que as actuais. Assim, as palavras perderam o seu significado original, adoptando um sentido contrário. Ficámos sem linguagem compreensível. Há mais de 150 anos, Karl Marx, um emigrante alemão estudioso do capitalismo e um combatente por uma outra ordem social, humana, dizia o que se segue no Manifesto Comunista: " Por liberdade, nas actuais condições da produção, entende-se a liberdade de comércio, a liberdade de comprar e vender." [6] E este tipo de sociedade, actualmente no apogeu do seu percurso, denomina-se a si própria "sociedade livre de mercado". Porém os seus porta-vozes e gendarmes mundiais, com o Sr. Helms à cabeça, negam pelo que fazem o que predicam. Bloqueia-se, embarga-se, promulgam-se leis que proíbem a tão badalada liberdade de comércio. Até bombardeiam colheitas e florestas com veneno (como no Vietname) e minam portos (como na Nicarágua) na mira de impedir a livre circulação de mercadorias e de pessoas. Agora até se persegue e castiga os que comerciem com os governos que não agradam ou não se submetem. Cúmulo dos cúmulos, e que o entenda quem puder, o Congresso norte-americano denomina isto de "Lei da Liberdade e de Solidariedade democrática com Cuba". Nenhuma das sanguinárias ditaduras latino-americanas, nem do mundo, incluindo a de Pol Pot no Cambodja, foi derrubada por congressistas e militares norte-americanos que lutassem em prol da liberdade desses povos. Nem a Pinochet, nem a Somoza, nem a Trujillo, nem a tantos outros lhes foi imposta uma lei para a liberdade e a solidariedade. Todas as intervenções, e muitas houve, foram feitas e continuam a fazer-se para derrubar governos democraticamente eleitos ou para impedir que sejam eleitos. Allende no Chile, Juan Bosch na República Dominicana, Jacobo Arbenz na Guatemala, Fidel Castro em Cuba, Hugo Chávez na Venezuela, etc. Para os Helms e demais caudilhos da democracia, os "bons" são os que assassinam e fazem desaparecer milhares de pessoas, os que "limpam" as cidades de crianças ao abandono (35 milhões só na América Latina) matando-as porque perturbam a estética urbana, os que exaurem os seus países com desfalques nas caixas nacionais e vão depositar o dinheiro em Miami ou na Suíça, e assim sucessivamente. Os "maus", pelo contrário, são os que constroem escolas, fazem baixar a mortalidade infantil e dão uma resposta social à pobreza, os que se esforçam por defender o humilde, os que se esforçam por melhorar as condições de vida e de trabalho dos seus povos. Defender o colectivo, o que é comum, solidário, o humano, é barbárie. Enquanto que a prática do egoísmo, a lei do mais forte, a lei da selva, ainda que seja de asfalto, é civilização. A família está na base da cultura cristã que o Sr. Helms e os legisladores norte-americanos defendem e propugnam. Mas as leis que elaboram proíbem os cubanos residentes ou com nacionalidade norte-americana de ajudar os seus familiares necessitados em Cuba. Praticar obras de misericórdia como, por exemplo, ajudar com medicamentos os doentes cubanos que deles necessitam é, segundo a Lei da Liberdade e da Solidariedade de Helms-Burton, "traficar com o inimigo" e, portanto, uma acção merecedora das mais severas penas. Ou seja, esta lei, mais ainda do que as anteriores, castiga aqueles que ajudam e premeia os que exploram o próximo. Os defensores da paz, como se auto-intitulam os gendarmes do mundo, utilizam a linguagem da guerra, ainda que não a declarem mas contudo a pratiquem. Esta Lei da Solidariedade exige que sejam devolvidas aos seus anteriores proprietários as propriedades que o governo revolucionário confiscou. Se assim fosse, Cuba inteira passaria a ser propriedade de cidadãos norte-americanos, dado que os hectares que esses "danificados" reclamam excedem em muito a superfície total da ilha. Que restaria então da soberania tão exaltada pela própria Constituição ianque? Até que ponto estão dispostos a aplicar a si próprios a lei que querem impor aos outros e devolver aos seus proprietários originais, neste caso proprietários colectivos, ou seja, às tribos índias da América do Norte, as terras que lhes arrebataram a tiro nos séculos XVIII e XIX? Na escola aprendemos que o sol se levanta a Oriente e se põe a Ocidente, e que o Japão é o país mais a Oriente, o país do sol nascente. Não senhor! Na linguagem dos Helms, o Japão é um país ocidental e Cuba, oriental. Os exemplos são tantos que cada um poderá encontrar os que quiser. Praticar-se-ia desse modo um bom exercício de saúde mental. Este uso da linguagem para confundir já o aplicaram antes Goebbels e os seus acólitos nazis e fascistas. Portanto: Heil, Helms! Deus o salve a si e ao seu Congresso, e ao "friendly fascism" que querem impor ao mundo. Isto, francamente, já não há quem o entenda. Haverá que destruir a moderna torre de Babel e recuperar a clareza das palavras. Até da linguagem nos privaram. Amplia-se a democracia aumentando, com o conhecimento, o número de pessoas que são capazes de reconhecer e articular os seus interesses e necessidades. Porém, não confundindo-as. Precisamente por isso é que a realidade é o melhor modificador da consciência, a que acaba por se impor. Daí que a tarefa primordial dos ampliadores de consciência, dos jornalistas, escritores, artistas, cineastas, etc., seja mostrar a realidade tal qual ela é. Assim se verá o que nela há a modificar. É também por isso que não podemos fazer outra coisa senão solidarizar-nos com a declaração dos escritores e artistas cubanos quando afirmam: "Lutamos e criamos pela beleza, pela justiça, pela solidariedade e a dignidade. Nem o ódio, nem a sem-razão, nem a soberba que tornam cega a política anticubana do Governo e do Congresso dos Estado Unidos conseguirão afastar-nos de tão nobres causas." Não obstante tudo isto, o imperialismo não pára de proclamar a "liberdade de empresa", um dos princípios sagrados dos inícios do capitalismo (Adam Smith). A liberdade de empresa, a livre circulação de mercadorias e capitais, é o princípio fundacional, a trave mestra da formação social capitalista. Este imperativo categórico tem sido o argumento terminante utilizado contra toda a tentativa de organizar a sociedade de uma outra maneira. Daí que, por contraposição, o socialismo, que se propõe regular a liberdade burguesa de comprar e vender, não seja considerado uma sociedade livre, isto é, se rejeite como carente de mercado. Vejamos porém alguns exemplos concretos de como entendem os EUA e os seus sócios do Primeiro Mundo esta liberdade de mercado. Os Estados Unidos são o país que mais restrições impõe à importação de mercadorias de outros países. Quem disso duvide que leia a legislação aplicável e os acordos da Organização Mundial do Comércio. Ou que o pergunte aos governos dos muitos países pobres que tantas dificuldades têm para vender os seus produtos em condições de igualdade aos poucos países ricos. Não contente com isto, proíbe as exportações para os países que não se submetem aos ditames dos interesses das empresas e governantes ianques. Inclusivamente são-lhes impostos bloqueios e embargos, como aquele que Cuba sofre desde há 47 anos. Se necessário, minam-se os portos de acesso ou afundam-se a tiros de canhão os barcos que levam alimentos a esses povos, como sucedeu no caso da Nicarágua. Arruínam-se por todos os meios, ataques bacteriológicos e químicos incluídos, as economias de países e continentes, Vietname, Iraque, África ou América Latina. Os camponeses do Iraque não poderão mais usar as suas sementes. Vão ter que pagar patentes a à Monsanto e à Cargill. Mas a mãe de todas as infâmias é aquela que nega a saúde e o direito à vida de povos inteiros com o pretexto de que assim o exige a defesa dos seus interesses nacionais, leia-se o lucro das suas empresas privadas. Assim, no dia 18 de Janeiro de 2003, o Governo dos EUA impediu que a OMC (Organização Mundial do Comércio) regulamentasse o acesso dos países pobres a medicamentos mais baratos, e até que se discutisse uma proposta brasileira que lhes permitia a compra de genéricos. O fundamentalismo da Administração Bush levou-a ao corte da sua quota para o Fundo da População das Nações Unidas (FNUAP), com a desculpa de que este organismo favorece o aborto. No entanto estes mesmos fundamentalistas já não se fazem o menor reproche quando gastam milhares e milhares de milhões de dólares em armas para massacrar seres humanos, crianças inclusive, pois claro. As cadeias livres da televisão norte-americana (ABC, CBS, NBC) não sentem qualquer vergonha em apresentar os africanos como responsáveis pelas suas terríveis fomes e epidemias, como o demonstra um estudo efectuado pela revista Extra! (Dezembro de 2002). Estes grandes meios de comunicação, livres e democráticos, esquecem-se sempre de nomear os verdadeiros causadores de tantas desgraças, como foi denunciado na Cimeira de Joanesburgo, à qual Bush se negou a assistir. Como é bem sabido, o Haiti, o primeiro país americano a emancipar-se da dependência colonial e a abolir a escravatura, é também o mais pobre do hemisfério. "Ali – diz Eduardo Galeano – "Há mais lava-pés que engraxadores: são os meninos que a troco de uma moeda lavam os pés dos clientes descalços, que não têm sapatos para engraxar." [7] Oitenta por cento da sua população de 8 milhões vive na mais absoluta pobreza. Durante várias décadas o país esteve sob o jugo da ditadura sanguinária de Papa Doc Duvalier e do seu filho Baby Doc, com os seus tontons macoutes a aterrorizarem a população pelo método dos assassínios arbitrários. Os EUA nunca levantaram a menor objecção, havendo-os apoiado com elevadas subvenções e ajudas. Pois bem, após a eleição democrática de Jean-Bertrand Aristide em 1990, reeleito em Novembro de 2000, os EUA bloquearam as ajudas e os empréstimos ao Haití, e utilizaram o seu veto no BID (Banco Inter-americano de Desenvolvimento) para manter o embargo a este pequeno e empobrecido país. As ajudas vetadas, 30 milhões de dólares para saúde e 300 milhões para infra-estruturas e educação, teriam melhorado consideravelmente a assistência médica e evitado muitas mortes desnecessárias. Para fazermos uma ideia da dimensão desta perversidade basta pensar que um só dos centos de mísseis de cruzeiro lançados contra o Afeganistão e o Iraque custa 400 milhões de dólares. Como denuncia a ONG estadunidense Zanmi Lasante, este embargo está a penalizar um povo que apenas cometeu o "crime" de eleger, livremente e por ampla maioria, o seu presidente. De modo análogo, e com o sempiterno pretexto da defesa dos seus interesses comerciais, os EUA vetaram em 2001 a adopção de um Protocolo de Convénio de Armas Biológicas, recusaram o Protocolo de Quioto sobre a Mudança Climática, negaram-se a assinar o Tratado de Proibição de Minas anti-pessoais, que tantas crianças matam e tornam inválidas, assim como o Tribunal Internacional sobre Crimes de Guerra, etc, etc. Relativamente à sua política no Próximo e Médio Oriente e ao seu apoio às tiranias que ali existem, James Woosley, antigo director da CIA, justificava-a assim numa conferência que pronunciou a 14 de Novembro de 2002 na Universidade de Oxford: "Uma das razões pelas quais não temos mais democracias no Oriente Médio é porque fizemos do Oriente Médio a nossa gasolineira". Com tais atitudes, cada será mais difícil aos EUA alardearem perante o mundo que são o garante das liberdades. É que o ser humano tem a capacidade de pensar. E, por conseguinte, a maioria dos homens e mulheres deste mundo está a aperceber-se de que o seu império económico-militar se vai deteriorando com o desmoronar do seu império moral. Já apenas conseguem convencer as escassas minorias que lucram com a sua política desumana. A contundente ironia de El Roto resume esta liberdade numa das suas mordazes vinhetas com esta frase lapidar: «Chamam-no sistema de livre troca, mas se tentares trocá-lo despedem-te». Em suma, a liberdade de comércio e de mercado reduz-se apenas à liberdade dos ricos de venderem aos pobres os seus produtos e serviços. O "neoliberalismo" martela-nos o cérebro com uma surriada de falsos termos que disfarçam e embelezam as suas acções depredadoras e desumanas. Entre os quais se destacam os seguintes: competitividade, eficiência, produtividade, flexibilidade, globalização, monetarismo. Competitividade A livre competição é um dos argumentos mais falazes que o capitalismo difunde. Está de tal maneira enraizado na consciência social que até os representantes da esquerda tradicional europeia o aceitam. O imperativo categórico desta organização social é que a economia tem de ser competitiva, que para ter êxito na vida há que competir, temos de ser competitivos. No entanto a biologia evolucionista diz-nos que a humanidade surgiu da cooperação e da solidariedade. A competição, a luta por um pequeno território e pelo alimento nesse pequeno território é a lei da selva, a animalidade. Os hominídeos desprenderam-se da sua animalidade e converteram-se em seres humanos à medida que foram cooperando solidariamente na conquista do seu meio. Defender apenas e só praticar a competição equivale a proclamar a lei da selva como principio reitor de nosso comportamento, destacar o que é animal contra o que é humano. O capitalismo nega assim a verdadeira natureza do ser humano, a sua índole solidária e cooperante. O capitalismo é, pois, a negação humana, a inumanidade. Carlos Marx, que dedicou a sua vida ao estudo do capitalismo, escreveu, há mais de 150 anos, isto sobre a competição:
"A competição isola os indivíduos, não apenas os burgueses, mas mais ainda os proletários, fazendo-os enfrentarem-se entre si, apesar do que os aglutina. Daí que tenha que passar muito tempo antes que estes indivíduos se possam agrupar, à parte de que para este agrupamento – se ele não for puramente local – tem que começar por oferecer a grande indústria os meios necessários, as grandes cidades industriais e os meios de comunicação rápidos e baratos, razão pela qual só é possível vencer após longas lutas qualquer poder organizado que enfrente estes indivíduos isolados e que vivem em condições que diariamente reproduzem o seu isolamento. Pedir o contrário seria o mesmo que pedir que a competição não existisse nesta determinada época histórica ou que os indivíduos pudessem varrer da cabeça aquelas relações sobre as quais, como indivíduos isolados, não têm o menor controlo." [8]
Eficiência O dicionário define-a como a virtude ou faculdade para produzir um determinado efeito. A rotina – o "dar à manivela", o "dar à nora" – da produção capitalista implica a acção conjunta de vários processos. Os diversos agentes económicos que actuam no capitalismo tendem à maximização do benefício e ao crescimento económico. É isto que os economistas do sistema denominam "eficiência". A palavra soa bem. Mas o que ela na realidade significa é a redução dos custos laborais e o uso crescente da tecnologia. Isto é, despedimentos cada vez mais frequentes e numerosos, vencimentos cada vez mais baixos, emprego cada vez mais precário. Em suma, a aceleração da "nora" [NT3] do capital, o aumento da "eficiência" traduz-se em maiores custos sociais. Produtividade A eficiência costuma vir acompanhada do conceito de produtividade. Dizem-nos que o aumento da produtividade é essencial. Mas se olharmos mais de perto, o termo produtividade mostra-se, no mínimo, ambíguo, em particular quando se aplica ao conjunto da economia. É algo difícil de medir. Assim, se um grupo de trabalhadores aumenta a produção de uma empresa à custa da sua saúde, é boa a produtividade? Como se sabe, gerou-se ao longo dos últimos decénios um enorme abismo entre os benefícios da produtividade e os salários dos trabalhadores. As fantasias dos economistas do sistema procuram fazer-nos crer que o aumento da produtividade se traduz em maiores salários. Qualquer um de nós pode comprovar que isto é uma falácia. A realidade é a precariedade no emprego, os «contratos lixo», o trabalho semi-escravo para sobreviver de mulheres e crianças, etc. A ênfase dos economistas oficiais na tecnologia como factor decisivo e a sua identificação com o livre comércio é vendida como um benefício evidente para os trabalhadores. Porém, para além dos «contratos lixo», o resultado foi aquilo que se denomina por deslocalização (externalização), tanto do trabalho especializado como do não especializado. Flexibilidade Assim, para facilitar aos empresários os despedimentos, fala-se de "flexibilidade", um conceito que é visto como panaceia para resolver todos os problemas da economia. Na realidade ele é um termo bem doloroso para todo trabalhador e trabalhadora desempregado/a. E quando um sector da economia ou uma empresa apresenta perdas? Diz-se que teve um "crescimento negativo". Usa-se este conceito de "prejuízo" para indicar que uma empresa veio a ganhar menos que no ano anterior, por exemplo, que ganhou 32.000 milhões em vez dos 35.000 milhões do exercício anterior. A população de um país é coisificada como "capital humano, "material humano", "recursos", "consumidores", etc. Semelhante linguagem de desprezo pelo ser humano tem por encargo a inclusão nos balanços de algo que não é calculável, contável. E se prescindirmos do seu conteúdo religioso do século XVI, que significado tem hoje a palavra "reforma"? O dicionário do idioma recolhe o seu sentido positivo de inovação ou melhoria de algo. Quando se fala de inovação e melhoramento de uma sociedade usa-se o termo «revolução», e para o "fazer marcha-atrás", o de «contra-revolução». Porém, quando se trata de dar a reviravolta nas reformas que melhoraram a sociedade, já não se encontra no dicionário a palavra "contra-reforma". Fazem-se reformas numa casa para a melhorar, não para piorá-la. Mas aplicando-se a reforma ao emprego já não é assim. O Banco Mundial reconheceu que as reformas do governo militar transformaram o Chile num laboratório da "escola de Chicago", e que o público não foi informado das mudanças efectuadas. A esta experiência chamou-se "uma lição de pragmatismo". Bom, considerando que o Banco Mundial apoiou Pinochet, a designação reflecte, ao menos, o próprio pragmatismo do Banco. Globalização Com a extensão do capitalismo a todo o mundo, a linguagem do império introduziu um novo conceito, o de globalização. Quer-se significar com ele a generalização do modelo capitalista à economia mundial, a desregulamentação dos entraves nacionais à livre circulação de capitais e empresas (externalização), em suma, a uniformidade do mercado. Este fenómeno leva implícita a mundialização da consciência, a uniformidade do pensamento e da linguagem. Sim, a globalização do capitalismo aumentou a interconexão e interdependência dos Estados e das economias, a velocidade de circulação do capital e das comunicações. E, juntamente com tudo isso, também a amplitude dos movimentos humanos, as migrações voluntárias ou forçadas de milhões de seres humanos. Acelerou ainda o fluxo de riquezas que corre dos muitos países pobres para os poucos países ricos, na inseparável companhia do agravamento da dívida externa. A globalização neoliberal trouxe benefícios imensos para o capital, seja ele financeiro, especulativo, depredador. O saque do Iraque pela Autoridade Provisória da Coligação, um eufemismo para a ocupação norte-americana e britânica deste país mártir, é um bom exemplo da livre circulação de capitais. Milhares e milhares de milhões de dólares desapareceram do país sem que ninguém saiba a que contas correntes foram parar. [9] Assim, muito longe de trazer a liberdade e o bem-estar ao mundo, esta globalização capitalista impôs ao mundo a direita radical, o neofascismo. A prometida prosperidade e erradicação da pobreza e da fome saldou-se por um rotundo fracasso. Foram incrementadas as desigualdades, propagadas as toxinas na cadeia alimentar, piorada a saúde, proletarizadas as classes médias, como se viu na Argentina ou Brasil, e mais e muito mais. Como ilustração da liberdade de capitais sirva-nos o facto de que, desde 1970 até 2006, os países pobres já pagaram por 30 vezes a importância da dívida contraída com os organismos financeiros dos ricos. E se tomarmos em consideração os capitais evadidos para esse primeiro mundo, o preço eleva-se a 80 vezes o montante da dívida. É esta a tão cacarejada liberdade de movimento e de circulação dos capitais. Que artimanhas linguísticas poderão ainda valer ao capitalismo que nos tenta convencer de que isto é progresso? Para os detentores do capital, sim. Mas para a imensa maioria da população mundial apenas significa maior empobrecimento e mais angústia. Os beneficiários são as indústrias de armamento, as petrolíferas, os interesses financeiros do império. Não obstante, dia após dia aumentam os grupos sociais e povos que despertam deste logro e que empreendem acções de emancipação. Aí estão a confirmá-lo a ALBA (Alternativa Bolivariana para a América) que confronta a ALCA (Área de Livre Comércio para as Américas) patrocinada pelos EUA, a Revolução Bolivariana da Venezuela, o triunfo do índio aymará Evo Morales e do seu MAS (Movimento ao Socialismo) na Bolívia, os movimentos indígenas do Peru, México, etc. "Contra a globalização imperialista" – afirma Alfonso Sastre – "nós, os vermelhos, temos as armas da solidariedade e do internacionalismo". [10] A consciência de que a liberdade de comércio apenas se traduz na pobreza e na sujeição dos países pobres da América, Ásia e África espalha-se como mancha de óleo. Veja-se, a título de exemplo, a resolução dos sindicatos do Sul da África, adoptada em Windhoek, a capital da Namíbia, a 7 de Dezembro de 2005. [11] Monetarização Na "sociedade livre de mercado" tudo se converte em dinheiro, a mercadoria universal. Não só se mercantilizam os produtos do trabalho, os objectos criados pelo engenho humano, como também os sentimentos, as carências e angústias, até as próprias pessoas. É o capital financeiro em todo o seu esplendor. A monetarização é um artifício do capital para extrair aos mais pobres o pouco que ainda lhes resta do Estado social. Assim, na Federação Russa, o que sobrou da extinta União de Repúblicas Socialistas Soviéticas, os recém-chegados capitalistas que a governam descobriram a magia da monetarização mediante a qual as antigas prestações sociais são convertidas em moeda de curso legal. As ajudas que no anterior regime socialista permitiam aos mais desvalidos sobreviver, substituiu-as o actual regime capitalista por umas moedas. Os subsídios de transporte, habitação, alimentação, assistência de saúde, etc, representavam para muitos a sobrevivência. O habilidoso governo de Putin resolveu cambiá-los em 100 rublos. Agora os pobres têm de pagar por esses serviços 500 rublos no "mercado livre". Não é, portanto, de estranhar que a população da Rússia diminua a cada ano de um milhão de pessoas, nem que a esperança de vida se haja reduzido em mais de dez anos ocupando agora a 136ª posição no mundo, nem que se vendam crianças para lhes traficar os órgãos, nem que um terço dos russos não chegue vivo à idade da reforma, nem que o suicídio seja a principal causa de morte. Estas são, entre outras, as vantagens da monetarização. Desmaterialização Uma das consequências desta contaminação linguística do vocabulário da economia é a desmaterialização, a abstracção de toda a referência à materialidade dos processos sociais. "A morte da distância", "O mundo ténue", a "Economia digital", "A organização virtual", são alguns dos títulos de livros publicados nos finais dos anos 90, na passagem do século, em pleno apogeu da globalização. Os prefixos "ciber", "tele" ou simplesmente "e" (de electrónica), os adjectivos "virtual" ou "em rede" podem ser apostos a uma série quase infinita de substantivos abstractos. No âmbito da economia, por exemplo, precedendo "empresa", "loja", "comércio", "trabalho", "banca", "compra", etc. Podem igualmente aplicar-se noutros âmbitos, como "cultura", "política", "democracia", "sexo", "espaço", etc. Tem-se a sensação que surgiu algo de novo. O mundo, tal como o conhecemos, está a desmaterializar-se, a esfumar-se, desvanecer-se. É como se a actividade humana se houvesse reduzido à mera manipulação de abstracções perante a desaparição do mundo empírico. Surgiu uma nova ortodoxia para a qual a única fonte de valor é o "conhecimento". O trabalho é algo de contingente e deslocalizável, a globalização é inexorável e inevitável. Seria por conseguinte inútil resistir-lhe. Ursula Huws posiciona-se em contracorrente e pergunta-se até que ponto será certo que se tenha desmaterializado a economia, se expandam os serviços e que contributo trouxe o "conhecimento", isto é, as TIC (Tecnologias da Informação e da Comunicação), ao crescimento económico. [12] Teríamos assim um mundo paradisíaco de geografia sem distância, história sem tempo, valor sem peso, transacções sem dinheiro. Em suma, a realidade como simulacro (Baudrillard), como ilusão. Contudo, o fenómeno da deslocalização das fábricas dos países ricos do Primeiro Mundo para os pobres do Terceiro, o facto de que a imensa maioria da população continue sem ter acesso às TIC, ou seja, ao "conhecimento" tal como ele hoje é definido, que a terra continue a ser cultivada com máquinas modernas e pesadas, e o facto de que a todos os bens materiais haja que transportá-los de um local para outro, nada têm de ilusórios nem de "ténues". Eles não ocultam a realidade brutal, nada virtual, do carácter depredador, desumano, desta fase do capitalismo. A matematização da economia leva a eufemismos tão encobridores como o de "crescimento negativo", para dizer menos lucros, ou o de "redistribuição negativa dos rendimentos", para significar empobrecimento dos trabalhadores e das massas populares. Como já expusemos noutro local [13] , um dos princípios mais caros a este modelo de sociedade afirma que: "Uma situação económica é ideal quando a economia se expande, sobem os salários e aumentam os lucros, há pleno emprego e os preços se mantêm relativamente estáveis". Analisemos a que acções e omissões nos quer induzir este princípio. A frase abunda em pressupostos, em hipóteses por confirmar. E alinhava-as com tanta pressa que mal nos dá tempo de a questionar. Para desfazer hipóteses não há nada melhor do que fazer perguntas. Se fizermos as perguntas adequadas poderemos descobrir como é que a economia e os economistas se colocam ao serviço de interesses políticos específicos. Poderemos averiguar como é que propagam e inculcam uma bem interesseira cultura da economia. Nem toda a gente está preparada para discernir as partes de um enunciado que contêm premissas falsas. E com frequência tampouco a instrução nos serve para grande coisa, sobretudo se carecemos de saber e meios especializados para analisar um enunciado e este não pode ser demonstrado pela lógica. Se não nos bastam a experiência e o saber para reconhecermos a falsidade de uma premissa, resta-nos ainda aquele outro método útil para conseguirmos atingir o conhecimento que visámos. Quase todas as dúvidas de um enunciado podem ser esclarecidas com perguntas. Graças a elas as incertezas resolvem-se em conhecimento. E só o saber pode impedir que nas nossas cabeças surjam convicções falsas. Estas falsas certezas nascem das afirmações que não havemos examinado nem entendido. Analisemos agora a mencionada definição de situação económica ideal. Esta definição contém vários enunciados. Um deles reza assim: "Uma situação económica é ideal quando há...pleno emprego". Se aceitarmos este enunciado, aceitamos também o seu contrário: fora da situação ideal, na realidade, não há pleno emprego. A realidade, e temos então que aceitá-la, é haver pessoas que não encontram qualquer trabalho, seja por serem demasiado velhas para que os consumidores de força de trabalho as contratem, seja porque estes as despedem. A última fórmula na moda para despedir diz mais ou menos isto: "Você foi considerado um elemento não indispensável". Uma tal frase significa que os trabalhadores não têm nenhuma garantia real de disporem de rendimentos certos. E se estamos de acordo com a hipótese também temos de aceitar que nos espoliem agora ou que nos atirem para uma situação de miséria financeira no futuro. Teremos pois de dizer: está certo que nos espoliem (que é pior não ser explorado do que sê-lo). Ao afirmar que o pleno emprego é uma situação ideal, e não um direito, estamos a enganar-nos a nós mesmos. A aceitar que devemos andar por aí a pedir trabalho, a considerar correcto que um qualquer, e a qualquer momento, possa decidir do que vai ser a nossa vida, se esse qualquer tiver herdado uma fábrica ou uma boa carteira de acções. É claro que o enunciado não corresponde aos nossos interesses. Assim, também nos podiam obrigar a aprender una frase como esta: "Uma situação económica é ideal quando, de 8 em 8 meses, oferecemos ao patrão o salário de um mês". Outro dos enunciados afirma que "uma situação económica é ideal quando a economia se expande". É uma afirmação pouco clara. Porém lemo-la e ouvimo-la em todos os jornais e emissoras. Considerámo-la verdadeira porque os outros também a repetem. Dentro da nossa cabeça chega até a transformar-se numa certeza. Mas também esta se pode desmoronar à base de perguntas. Algumas afirmações só passam por verdadeiras porque a maioria as aceita, dado que de facto são falsas. Por isso têm tão ampla difusão, porque muito poucos as têm por verdadeiras. A maioria das pessoas crê que as representações, as ideias, sentimentos e conceitos provêm do interior das suas cabeças. Ignoram que elas percorrem o caminho inverso, de fora para dentro. Sem que nos dêmos conta, o enunciado introduz na nossa consciência vários pressupostos. Um deles pretende fazer-nos crer que é útil produzir cada vez mais mercadorias e oferecer cada vez mais serviços. Isto pode ser proveitoso mas também pode ser prejudicial: depende dos produtos e dos serviços. Tampouco este pressuposto é esclarecido. Um segundo pressuposto é o de que se pode consumir mais produzindo-se mais. Se isso fosse verdade, significaria que os trabalhadores podiam determinar como se empregar e distribuir os produtos do seu trabalho. Mas uma tal maravilha vai contra a lei. A lei determina que os produtores deixem uma parte do produto do seu trabalho nas mãos dos proprietários do capital, dos possuidores dos centros de produção. O que se passa nas fábricas demonstra que isso de "a maior rendimento mais consumo" é blá-blá-blá ou então mentira das grossas, dependendo da boca de que sai. Os que não sabem do que estão a falar passam por alto factos essenciais, e os que mentem silenciam-nos. É bem sabido que as mulheres recebem um salário inferior ao dos homens quando executam o mesmo trabalho que estes. Assim, e mencionando tão só três dos países que costumam ser apontados como modelo, as vantagens dos preços dos produtos japoneses dependem em grande medida da exploração de mão-de-obra feminina barata. As mulheres japonesas ganham menos de metade do que ganham os homens e, tal como em Espanha e na maior parte do mundo, muitos dos trabalhos mais ingratos e desconsiderados são as mulheres a realizá-los. Cerca de 40% do trabalho feminino da produção social da Alemanha é efectuado sem que as mulheres cobrem o que quer que seja em troca. Nos Estados Unidos, o salário médio da mulher trabalhadora norte-americana equivale a apenas 58% do salário médio masculino. Também aqui são as mulheres que ocupam as categorias laborais mais baixas e precárias. A aludida economia em expansão não altera a reforçada exploração da mulher. A situação das mulheres trabalhadoras não se modifica porque trabalhem com maior rapidez ou produzam ainda mais. Poder-se-ia começar por dizer que o aumento geral da produção supõe um tão grande benefício para todos que, em troca dele, a discriminação das mulheres se tornaria aceitável. A vantagem desse crescimento seria o melhor abastecimento dos cidadãos em bens de consumo. Uma outra vantagem residiria no embaratecimento dos produtos. Quantas mais unidades de um mesmo produto se fabricarem tanto mais baixos serão os custos de produção por unidade. Entretanto, os estudos mostram que um melhor abastecimento da maioria em bens de consumo não depende tanto do aumento da produção como de que sejam produzidas outras mercadorias, de carácter útil, em maior quantidade. Assim, por exemplo, os fabricantes de automóveis produzem cerca de 100 tipos diferentes de ignições que por fora nos parecem iguais. A maioria deles apenas se diferenciam pelas chaves, os contactos, o mecanismo eléctrico e mecânico, etc. Os fabricantes não conseguem pôr-se de acordo porque, ao que dizem, cada cliente tem os seus gostos próprios. Contudo, pelo menos metade da produção de ignições não satisfaz as necessidades técnicas das viaturas nem as dos compradores. Só satisfaz as necessidades de venda dos fabricantes. Outro tanto se pode dizer das antenas. Em alguns centros de trabalho produzem-se motores eléctricos que não servem senão para levantar, pressionando um botão, as antenas dos carros quando vamos a conduzir. Os trabalhadores conhecem muitos outros exemplos de desperdício da sua força de trabalho, ou de produtos que só servem para destruir. E não há que recorrer como exemplo ao fabrico de armas, onde o desperdício é óbvio. Pense-se antes no truque das câmaras de filmar estreitas que não podem ser reparadas sem se partir a caixa que as contém. Há uns anos atrás houve uma greve dos jornais em Nova Iorque que durou 80 dias. Durante esse tempo não saíram jornais e, por isso, não houve reclames comerciais, anúncios publicitários impressos. Os comerciantes nova-iorquinos queixaram-se das vendas terem descido vários milhares de milhões de dólares. As mercadorias que as pessoas não compraram durante esses 80 dias não lhes eram necessárias. Esta não é a única prova de que com os reclames publicitários se podem incitar as pessoas a comprar coisas desnecessárias. Os gastos em publicidade crescem, em percentagem, ao dobro do que cresce o PIB. No total, umas cinco ou seis super-companhias surgidas na década de 1990 dominam um mercado de cerca de 350 mil milhões anuais. Os gastos da indústria do reclame são também contados como produção. Numa economia em expansão aumentaria também esta forma de desperdício. As mercadorias mais caras, destinadas a um pequeno sector de consumidores ricos, um Rolls Royce ou um grande iate, por exemplo, não são rentáveis para a TV. A televisão dispõe de audiências maciças e, por isso, é rentável anunciar bens de consumo maciço: sabão, detergentes, artigos de limpeza (compressas, desodorizantes) cosmética, alimentação, medicamentos sem receita. Para quê incrementar a produção quando já se torna difícil convencer as pessoas de que determinadas mercadorias lhes são necessárias? E mal desaparecem os anúncios logo as pessoas compram menos. Actualmente produzem-se demasiadas mercadorias inúteis. A sua única utilidade reside no enriquecimento dos fabricantes que as produzem. Todavia não se produzem suficientes mercadorias úteis, como o demonstra a fome que há no mundo. Apesar dos fabricantes produzirem mais mercadorias do que as que podem vender sem os gastos publicitários, nem por isso elas se tornam mais baratas. A cada ano produzem mais mercadorias, e a cada ano aumentam as suas vendas numa certa percentagem. Mas, apesar de haver maior oferta de mercadorias, os preços sobem. Os economistas não se cansam de afirmar que quanto mais se produza tanto mais se embaratecerão as coisas. Isto é verdade, porém as mercadorias só se tornam mais baratas na produção, não na venda. Os trabalhadores das fábricas perdem nelas a sua saúde para que de imediato subam os preços das coisas que têm que comprar. Quanto maior é o seu rendimento tanto mais caros se vendem os produtos do seu trabalho. Uma das principais vantagens da "expansão" económica, a saber, a redução dos custos, quem a embolsa são os empresários. Os teóricos que afirmam que os preços baixam quando a produção aumenta, censuram-nos, dizendo que também baixariam se a gente não consumisse tanto. De repente, já não é válido o argumento anterior. Agora o argumento é este: os preços baixam ao aumentar a produção na condição de que as pessoas comprem apenas uma parte das mercadorias geradas por essa produção crescente; os preços só baixariam se uma parte das mercadorias não se vendesse. Mas então em que ficamos? É que a economia deve expandir-se precisamente para que a gente consuma mais, pelo menos é o que diz a teoria. A teoria também diz que "o aumento da procura eleva os preços". Mas aos preços não os sobe a procura, sobem-nos os comerciantes. Estes aumentam os preços desde que encontrem compradores. Tudo isto não passa de uma pura e simples extorsão sobre as pessoas. Pois que a população não pode renunciar a muitas mercadorias e serviços ainda que estes sejam caros. Outro argumento utilizado com frequência para explicar a subida dos preços é o de que "as reivindicações salariais pressionam à subida dos custos de produção". Isto soa ao ouvido de maneira convincente porque, visto por si só, é correcto. Porém na produção de mercadorias intervêm também outros custos, além dos salários. Esses outros custos são quase três vezes mais altos. A julgar pelas declarações de empresários e governantes, incluídos aqui os que se auto-intitulam de "socialistas", seriam os salários os culpados das crises económicas. Por isso insistem, dia após dia, na necessidade de moderação, no congelamento e nos cortes salariais. Claro que o melhor seria que não houvesse assalariados, e assim tudo seria lucro. O crescente número de indigentes, tal como os seus filhos, poderiam ser transformados em conservas de carne, em salsichas, por exemplo, como sugeria mordazmente Jonathan Swift (1667-1745). Este escritor irlandês, autor de As viagens de Gulliver, demonstrou com cálculos bem precisos que muito se pode entesourar quando se carece por completo de escrúpulos e não se recua perante nada. Toda a riqueza é trabalho passado, efectuado anteriormente. O ouro nem sai por si só da rocha nem se mete sozinho nos cofres blindados dos bancos. Um bosque de abetos carece de valor se não houver trabalhadores que dêem aos troncos uma forma útil: vigas, tábuas, móveis. Aquele que possui muito dinheiro goza do direito às coisas que o trabalho criou. Sem esse direito aos produtos do trabalho não seria rico. Se os trabalhadores e empregados entregam continuamente mais trabalho do que aquele que consomem há-de ser possível seguir o rasto a este excedente. Sendo certo que sempre entregam mais do que aquilo que recebem, este "mais" tem de se encontrar em algum sítio, tem que se haver concretizado em saldo bancário, avião privado, fábrica, etc. A distribuição da riqueza entre a população mostra para onde vão os valores produzidos pelos trabalhadores. Entre todas as opiniões que diariamente são elaboradas pela escola, a igreja, a imprensa, a rádio e a televisão, a mais propalada e a que mais tendência tem a permanecer é a de que o trabalhador autónomo não é explorado. As pessoas em causa aferram-se desesperadamente a esta opinião, como se no fundo soubessem que não é verdade. E ela é apresentada de uma forma que se revela perigosa para quem dela não comparta. Os especialistas astutos evitam a palavra "exploração" nos debates, a fim de não perderem a atenção e a benevolência do público que lhes paga. Fazem, pois, bem em explicar-se somente por cifras, e deixar as conclusões para os ouvintes. De resto, também é importante que as cifras saiam dos ministérios. A opinião de que para eles já não há mais exploração nutre-se de um erro de lógica. As vítimas desta opinião dão por facto consumado que bem-estar e exploração não podem andar juntos. E a sua prova de que não são explorados é outra opinião: a de que a eles as coisas correm bem. Podemos discutir sobre este tema de a uma pessoa as coisas correrem bem porque ela o crê. Porquanto, se a uma pessoa a exploram ou não, é algo que não tem nada que ver com os seus sentimentos nem com sua forma de pensar. O facto de que alguém seja ou não explorado depende de se é obrigado a enriquecer a outros. Também será explorado quando não se dê conta de que enriquece a outros, ou quando não quer admitir que seja assim. O escravo é mais consciente da sua situação do que o semi-escravo. E, de resto, também há escravos contentes. O trabalhador produz a cada hora mais dinheiro do que aquele que recebe. Outro tanto sucede com os empregados. Já se viu aonde vão parar esses valores. Também já foi referido como diminui a parte dos salários nos custos de produção. Se é correcta a afirmação dos fabricantes de opinião e intermediários públicos da informação de que vivemos numa democracia, terá então de concluir-se que os trabalhadores e os pequenos e médios empresários decidiram gastar-se uns quantos biliões entregando-os aos consórcios e grandes empresários, tendo resolvido, assim, renunciar a piscinas, instalações recreativas, hospitais e escolas. Os ricos empregam diversos métodos para a redistribuição dos produtos do trabalho. Um deles consiste na subida excessiva dos preços. Um outro é a introdução de horas extraordinárias. (Numa máquina podem-se trabalhar 8 horas ou 12; a máquina custa em ambos os casos o mesmo, mas rende mais quando funciona 12 horas.) Um terceiro método baseia-se na produção de mercadorias com escasso valor de uso. A inutilidade de certos produtos é um dos efeitos mais perversos do domínio privado dos meios de produção. Destrói milhões de horas de trabalho para um fim absurdo. Quanto mais imprestável seja uma mercadoria mais cedo a terá de substituir o comprador. Substituir um objecto significa comprá-lo de novo. Comprar um objecto significa entregar força de trabalho em troca dele. Serve a confirmá-lo o banal exemplo das meias de fibra artificial que nunca se rompem. No entanto as nossas mulheres são obrigadas a comprar a cada passo novas meias. Para gastos absurdos como este têm de trabalhar tanto as mulheres como os maridos. E para a maioria isso quer dizer trabalhar grátis uma parte do seu tempo para um empresário privado. A confirmá-lo temos também a famosa lâmpada indestrutível, símbolo insuperável da razão social. Algo de semelhante acontece com a maioria dos objectos de uso. Nos laboratórios dos grandes consórcios industriais, os melhores cientistas, formados em instituições públicas, ou seja, financiadas com o dinheiro público, do povo, aplicam-se na elaboração de métodos que os fabricantes aproveitam de modo a reduzir a vida útil dos bens de consumo. A vida de um eixo, de uma mola, de um motor, de uma máquina de lavar roupa ou de um frigorífico pode ser reduzida através das correspondentes ligas de metais a utilizar. Os cientistas chamam a isto "obsolescência incorporada". No entanto um alto funcionário da indústria automobilística declarou, há alguns anos atrás, que já não é nenhum problema construir carros que funcionem durante cem anos sem ser necessária qualquer reparação. Quando já não se pode reduzir mais na duração dos materiais, o envelhecimento de um objecto é efectuado introduzindo-lhe pequenas modificações de forma. Isto é o que se verifica ano após ano na indústria do automóvel. Já vimos como o desperdício da força de trabalho se estende até às peças sobressalentes mais pequenas. Uma outra forma de desperdício imposta à massa da população, também já referida, é o reclame publicitário, isso que eufemisticamente se chama "Publicidade". Estima-se que entre 30% a 45% do preço dos produtos seja para pagar os reclames publicitários. O esbanjar planificado da nossa força de trabalho (do nosso biotempo), das nossas reservas de matérias-primas (carvão, petróleo, gás natural, água, de tudo o que provém da terra), é uma das principais causas de que não tenhamos suficientes escolas, hospitais, creches, espaços recreativos para crianças, jovens e adultos, residências para a terceira idade, teatros, habitações dignas, um meio ambiente mais limpo, etc. Hoje trabalham-se bastantes mais horas do que as que são marcadas pela jornada oficial dos convénios de trabalho. Não nos estamos a referir apenas às horas extraordinárias. Também há que incluir as horas dos pluri-empregos, os biscates, os numerosos trabalhos domésticos, todos eles destinados a obter rendimentos complementares ou a não fazer despesas que reduziriam o nosso nível de vida. Bem vistas as coisas, uns e outros vêm a dar no mesmo. Muitas pessoas morrem por falta de rins artificiais. Segundo o último relatório da FAO (Outubro de 2005), uma terça parte da humanidade sofre de desnutrição e carece de água potável, 11 milhões de crianças morrem antes de atingirem os 5 anos de idade, 17.000 deles morrem de fome a cada dia, 121 milhões não vão à escola, 250 milhões realizam trabalhos escravos, e assim sucessivamente. Contudo há casacos de peles e jóias, aviões, iates, castelos e mansões particulares; milhões de toneladas de embalagens supérfluas, montanhas de sucata, e a "publicidade". Enquanto que nas mãos dos proprietários o trabalho se transforma em riqueza e poder, nas mãos dos trabalhadores converte-se em lixo. Cada piscina que não é construída metamorfoseia-se na mansão de um milionário, numa máquina que produz novas embalagens de margarina ou num anúncio de detergente com prémio. Até hoje os trabalhadores não foram capazes de controlar sequer a pequena fracção de trabalho necessária para que a humanidade disponha de um número suficiente de rins artificiais. Se a economia se "expande" nestas condições, expande-se também a desumanidade, a barbárie e a exploração. A tese de que "uma situação económica é ideal quando a economia se expande..." é falsa. É um instrumento para a criação de submissos. Tampouco esta tese corresponde aos nossos interesses. É uma frase que brota da linguagem dos senhores. Mas a afirmação mais surpreendente de todas as que mencionámos até agora é a de que: "uma situação económica é ideal quando... aumentam os lucros". O que, dito em termos dos nossos interesses, vem a significar: "Só podemos ser felizes quando trabalhamos grátis numa parte cada vez maior das nossas vidas para umas quantas pessoas com quem nada temos a ver". Mas este mofar da maioria da população entra de modo furtivo no cérebro como se se tratasse de uma afirmação científica. A maioria de nós assegura o seu sustento e o das suas famílias mediante um salário. Unicamente os menos se dedicam a traficar com o trabalho dos mais. Os trabalhadores e empregados não obtêm lucros, não se enriquecem. Porque haveríamos de desejar lucros? Porque haveríamos de abrigar o desejo de trabalhar grátis para outros? É caricato esperar semelhante desejo da nossa parte. Contudo é precisamente isso que fazem os nossos planificadores da opinião. O que revela o quão fácil que é induzir as pessoas a realizarem os desejos de outrem. O que os teóricos da economia e fabricantes de opinião designam como lucro poderíamos nós utilizá-lo na forma de menos horas de trabalho, bens de consumo mais úteis, melhores habitações, meio ambiente mais saudável e diversões mais agradáveis. A inutilidade da produção é um dos efeitos mais perversos do domínio privado dos meios de produção.
Notas [1] Cf. Rauter, E. A.: Wie eine Meinung in einem Kopf entsteht. Über das Herstellen von Untertanen, München, 1971, p.12. [2] Este criminoso de guerra, que para maior sarcasmo recebeu o Prémio Nobel da Paz juntamente com o general e político vietnamita Le Duc Tho em 1973, negociava então com o seu nu integral que se vendia em poster nos supermercados. O vietnamita renunciou ao prémio. [3] O'Neal, Siv: "Os acordos de 'livre comércio' – Hipocrisia e ilusão", em www.axisoflogic.com, traduzido para Rebelión e Tlaxcala por Germán Leyens, publicado em Rebelión 11-01-2006. [4] Celebrado em Caracas a 16 de Novembro de 2005, publicada por Rebelión em 20.11.2005. [5] Cf. Romano, Vicente: Estampas, Barcelona 2004. [6] K. Marx e F. Engels: Manifesto comunista (1848), capítulo 2. [7] No seu livro "As veias abertas da América Latina". [8] Marx, C., Engels, F., "A ideologia alemã", La Habana 1966, nota de C. Marx na p.67. [9] Veja-se Khor, Martin: "Onde é que foi parar todo o dinheiro do Iraque?", Rebelión, 19-10-2005. [10] Sastre, Alfonso: "A batalha dos intelectuais", La Habana 2003, p.40. [11] Resumimos os parágrafos que consideramos mais pertinentes:
"PREOCUPADOS com os níveis de pobreza, desemprego e exclusão social em África; a falta de acesso à educação e formação, saúde, a proliferação de enfermidades e sobretudo do HIV/sida, da tuberculose, malária e outras doenças infecciosas; pelos prolongados conflitos em alguns países; a ameaça que representa não alcançar os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio; a falta de protecção social que afecta especialmente as mulheres, a juventude, as pessoas com incapacidades, tanto adultos como crianças, e a situação da maioria dos trabalhadores, sujeitos a más condições de saúde e segurança; PREOCUPADOS ADEMAIS porque a globalização não regulada conduz a crescentes desigualdades, à erosão dos direitos dos trabalhadores, ao crescimento do desemprego, ao aumento do número de "working poor" sobretudo na economia informal, às privatizações, à redução do papel do Estado, a desvalorizações do dinheiro, à supressão de subsídios, a que os custos da saúde e da educação tenham de ser suportados pelos cidadãos; à desregulação dos mercados de trabalho; CONSTERNADOS por algumas normas da OMC que representam um atentado contra os serviços públicos, tal como são postuladas no Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (AGCS), REAFIRMAMOS que os serviços públicos vitais – educação, saúde, água, transportes públicos e outros serviços de primeira necessidade – devem ser excluídos das negociações sobre a liberalização do comércio que decorrem sob os seus auspícios, e que os governos devem manter o direito de regular e proteger o interesse público; ESPECIALMENTE ESTUPEFACTOS pelo facto de os medicamentos imprescindíveis à vida (para doenças como a Sida/HIV, tuberculose e malária) estarem a ser negados aos pobres devido à persistência dos países desenvolvidos em salvaguardar os direitos de propriedade intelectual, contidos no acordo TRIPS; POR TODO O ANTERIOR, ACORDAMOS NO SEGUINTE: 3. - Apelar aos nossos governos para que impeçam a corrida em direcção ao mais baixo, em que se vêm obrigados a competir uns contra os outros, aviltando nesse processo as normas do trabalho para atrair investimento estrangeiro directo. 7. - No sector agrícola, conclamamos os países desenvolvidos a eliminarem todos os tipos de barreiras alfandegárias e não alfandegárias sobre os produtos provenientes do Sul, e que o Acordo sobre Agricultura assegure o respeito pelos trabalhadores agrícolas, e promova a segurança alimentar para todos. 10. - Pedimos mais transparência e democracia nos acordos comerciais internacionais, incluindo os processos de tomada de decisão na OMC, e o acesso dos sindicatos e de representantes de outras organizações democráticas à OMC. "
[12] Cf. Huws, Ursula: "A criação de um cibertariado. Trabalho virtual num mundo real" , Nova Iorque-Londres, 2003, pp. 126 e ss. [13] Cf. Romano, Vicente: "A formação da mentalidade submissa" , várias edições. Edição portuguesa: Deriva Editores , Porto, 2006, 165 pgs., ISBN 972-9250-20-0 Notas do tradutor [NT1] O autor está aqui a referir-se às noções "escolásticas" dos economistas do capital sobre o trabalho. Numa piada grosseira, poderíamos dizer: se o trabalho trabalha, mande-o trabalhar e aproveite para ir passear ou ler um bom livro. O trabalho é apenas e tão só: o amigo leitor ou eu a trabalhar. E o trabalho também não é um factor de produção: ele é a produção; apenas e tão só: o trabalhador em acção, em acto. [NT2] O cidadão francês Bunau-Varilla, designado como Enviado especial e Ministro plenipotenciário em Washington da acabada de formar República do Panamá. A 4 de Março formou-se o Governo provisório da nova República, e a 18 desse mesmo mês, já Bunau-Varilla, também representante da Nova Companhia do Canal do Panamá, assinava o tratado na capital norte-americana. [NT3] A palavra "noria", em castelhano, além de significar aparelho para tirar água dos poços, como nora em português, também tem o sentido de um emprego ou negócio em que nada se adianta, embora se trabalhe muito.
Vicente Romano
http://resistir.info/

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