Vou tentar mostrar aqui por três hipóteses que a verdade não é revelada pela fé, mas pela dúvida. Começarei pelo contraste entre o modelo Cristão e o modelo Hindu da escola advaita vedanta, o meu preferido nestas coisas da fé.Segundo o modelo Cristão o universo é uma criação deliberada de um deus inteligente. Há uma diferença clara entre o criador eterno e a criação temporal, que tem início e fim. Somos dotados de independência e autonomia, mas temos o dever de contribuir para um plano divino que é o propósito de toda a criação. O criador fez um universo com um propósito sério, recompensa quem contribui para esse fim, e castiga quem se opõe. O mal e o bem são absolutos, determinados pelo propósito do criador.Segundo o modelo Hindu a consciência de cada um de nós (atman) é idêntica ao ser absoluto para além do tudo e do nada (brahman). O universo não é uma criação, nem tem um propósito. Todos nós e tudo o que vivemos é esta totalidade consciente a brincar e a representar papeis, a fingir que é um médico, uma professora, um morcego, uma pedra, e a perder-se num jogo de faz-de-conta sem inicio nem fim. Não há um propósito. É como uma música ou uma dança; o objectivo não é levar o bailarino deste lado do palco àquele, mas sim dançar. É um fim em si mesmo, e não há mais nada que isto. Não há mal nem bem, culpa nem castigo, mas sim karma, a relação entre acto e consequência que dá drama a esta peça.Estes são apenas dois exemplos de milhares de modelos contraditórios que a fé criou. Mas se a fé traz discórdia, a dúvida traz consenso. O terceiro modelo, dado pela ciência moderna, inverte a posição da consciência no processo. Sendo humanos vemos tudo com consciência, e por isso assumimos que a consciência está na origem das coisas. Mas combatendo esta tendência compreendemos a consciência como o produto de processos inconscientes. Como a chuva, o diamante, ou a divisão celular. Assim vemos um universo que é. Não é para. Não é porque. É. Neste modelo o mal e o bem, explicações, razões, causas, tudo isso são conceitos nossos que podemos aplicar apenas onde aplicável. A realidade transcendente é a realidade que, a qualquer momento, nos transcende, mas que se torna acessível quando desenvolvemos ferramentas materiais e conceptuais para a compreender. O electromagnetismo, a gravidade, o DNA, a vida. A origem do universo. A consciência em si, eventualmente.Mas falei inicialmente de três hipóteses, e não de modelos. Estas hipóteses são que cada um destes modelos corresponde à realidade. Separar a hipótese do modelo pode parecer um preciosismo desnecessário, mas é importante. Se virmos o modelo como verdadeiro ou falso vamos avalia-lo de dentro do modelo e cair em argumentos circulares. A consistência interna [...], ou o acreditar para compreender e compreender para acreditar, como dizia Ricoeur. Mas a hipótese de o modelo corresponder à realidade é exterior ao modelo, e por isso a única forma de validar o modelo é compará-lo com a realidade externa ao modelo. Qualquer que seja o modelo.A fé é a nossa relação íntima com o modelo. A dúvida questiona a hipótese de o modelo corresponder à realidade e abre o modelo ao confronto com o que observamos à nossa volta. É a dúvida que usa os modelos para revelar o que a realidade nos esconde.Concordo [...] que o 'revelatum' é para todos. A realidade revela-se a todos. Mas pela dúvida, não pela fé. É por tentar encaixar modelos com a realidade que a ciência se torna uma e igual para todos, e este confronto constante entre modelos e realidade amplia gradualmente o nosso conhecimento. A fé é o apego sentimental a um modelo qualquer, e gera um conjunto disjunto de crenças contraditórias que são mais reveladoras das limitações humanas que da realidade que nos transcende.»
João Vasco
http://www.ateismo.net/diario/
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