Por fim esmagado, o assalto de meados de Outubro dos rebeldes muçulmanos em Naltchik, a capital da Cabárdia e Balkária, veio confirmar que a guerra levada a cabo por Moscovo na Tchetchénia abala as suas posições em todo o Norte do Cáucaso. Além disso, prejudica o relançamento da política internacional da Rússia.
A constatação é amarga e reveladora: «A queda da União Soviética foi o principal desastre geopolítico do século. Para a nação russa, tratou-se de um verdadeiro drama», declarou o presidente Vladimir Putin durante o seu discurso anual ao Parlamento, a 25 de Abril de 2005. Putin expressava desta forma a perturbação do Kremlin face ao inevitável declínio do seu poderio e à perda das conquistas territoriais acumuladas ao longo de três séculos.
Se se assistiu a uma espectacular reaproximação aos Estados Unidos e à União Europeia, na sequência dos acontecimentos de 11 de Setembro, os factores de tensões não cessaram de se acumular desde o fim de 2003, nomeadamente na sequência da “revolução das rosas” na Geórgia e da “revolução laranja” na Ucrânia, sem contar com as divergências acerca do Irão [1]. Em Moscovo, especialistas, diplomatas e responsáveis políticos interrogam se. Deverá a Rússia procurar estabelecer uma parceria estratégica com os Estados Unidos? Ou aproximar se da China? E como travar o declínio da sua influência no espaço pós-soviético?
Chegado ao poder em 1999, Putin pretendia restaurar a posição da Rússia na cena internacional. Numerosos especialistas aconselharam-no então a romper com a política preconizada pelo antigo primeiro-ministro Evgueni Primakov [2]. Em lugar de se esgotar em busca de um mundo multipolar, sinónimo de confronto com Washington, a Rússia deveria recentrar-se sobre interesses considerados vitais, integrando-se na economia mundial de forma a modernizar-se. Era então necessário operar uma reaproximação aos Estados Unidos e à Europa, abandonar a retórica de superpotência e desmilitarizar as relações com o Ocidente.
Os atentados de 11 de Setembro forneceram a Putin a ocasião de levar a cabo esta revisão profunda da política externa. A parceria estratégica estabelecida então com os Estados Unidos e os europeus articulava-se em torno de quatro eixos: luta comum contra o terrorismo islâmico; gestão partilhada da zona de crise na Ásia Central; semi-integração da Rússia na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN); e cooperação energética.
Esta mudança traduziu-se imediatamente no apoio de Moscovo à intervenção no Afeganistão, na abertura de bases militares americanas no Uzbequistão e no Quirguistão, na criação do Conselho Rússia-OTAN e na aceitação do alargamento da Aliança aos Estados bálticos, e no desenvolvimento de projecto de cooperação no domínio do petróleo e do gás. Até 2004, esta política resistiu a todos os choques, incluindo a guerra americano britânica no Iraque.
É verdade que a Rússia se situava no campo dos opositores à guerra, ao lado da França e da Alemanha, mas cuidava de tratar Washington de forma delicada, deixando Paris conduzir a contestação no seio do Conselho de Segurança. Depois da queda do presidente Saddam Hussein, embora continuando a proclamar a sua oposição de princípio à ocupação do Iraque, Moscovo votou as resoluções das Nações Unidas, recebeu as novas autoridades iraquianas e deu o seu consentimento ao suprimento da dívida de Bagdade (8 mil milhões de dólares).
Embora seja favorável à retirada das tropas anglo-americanas do Iraque, o presidente Putin evita exercer qualquer pressão sobre Washington. De facto, procura cuidar dos interesses russos no Iraque, nomeadamente da companhia petrolífera Lukoil que assinara, sob a égide do antigo regime, um contrato de exploração do campo petrolífero de West Qurna. A venda pelo Estado russo, em 2004, à companhia norte americana ConocoPhilips de 7,59 por cento do capital da Lukoil que ainda detinha abriu caminho a um regresso desta última ao Iraque.
A reacção de Moscovo às “revoluções coloridas” da Geórgia e da Ucrânia desvelou a ambiguidade da reaproximação entre a Rússia, os Estados Unidos e a Europa. Para o Kremlin, estes acontecimentos não constituem propriamente o produto da mobilização das sociedades civis contra regimes corruptos, incompetentes e criminosos, mas o resultado de uma conspiração fomentada por Washington para reduzir a influência da Rússia no espaço pós-soviético e para pilhar as suas riquezas.
A viragem “pró-ocidental” que Moscovo empreendeu em 2001 assentava numa cooperação centrada na luta contra um inimigo comum – o terrorismo, qualificado por Putin, na tribuna das Nações Unidas a 15 de Setembro de 2005, como o «sucessor ideológico do nazismo» – e não sobre a promoção da democracia na Rússia ou no espaço pós-soviético. Apoiava se numa aliança com as forças mais conservadoras do Ocidente, incarnadas por George W. Bush, Silvio Berlusconi e Ariel Sharon.
Sob diversos aspectos, os presidentes russo e americano partilham a mesma visão do mundo: prioridade à soberania, centralidade das relações de força, discurso de potência, hostilidade para com a ingerência humanitária e a justiça internacional. A própria ideia de guerra preventiva choca muito pouco Moscovo: o ministro da Defesa Serguei Ivanov considera a abertamente sempre que «os interesses da Rússia ou as suas obrigações para com os seus aliados o exijam» [3]. Mas o Kremlin exige do Ocidente duas contrapartidas: silêncio sobre a guerra na Tchetchénia, apresentada aliás como uma contribuição para a luta global contra o terrorismo, e sobre as evoluções da política interna russa; e reconhecimento dos interesses da Rússia no espaço pós soviético.
MARTELO AMERICANO, BIGORNA CHINESA
No entanto, no decurso dos anos, as críticas de Washington, e em menor medida de Bruxelas, multiplicaram se não só no que diz respeito à guerra na Tchetchénia como também aos atentados às liberdades e ao pluralismo na Rússia. Agastado pelos comentários de certos dirigentes ocidentais sobre a intervenção das forças russas aquando do sequestro de reféns de Beslan, em Setembro de 2004, e pela “revolução laranja” na Ucrânia, Putin atacou, por ocasião das suas viagens à Índia e à Turquia [4] o Ocidente «de chapéu colonial» que exerce, «nos assuntos internacionais, um ditadura disfarçada por uma bela fraseologia pseudo democrática». A acumulação de factores de tensão com os países ocidentais e os revezes da diplomacia russa na Geórgia e na Ucrânia suscitam em Moscovo um debate, certamente limitado, sobre a política externa do presidente Putin [5]. Será de considerar uma nova mudança de rumo?
A reaproximação à China, operada durante 2005, alimenta estas interrogações. Depois de ter resolvido em 2004 o seu último diferendo fronteiriço sobre as ilhas da região de Khabarovsk, Moscovo e Pequim reforçaram as suas relações no quadro da Organização de Cooperação de Xangai [6], indo ao ponto de efectuar, pela primeira vez, em Agosto de 2005, manobras militares comuns de grande envergadura no Pacífico.
Tratar-se-á da primeira etapa no sentido de uma aliança mais estreita dirigida contra Washington? São vários os obstáculos que se levantam nesse caso [7]. As relações entre os dois países são marcadas por uma desconfiança recíproca, tendo cada um receio que o outro o instrumentalize na sua relação com os Estados Unidos. A China está envolvida numa escalada rápida para se transformar numa potência, tanto no plano económico como militar, enquanto a Rússia se esforça para deter o seu declínio e para voltar a ser uma potência regional. Uma cooperação demasiado estreita poderia, em caso de conflito entre Washington e Pequim, colocar a Rússia entre o martelo americano e a bigorna chinesa – uma configuração que Moscovo, segundo os especialistas russos, deve evitar a todo o custo. O objectivo da cooperação com a China deveria residir no desenvolvimento do Extremo Oriente russo e da Sibéria, perigosamente ameaçados pelo declínio demográfico, apesar de as principais riquezas da Rússia, nomeadamente os hidrocarbonetos, se encontrarem aí concentradas [8].
Sempre que as relações com Washington se degradam, Moscovo tem tendência a virar-se para a Europa, e vice versa. Com a crise na Ucrânia, teve de fazer face a uma tensão simultânea com os Estados Unidos e a União Europeia. Em virtude da sua obsessão com a OTAN, a Rússia não se tinha preparado minimamente para o alargamento da União, cujas consequências são, não obstante, muito mais importantes sobre o plano das trocas económicas e da circulação de pessoas ou das relações com os Estados pós-soviéticos.
As negociações prévias ao alargamento foram frequentemente tensas entre Moscovo e Bruxelas. A política europeia de vizinhança (PEV) destinada aos novos Estados fronteiriços da União (Bielorússia, Ucrânia, Moldávia, Rússia e Estados do Cáucaso) suscita inquietação em Moscovo, que vê nela mais uma tentativa de reduzir a sua influência no espaço pós-soviético [9]. A questão dos «valores comuns» está também na origem de diversos conflitos entre a Rússia, a União e as outras instituições europeias, nomeadamente a propósito da situação na Tchetchénia e do respeito dos princípios democráticos.
Em contrapartida, a Rússia mantém excelentes relações com certos Estados-membros, em particular com a Alemanha [10], a Itália e, em menor grau, a França, o que não deixa de criar divergências no seio da União entre os partidários da cooperação com Moscovo e aqueles que são favoráveis a uma atitude de fechamento, nomeadamente os Estados bálticos e a Polónia. Tanto mais que as relações destes últimos com a Rússia se degradaram claramente, em virtude de um passado que não sara e da sua proximidade com Washington [11].
A meio do seu segundo mandato, Putin parece não ter estratégia. Aquela por que enveredou na sequência dos acontecimentos de 11 de Setembro de 2001 não produziu os resultados esperados. Mas não existe solução alternativa, a não ser isolar a Rússia e cortar os instrumentos (capitais, tecnologias, inserção em estruturas da globalização) necessários à sua modernização. Moscovo sofre de fraquezas estruturais (declínio demográfico, economia rentista, centralização excessiva do poder conjugado com a fraqueza do Estado, inexistência de contrapoderes reais, etc.), que fazem de si um actor de segundo plano na cena internacional, independentemente das suas armas nucleares, do seu lugar permanente no Conselho de Segurança e do seu estatuto de membro do G8 – cuja cimeira acolherá pela primeira vez em 2006. Para além dos enormes custos humanos e financeiros envolvidos, a interminável guerra na Tchetchénia atingiu a imagem da Rússia de uma forma perene, aplicou um rude golpe na sua democratização e alimentou o terrorismo islâmico.
A curto prazo, Moscovo dispõe de dois trunfos. Antes de mais a formidável bênção que constitui para a economia os elevados preços do petróleo. Em virtude da instabilidade do Médio Oriente, os europeus e os norte americanos, desejosos de diversificar as suas fontes de aprovisionamento, irão aumentar as suas importações de hidrocarbonetos russos. O reverso da medalha consiste no facto de que a Rússia se arrisca a transformar se em pouco mais do que um Estado que vive dos rendimentos. O segundo trunfo reside nas próprias dificuldades dos Estados Unidos e dos europeus.
Para além do Iraque e do Irão, a Ásia Central tem vindo a tornar-se uma fonte de preocupação para Washington. Na sequência de críticas à repressão em Andijan [12], o presidente uzbeque Islam Karimov fechou a base americana, aberta em 2001 para as operações no Afeganistão, e aproximou-se de Moscovo. Trata se do primeiro revés importante dos Estados Unidos nesta região. Quanto aos europeus, serão mobilizados pela gestão do alargamento realizado em 2004 e pela busca de uma solução para o problema do Projecto de Constituição. Sem esquecer as divisões transatlânticas e intra europeias que estão longe de estarem ultrapassadas. A Rússia dispõe assim de um prazo e de uma certa margem de manobra. Saberá ela aproveitá la para renovar a sua estratégia e os seus métodos e tornar-se num modelo atractivo para os seus vizinhos?
[1] A Rússia opõe-se ao embargo do Conselho de Segurança em virtude da sua participação no programa nuclear civil iraniano. Obteve o contrato para a construção da central nuclear de Buchehr por um montante de 800 milhões de dólares. Tendo negociado um acordo sobre o repatriamento para a Rússia do combustível utilizado, Moscovo assegura ter recebido a garantia de que a produção da central não será desviada para fins militares (ler Carine Clément e Denis Paillard, Dez faces da sociedade russa, Le Monde diplomatique, Novembro 2005).
[2] Cf. “La politique étrangère russe. A l’Ouest, du nouveau!”, Le Courrier des pays de l’Est, n.º 1038, Paris, Setembro de 2003.
[3] Nezavissimaïa Gazeta, Moscovo, 3 de Outubro de 2003.
[4] 3 e 6 de Dezembro de 2004, ver o sítio do Kremlin.
[5] Cf. os artigos de Serguei Karaganov, especialista próximo do Kremlin, Rossiiskaïa Gazeta, Moscovo, 13 e 22 de Setembro de 2005.
[6] Criado em 1996 pela Rússia, a China, o Cazaquistão, o Quirguistão, e o Tadjiquistão, o grupo de Xangai tornou se na Organização de Cooperação de Xangai em Junho de 2001, com a adesão do Uzbequistão. As suas actividades dizem antes de mais respeito a questões de segurança regional, em particular a luta antiterrorista. Em Julho de 2005, o Paquistão e o Irão tornaram-se observadores.
[7] Bobo Lo, “Un équilibre fragile: les relations sino-russes”, Russie. CEI. Visions, n.º 1, IFRI, Paris, Abril de 2005.
[8] Dmitri Trenin, “Aziatski vektor v strategii Moskvy”, Nezavissimaïa Gazeta, 27 de Outubro de 2003.
[9] Isabelle Facon, “La politique européenne de la Russie: ambitions anciennes, nouveaux enjeux”, Questions internationales, Paris, n.º 15, Setembro Outubro de 2005.
[10] A Alemanha é o principal parceiro comercial da Rússia (14 % das importações e 7,8 % das exportações), o principal investidor estrangeiro (mais de 10 mil milhões de dólares de stocks) e o principal credor (Berlim detém metade da dívida externa russa, 20 mil milhões de dólares em 40, no quadro do Clube de Paris). Putin e Shröder assinaram, a 8 de Setembro, um acordo sobre a criação de um gasoduto submarino no mar Báltico entre os dois países, que entrará em actividade em 2010 e deverá assegurar, a prazo, metade do consumo alemão de gás. Este projecto provocou fortes reacções na Polónia e nos países bálticos.
[11] Céline Bayou, “Etats baltes-Russie. 1er mai 2004 – 9 mai 2005: un authentique dialogue de sourds”, Le Courrier des pays de l’Est, Paris, n.º 1048, Paris, Março-Abril de 2005.
[12] Cf. Vicken Cheterian, Bain de sang en Ouzbékistan, Le Monde diplomatique, Outubro de 2005.
Laurent Rucker
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/europa/e066.htm
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