Na sequência da vitória do Sim no referendo, José Sócrates fez um anúncio inesperado: «Quero dizer vos do fundo do coração que talvez não tenha vivido uma noite como a de domingo, em que senti que o Partido Socialista merecia ser classificado como um partido progressista». Não se podia pedir mais sinceridade ao primeiro-ministro.
O PS tinha uma dívida com gerações de mulheres portuguesas. A vida de milhares delas teria sido bem diferente se, nos anos 80, os governos Soares tivessem enfrentado o conservadorismo ou se, nos anos 90, Guterres não tivesse feito campanha pelo Não no referendo. Não devemos diminuir o feito de Sócrates: ele não podia manter aquela dívida e saldou-a. Fez parte da vitória e teve direito à sua noite de domingo. Mas alguns comentadores quiseram ir mais longe: o referendo teria reconciliado os sectores juvenis e urbanos com Sócrates, o grande intérprete dos valores modernos do respeito pela escolha e pela autonomia individual. Creio que essa ideia não se sustenta, como uma noite de domingo que quer escapar à manhã de segunda-feira.
Não há reconciliação nenhuma. A juventude das grandes cidades votou Sim para corrigir um dos mais vergonhosos sinais de atraso do país. Não o fez seduzida pelos apelos de um governo que mantém o atraso na vida de quem procura iniciar o seu caminho. De facto, os jovens trabalhadores estão entre as primeiras vítimas do pior conservadorismo do governo, que prolonga o modelo económico da direita e recusa a emancipação pessoal dos jovens, tratando-os como trabalhadores menores em direitos e eternos hóspedes da casa paterna.
O INE acaba de divulgar o desemprego mais alto das últimas duas décadas (pior entre os jovens: uma em cada 5 mulheres até 25 anos, um em cada 7 homens). Na mesma semana, o governo anuncia que vai correr com os mais de três mil jovens que completaram um ano de estágio na Função Pública. Foram baratos enquanto duraram – 600 ou 800 euros mensais – e vão para o desemprego sem direito a qualquer subsídio. Segundo o DN, «não é porque os serviços não precisem deles, simplesmente não têm dinheiro para lhes pagar». O Estado usa os estagiários como qualquer outro patrão delinquente: para pagar pouco e despedir sem problemas. Essa é a regra do governo socialista para o mercado de trabalho juvenil, como fica à vista na sua recente lei para o trabalho temporário. A lei vem alargar a contratação através de empresa de trabalho temporário (ETT) de um para três anos! Ora, todos sabem como funciona a máfia do trabalho temporário, um negócio que cresce 12% ao ano, presente em todos os sectores de actividade e predominante entre os jovens e nas grandes empresas. Nos call centers da PT, por exemplo, dos 6200 trabalhadores, 5000 são recrutados por ETTs, como se não executassem serviços de que a PT necessita sempre. Estes trabalhadores têm contratos diferentes entre si, salários desiguais para funções semelhantes, flexibilidade total e insegurança permanente.
A “geração 500 euros” transita de emprego em emprego, ao sabor da conveniência das ETT (que subtraem parte do que deveria ser salário) ou de outras formas da precariedade juvenil (estágios, recibos verdes, contratos a prazo). Muitos jovens trabalhadores só encontram “empregos para estudantes” até demasiado tarde. São trabalhadores pobres, dependentes do apoio da família, sem perspectivas de poder enfrentar o mercado da habitação para conquistar a sua autonomia. Ora, é exactamente ao sector da habitação que o governo Sócrates aponta o seu ataque mais recente. Durante a campanha para o referendo, o governo anunciou a redução para metade do valor atribuído ao incentivo ao arrendamento jovem, que apoiava 25 mil jovens em todo o país. Uma após outra, as medidas de política social do PS para a juventude sucedem se no mesmo sentido: o Estado desvaloriza a autonomia dos jovens, descarrega as suas responsabilidades sobre as famílias e recusa apoios que o conjunto da sociedade deveria estar interessada em prestar a quem inicia uma vida independente em condições sociais adversas. A modernidade de José Sócrates esbarra no seu liberalismo.
A vitória do Sim acertou finalmente o relógio do país com a lei de humanidade vigente na Europa: a maternidade como escolha e a saúde como direito das mulheres. Mas José Sócrates tem razão: ele não viveu outra “noite progressista” como a de domingo. Cada dia do seu governo liberal é mais um dia de atraso.
Jorge Costa
Esquerda
http://www.infoalternativa.org/portugal/port147.htm
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