A cultura do escândalo como expressão da falta de perspectiva social
Já nada funciona, mas tudo é possível. Esta podia ser a divisa pós-moderna para a República das Bananas Democrática Alemã. Uma novela puxa a outra. A rede de corrupção no conglomerado Siemens revela pouco a pouco toda a sua dimensão. Mal o presidente da direcção, Kleinfeld, tinha acabado de ter a canseira de escamotear a mais recente caixa negra vinda a lume, invocando a legendária "honorabilidade" da empresa, surgem novos indícios de subornos destinados a aplicações na China, precisamente em participações em redes de telefones móveis, que foram oferecidas de forma duvidosa ao conglomerado Ben-Q de Taiwan. Com o conhecido resultado de uma falência igualmente duvidosa, com despedimentos em massa. Ao que parece, a lavagem de dinheiro já não é privilégio da máfia, tornando-se, agora, num banalíssimo "business as usual". De tal maneira que a multa record da Comissão Europeia contra a Siemens por práticas concertadas quase não provoca mossa.
Aconteceu alguma coisa? E mesmo que tenha acontecido, a queda da imagem dos deuses do Olimpo é uma queda suave. O chefe do Deutsche-Bank, Ackermann, que depois do processo Mannesmann pôde passar para Kleinfeld o papel de mau da fita mediático, demonstrou isso mesmo: fama arruinada, vida encantada. O mesmo é válido para Peter Hartz, que agora finalmente pôde ser apodado de "cadastrado", como confesso pensionista da direcção do conglomerado-escândalo Volkswagen. As suas entradas subvencionadas em bordéis, em compatível companhia dos príncipes do conselho de empresa, fazem parte dos ‘peanuts’ das práticas tornadas sebentas dos negócios e da co-gestão. Só é embaraçoso que se trate do presumido inventor da maior carecada social da história do pós-guerra, que leva o seu nome. O chefe do grupo parlamentar do SPD no Bundestag, Peter Struck, lembrou a propósito que já não fica bem a gloriosa reforma do mercado de trabalho chamar-se "Hartz". "O termo traz má reputação" disse com toda a candura Struck, lavado e barbeado.
A fúria é grande, mas onde chega ela? Um representante dos pequenos accionistas da Siemens, tremendo com a ousadia, formulou a exigência de "consequências pessoais". Os peões querem ver cabeças a rolar. E, "qual porta-voz [Bild]", permitiu-se revoltar-se contra a pensão de luxo de 25.718 euros do criminoso da concertação social, Hartz, que se safou duma pena de prisão. Mas, quanto mais se inflaciona a tufada encenação de batedor [Haberfeld-Treiben], mais ela perde o seu interesse de entretenimento mediático. Cada sociedade tem as personagens que merece, como já Karl Marx sabia. Também já não adianta mandar fazer a rotação das máscaras de carácter. Não é por acaso que são precisamente a Siemens e a Volkswagen, os ícones do milagre económico, que se afundam no pântano da corrupção. A Alemanha, S. A. desfaz-se na globalização do capitalismo de crise. Isto é também o fim de uma cultura de empresa, em que a "família Siemens" pôde medrar, à semelhança do corporativismo da Volkswagen. Aliás, esta cultura tinha as suas raízes na ideologia da comunidade de povo do nacional-socialismo. Agora desfaz-se a falsa integração social da época fordista, sem que surja um novo paradigma no seu lugar.
O desfazer das estruturas institucionais vai a par de um abrangente abandalhamento moral. O que não é novo na história. E a mafiosização das relações também não é nenhuma especialidade da decadente Alemanha, S.A. Seja no Japão, na União Europeia ou nos países anglo-saxónicos, sem esquecer a nova estrela da economia mundial que é a China, por todo o lado a retórica dos representantes oficiais e suas figuras de proa sobre a retoma, o realismo e a justiça é contrariada por uma avalanche de affaires. Pelo menos no campeonato mundial da corrupção há uma corrida disputada ao milímetro. Tanto os "cães danados" com autoritário queixo anguloso, como as cool mulheres de carreira na gestão e na classe política, revelam-se simulacros de uma seriedade que já não existe. O que não admira, perante a instabilidade de uma conjuntura de déficit global, em que já não há nenhuma estratégia capaz. A dispneia da expressão de sucesso dos números do trimestre e da campanha eleitoral simulada leva a que nem sempre se ande com o Código debaixo do braço.
É na falta de perspectiva social que floresce a nova cultura do escândalo. Mesmo o que se vende na ciência e nos media, como conceitos de domínio, é puro e simples escândalo intelectual de alimento de refugo. E quando não há mais nada para dizer da substância diz-se das pessoas. Todos serram a cadeira do vizinho e, consequentemente, a própria. Os affaires são acompanhados de opacas sacanices do poder a todos os níveis, na "Spiegel" tal como na Editora Suhrkamp ou na CSU. Cada um tem qualquer coisa a apontar a cada qual; quase todos têm manchas na ficha. O assassinato do rei ou o derrube do guru tornaram-se um desporto, porque ninguém sabe fazer mais nada. E os pretendentes à coroa também têm um ar cada vez mais estranho.
A sociedade transformou-se num grande ninho de intriga global. Quando os conteúdos se tornam indiferentes surge um "capitalismo mental", com a sua espectacular "economia da atenção". Aqui só se chega a um lugar pessoal de curta duração no "hit-parade", para se tornar famoso nos célebres cinco minutos, e também rapidamente cravar um pouco de valimento e de valor monetário. Nesta situação a palavra salvadora de uma nova crítica social radical não será seguramente dita pelos moralistas populistas de esquerda. Após o fim do socialismo de Estado, para a necessária mudança fundamental [Umwälzung] das relações é precisa uma nova perspectiva, que não imiscuir-se na personalização geral dos problemas da crise, porque aqui está em agenda apenas e ainda a nostálgica saudade do capitalismo do posto de trabalho honesto.
Robert Kurz
http://obeco.planetaclix.pt/
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