«J. C. das Neves brindou-nos na passada segunda-feira com mais uma crónica inenarrável.
Num momento raro de puro delírio tomista, o inefável cavaleiro da Pérola Redonda assume finalmente a «enorme derrota para a Igreja» do dia 11 de Fevereiro, depois de na semana passada se ter recusado a comentar o que classificou como «boa discussão de taberna».
JC das Neves demorou a reconhecer que, como referia Vital Moreira num artigo indispensável no El Pais, «desde a implantação da República que a Igreja Católica não sofria uma derrota política tão profunda e desta vez directamente às mãos do voto popular. Decididamente, ela deixou de comandar a consciência moral dos portugueses e as opções políticas do Estado».
Tal como aconteceu aos bispos nacionais que emudeceram de choque pela estrondosa vitória do SIM, conseguida apesar dos apelos ao NÃO dos assalariados da Igreja, das ameaças de excomunhão, das Virgens lacrimejantes, dos terços, procissões, vigílias, missas, panfletos terroristas distribuídos em infantários e escolas, inúmeros artigos em jornais diocesanos, paroquiais e nos jornais regionais que controlam.
De facto, embora o opinador de segunda afirme ser «algo exagerado identificar o ‘não’ com a Igreja católica» - «mas não muito» - confirma ter sido «a única grande entidade que se empenhou a fundo na luta desse lado e perdeu largamente». E uma ronda rápida pelos blogs católicos mais conservadores confirma terem sido os motores do NÃO essencialmente grupos ligados ao Opus Dei e Comunhão e Libertação - os tais grupos «iluminados pelos ensinamentos de D. Luigi Giussani ou S. JoseMaria Escrivá » referidos por um dos comentadores do Fiat Lux.
Algo a que os debates para que fui convidada como representante do SIM ou assisti (nomeadamente os dois Prós&Contras) durante a campanha me permitiu confirmar em primeira mão.
Os cruzados pela talibanização de Portugal estavam tão confiantes na vitória do NÃO - como demonstrado no frente a frente de JC das Neves com Daniel Oliveira na TSF, em que o spin doctor católico debitou pérolas como «Esta atitude laxista relativamente ao aborto vai dar uma volta. Nós daqui a uns tempos vamos discutir de novo a lei de 84», isto é, em caso de vitória do NÃO pretendiam uma regressão civilizacional para uma situação semelhante à do Chile, Malta, El Salvador ou Nicarágua. Pilares da moral e bons costumes católicos em que o aborto é proíbido, mesmo para salvar a vida de uma mulher, e até no caso de uma gravidez ectópica em que o embrião não tem qualquer hipótese de sobrevivência!
A confrontação dos totalitários católicos com a realidade inesperada de um Portugal mais laico, resultou em prosas que ultrapassam todos os limites do decoro. A análise do referendo debitada pela CEP é especialmente vergonhosa.
Para além de ameaçar os muitos católicos que votaram SIM convidando-os implicitamente a sair se não aceitarem «as exigências de fidelidade à Igreja a que pertencem e às verdades fundamentais da sua doutrina», isto é, se se atreverem a pensar pelas respectivas cabeças, os obscurantistas da ICAR atribuem a «lacunas na formação da inteligência». Isto é, na linha de Bento XVI que afirmou ser irracional a ciência, os nossos irritados bispos chamam burros inconscientes e desprovidos de «valores éticos fundamentais» todos os que votaram SIM.
Como se a Igreja das Cruzadas e da Inquisição fosse detentora da «moral absoluta» e não pudesse existir moralidade fora dos seus ditames!
Mas o cúmulo do ressabiamento é encontrado na prosa do paladino da moral e bons costumes, cruzado contra telemóveis e pastéis de nata, que inspirou este post. JC das Neves verbera que «quando a Igreja perde, quase ninguém ganha» esquecendo que, para bem da sociedade, desde meados do século XIX que a Igreja perde todas as batalhas políticas.
De facto, desde o reinado de Pio IX que a Igreja reage à perda de poder político como Antero de Quental indicou: «fortificar a ortodoxia, concentrando todas as forças, disciplinando e centralizando; empedernir a Igreja, para a tornar inabalável». E desde o reinado de Pio IX que os valores em que assentam a nossa civilização ocidental têm vindo a ser lenta mas firmemente construídos contra a empedernida Igreja de Roma.
A Igreja combateu ferozmente tudo o que ameaçasse o poder absoluto papal – ver, por exemplo, a encíclica Quanta cura (1864) e seu famoso apêndice, o Sílabo de Erros -, da impossibilidade de a Igreja impor à força a sua doutrina (erro 24º), até à liberdade de expressão, que corrompe as almas, passando pela tolerância religiosa, a democracia, a laicidade, a liberdade de consciência e de imprensa, até à possibilidade de um governo legislar sem os auspícios de Roma, tudo que fosse ou parecesse moderno merecia o anátema da Igreja de Roma, que bramia estar sob ataque de forças demoníacas empenhadas em desacreditar ou destruir os dogmas da fé!
Em termos tão ou mais veementes que os usados pelos totalitários católicos actuais.
No entanto, poucos serão os que no século XXI não reconhecem a virtude dos direitos humanos e da democracia – declarada já no século XX na bula Immortale Dei como incompatível com o catolicismo -, que mereceram da Igreja um combate tão feroz como o aborto ou o reconhecimento de direitos a homossexuais hoje em dia!
Mas a pérola mais redonda da diatribe de JC das Neves é a efabulação das consequências da despenalização do aborto.
Especialmente sensibilizante para um libertária de esquerda é a preocupação demonstrada pelo conservador católico de direita (um pleonasmo, eu sei, mas hoje sinto-me dada a figuras de estilo) com a sobrevivência da esquerda, já que de acordo com o fazedor de opinião católica, o aborto «assolará sobretudo as classes mais pobres» e como tal «minará a base eleitoral dos partidos de Esquerda».
Pessoalmente dispenso as preocupações do cavaleiro da pérola redonda com o futuro da minha área política mas de qualquer forma não deixo de notar que um aumento exponencial com a pobreza só se regista para a religião.
Aliás, imediatamente antes do seu final apoteótico (ou apopléctico) em que J. C. das Neves promete que a «luta continua» - nomeadamente aludindo a um possível veto jurídico do diploma, na hipótese de o Opus Dei conseguir manobrar as nomeações do TC - , este tem um lapso de lucidez e carpe as suas preocupações: haverá «menos crianças a correr nos bairros de lata», «menos crianças abandonadas, menos deficientes, menos criminosos».
Fico na dúvida se é esta previsão e as suas consequências para a propagação da fé que tanto o angustiam. Porque todos os dados internacionais indicam que a legalização da IVG diminuiu progressivamente o número de «cadáveres pequeninos», a forma artística de referir um embrião, para além de tornar realidades do passado os cadáveres de mulheres vítimas do aborto clandestino que ele persiste em defender!».
Palmira F. da Silva
http://www.rprecision.blogspot.com/
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