sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Para além de Estado e Mercado

Existe um sonho característico da modernidade: o sonho da emancipação social, da autodeterminação do homem, de uma produção autônoma da vida. Ao mesmo tempo, o processo histórico da modernização destruiu a economia agrária, deu livre curso à produção de mercadorias e transformou todas as relações sociais em relações monetárias. Instituições pouco desenvolvidas, como o Estado e o mercado, tornaram-se formas híbridas e começaram a preencher todo o espaço social. O que foi feito do sonho da emancipação social?
O projeto das reformas sociais, da libertação nacional e do socialismo, estavam baseados, sem exceção, no controle estatal do mercado. O Estado social keynesiano do Ocidente propunha retirar o excedente monetário do mercado e revertê-Io em benefício de programas sociais. Como "empreendedor geral", o Estado socialista do Oriente e do hemisfério Sul arrogava-se o direito de decretar ao mercado seus próprios preços e salários. Em ambos os casos, os homens eram meros objetos de uma burocracia que desmoronou por fim sob o peso do mercado globalizado. Ao contrário do que afirma o liberalismo, o mercado não é uma esfera de ação autônoma para os homens, mas, simplesmente, o reverso da mesma medalha. O próprio mercado é o responsável pela sujeição dos homens à "ditadura muda" do dinheiro e da rentabilidade econômica. É por isso que a crítica ao Estado feita pelo mercado liberal é tão pouco emancipatória quanto a crítica ao mercado feita pelo Estado socialista. A liberalização econômica serve apenas para frustrar as últimas esperanças de responsabilidade social, disfarçadas no capitalismo e no socialismo, com as máscaras burocráticas do aparato estatal.
No limiar do século XXI, o sistema híbrido composto pelo Estado e mercado parece conduzir às raias do absurdo. De fato, se este sistema não é mais capaz de integrar socialmente milhões de pessoas em todo o mundo, ele está condenado a deixar de ser a forma predominante de sociedade. Em razão disso, um número cada vez maior de vozes ergue-se para propor novas formas de reprodução social, para além do Estado e do mercado. Em sua "Crítica da Razão Econômica", o sociólogo francês André Gorz introduziu o conceito de atividades autônomas, organizadas pela reunião de voluntários nas "microesferas sociais" de bairros e distritos. Sua idéia está voltada, sobretudo, para atividades culturais ou sociais, como, por exemplo, a criação de creches e asilos, mas tem em vista também a produção de alimentos e bens de necessidade básica. Jeremy Rifkin, economista e crítico social norte-americano, chega mesmo a vislumbrar uma "era pós-mercado", com o desenvolvimento de um terceiro setor como âmbito social autónomo.
Não se trata, como pode parecer à primeira vista, de pura elucubração teórica. Nos últimos 10 ou 20 anos, o mundo viu crescer a importância de um espaço social difuso entre o Estado e o mercado. Não me refiro aqui à "economia informal", que muitas vezes não passa de um mercado ilegal e brutalizado. Ao contrário, o terceiro setor é composto da união de inúmeros agrupamentos voluntários, destinados a conter a miséria social e barrar a destruição ecológica. A maioria desses grupos dá grande valor à administração autônoma. No campo prático, eles avançam no terreno abandonado pelo mercado e pelo Estado em virtude da baixa rentabilidade ou da falta de recursos financeiros. Suas atividades abrangem desde a criação de cozinhas públicas, o cultivo de hortas e a coleta de lixo, até serviços de creche, reforma de moradias e organizações de escolas particulares. Dentre os nomes citados por Jeremy Rifkin, estão entidades como os Travaux d'Utilité Collective, na França, as Jichikai (comunidades de ajuda mútua), no Japão, as Organizaciones Económicas Populares, no Chile, ou as juntas de vecinos em outros países da América Latina. Como rubrica comum, foram cunhados os nomes "Non-Profit Organizations" -organizações sem fins lucrativos -e "Organizações Não-Governamentais" (ONGs), para assim deixar bem claro que não se trata de iniciativas comerciais nem burocráticas.
A questão decisiva é saber se o terceiro setor tem condições de ser um novo paradigma de reprodução social. Para que isso seja possível, ele terá de ir além das simples medidas paliativas ou de urgência, destinadas somente a fazer curativos leves nas feridas abertas pela "mão invisível" do mercado globalizado. Se não houver mais nenhum surto de crescimento econômico, como muitos ainda esperam, o terceiro setor precisará formular sua própria perspectiva de desenvolvimento para o século XXI, em vez de ser um mero sintoma passageiro da crise.
Em que consiste, afinal, a lógica econômica de tais atividades? Salta aos olhos o fato de autores como Gorz ou Rifkin ainda descreverem o problema de acordo com as categorias impostas pela economia de mercado. Gorz, além de propor o pagamento em dinheiro de uma receita mínima para todos os trabalhadores, sugere a utilização da elevada produtividade técnica para diminuir a jornada de trabalho. O tempo livre seria utilizado em proveito de organizações voluntárias, situadas à margem do Estado e do mercado. Rifkin, ao contrário, espera gerar inúmeros "empregos remunerados", dentro do próprio setor cooperativo. Em ambos os casos, porém, o terceiro setor é visto como o irmão caçula do mercado, pois as fontes de "financiamento" são necessariamente as migalhas de caridade deixadas pela produção que visa ao lucro. Segundo as leis objetivas do mercado, o aumento da produtividade técnica não implica a redução da jornada de trabalho, mas simplesmente a redução dos custos produtivos. Nas atuais condições, isso equivale ao desemprego em massa para grande parte da população, ao passo que o incremento da produtividade é consumido para enfrentar a concorrência nos mercados globais. Os pontos de vista de Gorz e Rifkin ameaçam permanecer um simples modelo de subvenção para países ricos, uma espécie de passatempo altruísta para os campeões do mercado.
Sem dúvida, é impossível conceber a substituição total e imediata do sistema de mercado pelo terceiro setor. Pode-se imaginar, no entanto, um número cada vez maior de pessoas cujas necessidades sejam satisfeitas sem o uso do dinheiro, com a utilização de serviços organizados comunitariamente. Isso já ocorre hoje em muitas dessas iniciativas. A ausência total ou parcial de subvenção significa que as atividades, o tempo e os recursos de tal setor, estão "desconectados" da lógica monetária.
A história do movimento trabalhista registra uma tentativa análoga a esta, sob a forma das cooperativas. A idéia cooperativista original não consistia apenas em lutar por salários mais altos e melhores condições de trabalho, mas também em resguardar, por meio de atividades autônomas, certos âmbitos da vida pressionados pelo trabalho assalariado. Os partidos socialistas e os sindicatos patrocinaram tais "economias comunitárias", como, por exemplo, as comunidades de consumo, de produção e de moradia. Esse embrião cooperativo, entretanto, foi esmagado pela expansão histórica do mercado. Depois da conquista de aumentos salariais significativos e da redução da jornada de trabalho nos setores industriais, os sindicatos perderam o interesse no movimento cooperativista.
O Estado, como era de se esperar, não via com bons olhos a criação de uma esfera autônoma; seus esforços concentraram-se em transformar o cooperativismo numa atividade lucrativa, para então poder lançar impostos sobre a receita monetária resultante. Em parte coagidas pela legislação, em parte espontaneamente, as cooperativas tornaram-se empresas perfeitamente adequadas ao mercado; não fosse assim, estariam condenadas a desaparecer pouco a pouco. Eis aqui uma ironia histórica: enquanto em vários países os sindicatos liquidam os últimos vestígios da antiga "comunidade" assolada pelo capital, o terceiro setor surge "de baixo", com força renovada, uma vez que o Estado e o mercado são incapazes de apreender a vida em sua totalidade.
Os economistas, com certeza, afirmarão que o terceiro setor não resistirá ao mercado, pois os custos dos investimentos necessários para as iniciativas autônomas são muito elevados, e sua produção só seria possível com meios primitivos. Isso é perfeitamente válido para a produção de certos bens como computadores, máquinas, implementos, etc. Para as atividades iniciais do terceiro setor, a fabricação dessas mercadorias estaria descartada. Quanto aos bens de consumo e aos serviços, no entanto, o prognóstico dos economistas é totalmente infundado. No plano técnico, de fato, a revolução microeletrônica desencadeou uma miniaturização e, no plano econômico, uma enorme queda nos preços dos meios de produção. Calculadoras e máquinas, que há menos de 20 anos ocupavam o espaço de casas inteiras e exigiam uma inversão considerável de capital, hoje em dia estão reduzidas ao formato de bolso e são acessíveis à grande maioria. Por que então esse intenso crescimento do volume de capital na indústria de bens de consumo e nos serviços? A razão é simples:" como empreendimentos lucrativos, tais setores são obrigados a concorrer com os lucros da indústria de meios de produção e com os rendimentos do mercado financeiro. É por isso que eles se curvam à tendência de concentração do capital e são rentáveis apenas quando dominam grandes fatias do mercado. Esse problema, por definição, está excluído das organizações sem fins lucrativos: sua produção está voltada diretamente às necessidades do consumidor, e não à renda do capital.
Um bom exemplo são as empresas incorporadoras. Um investidor de capital não se interessa simplesmente em construir casas ou prédios, mas deseja, sobretudo, um retorno para seu capital que seja pelo menos igual ao lucro obtido em outros investimentos. Os membros de uma cooperativa, ao contrário, querem morar nas casas que constroem. Não precisam de nenhum lucro extra, mas apenas do capital para pagar as matérias-primas e a mão-de-obra especializada. Muitos serviços podem ser realizados por eles próprios. Critérios sociais, estéticos e ecológicos podem ser analisados com atenção redobrada, uma vez que os lucros não entram em questão. Para tais projetos, obviamente, é preciso tempo, espaço e orientação jurídica adequada. Com base nisso, podemos prever um grande conflito no futuro. O sistema econômico e jurídico está fundado na captação de recursos privados ou estatais. O mercado considera natural a força de trabalho pôr-se à inteira disposição dos lucros; quem não tem "trabalho" deve implorar de joelhos para obtê-lo. A classe política considera natural o homem ser administrado pelo Estado. Assim como no passado, os empresários e políticos de hoje não têm nenhum interesse na criação de um setor autônomo e externo a seu controle.
À medida que o mercado eleva seu próprio padrão de rentabilidade, o número de escritórios vazios cresce em todo o mundo, os meios de produção são desativados em proporções assustadoras e os grandes latifúndios permanecem improdutivos. Tais recursos não são doados às ONGs nem a organizações sem fins lucrativos, mas ficam sob custódia de uma propriedade abstrata, seja ela pública ou privada, sem receber o tratamento adequado.
Razões como essas nos levam a concluir que o terceiro setor será um fator político de peso. Ou melhor, um fator antipolítico ou pós-político, pois as novas iniciativas não se deixam rotular de acordo com as velhas categorias da política moderna. Uma tal tendência ainda é pouco aparente, pois, apesar de algumas exceções, os politiqueiros, os arrivistas e os terroristas de Estado recebem mais atenção na mídia do que os grandes movimentos do terceiro setor. Isso também é resultado, em parte, da timidez desses grupos, da ausência de um discurso social mais mordaz. Até agora, seus próprios integrantes não se reconheceram como uma força histórica inovadora.
O apoio de grupos da esquerda política é igualmente duvidoso. Seu apego ao conceito de Estado é ainda muito forte para aceitarem os movimentos do terceiro setor como um possível aliado. O mais provável é que farejem nas atividades cooperativistas uma perigosa concorrência política, e não uma forma promissora de emancipação social. Antigos marxistas preferem capitular diante do neoliberalismo a superar criticamente seu próprio passado. Talvez seja mais refinado surpreender os neoliberais militantes com a seguinte resposta: vocês têm razão, a iniciativa pessoal e a organização descentralizada são tão superiores aos dinossauros do estatismo como Davi é superior a Golias; mas quem me diz que a alternativa deve assumir feições comerciais? As organizações sem fins lucrativos e as ONGs não podem restringir-se às atividades locais, pois hoje já formam uma rede internacional. Talvez o futuro esteja nas mãos de uma "economia natural microeletrônica", fundada em vínculos cooperativos. E talvez o sistema totalitário da economia de mercado (assim como o Estado) seja ele próprio um Golias corpulento, para quem a pedra e a funda já estão armadas, à espera do momento exato para derrubar o gigante.
Robert Kurz
http://obeco.planetaclix.pt/

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