domingo, fevereiro 18, 2007

Soar de alarme com os telemóveis

Em duas décadas, o uso do telemóvel difundiu-se como um rastilho de pólvora. Alguns estudos mostram, no entanto, que a sua utilização prolongada ou a exposição às emissões das antenas retransmissoras poderão ter consequências sanitárias prejudiciais. Estes argumentos são contestados por uma indústria que, perante os desafios económicos planetários, parece ignorar o princípio da precaução. Quanto aos poderes públicos, encontram se habitualmente ausentes.

O telemóvel surgiu em 1984. No fim de Setembro de 2004, contavam-se em França 42,8 milhões de utilizadores, contra apenas 16,2 milhões seis anos antes. Em Setembro de 2003, no entanto, um estudo do laboratório holandês TNO demonstrou que quarenta e cinco minutos de exposição em laboratório a uma radiação de 0,7 V/m (voltes por metro) emitidos pelo telefone móvel têm efeitos prejudiciais para a saúde [1]. Duas associações que procuram um enquadramento para o desenvolvimento da tecnologia sem fios – a PRIARTEM (Para uma Regulamentação das Implantações de Antenas Retransmissoras de Telefone Móvel) e a Agir pelo Ambiente – pediram nessa altura ao Ministério da Saúde francês que realizasse um estudo semelhante ao do TNO. Nunca obtiveram qualquer resposta.

Este exemplo, entre outros, denuncia a espantosa passividade dos poderes públicos no que diz respeito ao enquadramento desta tecnologia. Foram efectivamente realizados numerosos estudos em animais e em seres humanos a fim de conhecer os seus efeitos. Alguns desses estudos são inconclusivos, mas outros revelam resultados preocupantes [2]. Apesar disso, continuam a ser ignorados, porque alguns pensam que «as contradições entre os estudos traduzem uma insuficiência de provas, e por isso são um bom motivo para se ignorar as advertências» [3]. Ora, nos Estados Unidos estão a ser processados judicialmente, por utilizadores intensivos de telemóveis atingidos por cancros do cérebro, operadores e fabricantes desses aparelhos sem fios.

Com efeito, a tecnologia celular induz dois tipos de exposição: aquela a que se submete voluntariamente o utilizador quando usa o seu telemóvel; e a exposição às ondas emitidas pelas antenas retransmissoras fixadas no topo dos edifícios, em depósitos de água ou em pilares.

Tais ondas atingem também os que não utilizam os telemóveis. Não seriam sem consequências para as pessoas que vivem perto das antenas e, mais particularmente, para a chamada população dita sensível, como as crianças, os doentes ou as pessoas de idade. Estas ondas provocariam enxaquecas, perdas de memória, náuseas, fadiga e insónias, ou mesmo cancros, tumores e edemas cerebrais. A 5 de Dezembro de 2001, o ministro da Saúde, Bernard Kouchner, tinha declarado o seguinte a propósito das trinta mil antenas então implantadas em território francês: «Este desenvolvimento suscita com regularidade questões quanto aos riscos sanitários ligados à exposição do público aos campos electromagnéticos emitidos por estes aparelhos» [4]. Contudo, para além de observações desta natureza, não houve qualquer intervenção real dos poderes públicos.

Foram realizados ou estão em curso cerca de seiscentos estudos sobre os efeitos sanitários das ondas electromagnéticas: «A maior parte é largamente financiada pelos operadores. (... ) Uma nota datada de Março de 2001 da Direcção Geral de Investigação do Parlamento Europeu denuncia os esforços dos operadores destinados a convencer os investigadores a “simplesmente modificar os seus resultados para os harmonizarem com o mercado”» [5].

É preocupante constatar a omnipresença de alguns especialistas, que nunca deixam de pôr em causa os estudos sobre os perigos do telemóvel, e a falta de distanciamento de certos órgãos de informação médica – o suplemento sobre o telemóvel publicado no início de 2003 pelo semanário Impact médecine foi, assim, financiado pelo operador Orange.

Em França, as normas sobre as emissões máximas das antenas de retransmissão vão de 41 V/m a 61 V/m, de acordo com a tecnologia utilizada. Na prática, as antenas emitem entre 3 e 10 V/m. O que explica esses valores máximos tão elevados? Por um lado, essas recomendações apenas têm em conta os efeitos térmicos das ondas emitidas, e não os eventuais efeitos sanitários. Por outro lado, estes tectos autorizam o desenvolvimento de uma tecnologia cada vez mais sofisticada com a evolução das várias gerações de aparelhos. Contudo, os valores máximos de exposição são de 3 V/m no Luxemburgo, de 4 V/m na Suíça e de 0,5 V/m na Toscana.

Alguns países tomaram medidas para proibir a implantação de antenas na proximidade de locais sensíveis. A legislação em França limita-se a pedir aos operadores, quando as antenas emitem perto de escolas ou hospitais, que tomem medidas para as radiações serem tão fracas quanto possível! Quanto aos poucos autarcas que tentaram proibir as implantações de antenas no território das suas comunas – Vallauris, Villeneuve Loubet ou Saint Raphaël –, muito frequentemente viram as suas pretensões indeferidas, nomeadamente pelo Conselho de Estado [6].

Os serviços de habitação social propõem frequentemente aos operadores a utilização de locais elevados, que são vantajosos para a construção das redes, vendo-se os locatários muitas vezes impotentes perante as decisões do investidor. «Nas mesmas populações acumulam-se várias dificuldades: o desemprego, a crise da habitação, problemas ligados ao ruído ou ainda a possível proximidade de indústrias poluentes», explica Janine Le Calvez, presidente da PRIARTEM. «Estes diferentes problemas têm os mesmos efeitos; dão origem a problemas neurológicos, a leucemias – designadamente infantis –, etc. Nestas condições, como provar a parte originada pelo telemóvel?»

Os instaladores e reparadores de antenas de telemóveis estão submetidos a fortes emissões dos retransmissores. Os operadores recorrem a múltiplos subcontratadores, que preferem não se manifestar para não perderem os contratos. «Os sindicatos e os comités de higiene e segurança estão muito silenciosos em relação a este assunto», sublinha a presidente da PRIARTEM. «Tal como a medicina do trabalho. Ora, no quadro das doenças ligadas ao amianto, foi através das doenças profissionais que se obtiveram resultados. Porém, com o amianto é fácil estabelecer uma relação de causalidade entre um produto e os seus efeitos... No fim de contas, os operadores têm todos os direitos. O único responsável será o Estado, que desbaratou o princípio de precaução».

Em Março de 2003, a autarquia de Paris e os três operadores nacionais (Orange, Bouygues Telecom e SFR) assinaram uma carta destinada a regular as emissões das antenas de retransmissão da capital francesa, para onde estão previstas 1081 novas instalações em 2005 [7]. Nenhuma associação participou na elaboração deste texto, que prevê uma exposição média diária de 2 V/m, com picos de 4,6 V/m. Estas normas parisienses representam uma melhoria em relação à regulamentação nacional, mas não satisfazem as associações.

Em Abril de 2004, a Associação dos Autarcas de França (AMF) e os operadores reunidos na Associação Francesa dos Operadores Móveis (AFOM) apresentaram o “Guia das boas práticas entre autarcas e operadores”, um documento feito pela AMF «a pedido dos operadores». «Esta carta não tem qualquer valor jurídico», como esclarece Dorothée Quickert-Menzel, chefe de missão na Confederação da Habitação e das Condições de Vida (CLCV). «Trata-se de informação que tem um único objectivo: ajudar os autarcas a implantar as antenas deles». Uma vez mais, não foi associada a estes trabalhos nenhuma das associações nacionais.

CRIANÇAS PARTICULARMENTE VULNERÁVEIS

Assiste-se a um desenvolvimento generalizado das tecnologias sem fios. Fala-se do wi-fi, para redes sem fios de banda larga de curto alcance; do Bluetooth, um standard de comunicação entre múltiplos aparelhos electrónicos, entre os quais os telemóveis; ou do WiMax, uma tecnologia wi-fi de banda muito larga de longo alcance. Sem esquecer tecnologias que geram interferências nas ondas a fim de desactivar telemóveis em locais onde sejam indesejáveis. Irá algum dia o Ministério da Saúde levantar a questão desta poluição electromagnética [8]? «Entre o poder dos lóbis e as questões de saúde pública», suspira Janine Le Calvez, «os poderes públicos escolheram, incontestavelmente, as mais reduzidas exigências sanitárias».

As associações não exigem que se ponha em causa a tecnologia celular, muito apreciada pelo público, mas o enquadramento do seu desenvolvimento. «Não nos mobilizamos contra uma tecnologia, mas contra uma maneira de actuar», esclarece Quickert-Menzel. «Os operadores têm tudo: a técnica, o pessoal, os relatórios...»

Além disso, um estudo publicado a 11 de Janeiro de 2005 pela National Radiological Protection Board britânica (NRPB) [9] instou a uma maior vigilância no que se refere à utilização de telemóveis por crianças com menos de oito anos, por serem particularmente vulneráveis: «A sua caixa craniana não está ainda completamente formada, o seu sistema nervoso não está completamente desenvolvido, e as radiações penetram mais profundamente no seu cérebro».

Nessa mesma altura, porém, só a vigorosa mobilização das associações PRIARTEM e Agir pelo Ambiente, reclamando a suspensão imediata da venda de um telemóvel com formas lúdicas – o Babymo –, explicitamente destinado a crianças entre os quatro e os oito anos, fez com que o Carrefour (com celeridade) e o Bazar de L’Hôtel de Ville (com mais dificuldades) reagissem retirando de venda o Babymo.

Mais sensível ao desenvolvimento de um novo mercado do que à saúde das futuras gerações, a empresa monegasca ITT, distribuidora deste combinado produzido na China pelo industrial chinês CK Telecom, apresentou queixa contra as duas associações, «por terem desenvolvido contra ela campanhas activas de denegrimento», a qual veio a ser indeferida pelo Tribunal de Primeira Instância de Paris.

Na verdade, o telefone celular deveria ser considerado como um complemento do telefone fixo e não como o seu substituto puro e simples. Os poderes públicos interferem em domínios como o do automóvel e do tabagismo, mas falta-lhes desempenhar um papel no âmbito do telemóvel.

______
[1] TNO, Toegepast-Natuurwetenschappeli jk Onderzoek (Organização de Investigação Científica Aplicada); e La Lettre de Priartem, n.º 10-11, Paris, Novembro-Dezembro de 2003.
[2] “Cellular and cordless telephones and the risk for brain tumors”, European Journal of Cancer Prevention, Limburgo (Bélgica), Agosto de 2002; “Prevalence of headache among hand cellular telephone users in Singapore: a community study”, Environmental Health Perspectives, Cary, NC (Estados Unidos), Novembro de 2000.
[3] Jean-Pierre Lentin, Ces ondes qui tuent, ces ondes qui soignent, Albin Michel, Paris, 2001.
[4] www.sante.gouv.fr/htm/actu/33_011205bk.htm.
[5] Le Point, 25 de Abril de 2003.
[6] Em Port-de-Bouc, pelo contrário, a France Telecom não conseguiu a suspensão do decreto municipal que proíbe a instalação de antenas num raio de 300 metros em redor dos locais sensíveis.
[7] Ver: Agir pour l’environnement.
[8] As ondas emitidas pelos telemóveis são microondas impulsionadas, um tipo de ondas que não é comparável às ondas rádio ou televisivas.
[9] Este estudo é também designado como “Segundo relatório Stewart”, a partir do nome do especialista inglês William Stewart, que, em 2000, publicou um primeiro relatório pouco alarmista, e reviu a sua posição um ano depois, nomeadamente no que diz respeito à questão das crianças. Ver, entre outros, The Guardian, 5 de Abril de 2005, e www.powerwatch.org.uk.
Philippe Bovet
Le Monde diplomatique


http://www.infoalternativa.org/ecologia/ecologia050.htm

Sem comentários: