"Quando os políticos acenam com abstracções como se fossem bandeiras –
abstracções como a 'segurança' ou até a 'liberdade' – os cidadãos
devem suspeitar logo." [1]
Há uma coisa de que podemos estar certos: o estado capitalista está confuso e em crise. A cada dia que passa, a sua legitimidade esvai-se ainda mais. Muitos dos seus anteriores argumentos de qualquer tipo de legitimidade dependiam em grande parte da ‘defesa’ dos seus cidadãos contra um terrível inimigo que durante quase três quartos de século tinha sido o Comunismo. E tal como a 'Ameaça Vermelha' o actual inimigo, o ‘Fundamentalismo Islâmico’, também possui alegadamente poderes impiedosos e manhosos para subverter a democracia e penetrar bem no coração da nossa ‘democracia’. Mas ao contrário dos inimigos de antigamente, tão diabólica é a ‘conspiração islâmica internacional’ que os nossos direitos legais e civis têm de ser abolidos em mais uma ‘guerra’ para defender essas mesmas liberdades!
Uma terrível ironia, se consideramos que durante mais de cinquenta anos o ‘mundo livre’ entrou numa guerra que quase nos destruiu para, diziam-nos, nos defender. Mas agora, de forma a justificar este ataque frontal à ‘democracia’, teve de se criar um inimigo nunca antes visto.
“É possível que através de uma tirania de pequenas decisões, possamos construir uma sociedade de pesadelo”.[2]
Este novo ‘inimigo’, tal como o desaparecido, não foi criado do dia para a noite. Um completo edifício teve de ser construído, um pedaço de cada vez, com o ‘estrangeiro’ no seu coração. De aparência ‘não-britânica’, possuindo também ‘valores não-britânicos’, que é o mesmo que dizer não-cristãos, e por defeito não-brancos, os muçulmanos encaixam perfeitamente no papel. Para além disso, durante mais de um século, os árabes (ler muçulmanos), manhosos, marginais e absolutamente estranhos na cultura e nos valores, formaram a base para uma mitologia que pôde ser vista na ficção popular e mais tarde nos filmes. Assim, já estava à mão um ‘gancho’ onde pendurar o actual bode expiatório.
Não há dúvida que os media corporativos e estatais desempenham um papel fulcral na criação deste ‘inimigo infiltrado’, mas sem uma expressão física tal como atentados à bomba e outros actos cada vez mais excêntricos, ou mais precisamente, ameaças de ataques, convencendo um público que sofreu durante três décadas REAIS atentados do IRA sem se sentirem tão ameaçados, era necessária uma nova estratégia baseada na existência de indivíduos aparentemente irracionais, o ‘bombista suicida’, contra o qual a única defesa é, dizem-nos, uma quase completa ‘prisão’ da população através do uso arbitrário de detenções e o uso de tácticas de medo incluindo alegados ataques com gás, alegadas bombas nucleares de fabrico caseiro, alegados agentes biológicos. Um completo arsenal dos mais excêntricos mecanismos contra os quais a única defesa é, dizem-nos, a criação de um estado de vigilância total.
O papel dos media numa conspiração inspirada pelo estado foi o de diabolizar uma conveniente secção da sociedade, isto é, facilmente reconhecível, os muçulmanos, o novo ‘estrangeiro infiltrado’. ‘Barbudo, então vai haver assalto’ e já guetizados por uma sociedade institucionalmente racista, eles tornaram-se o foco de uma campanha de ódio que sinistramente faz eco de um anterior período da história europeia. No último ano, perto de 23000 pessoas foram detidas e revistadas com base nas leis ‘anti-terrorismo’, especificamente na Secção 44 do infame “Terrorism Act” [Lei do Terrorismo] de 2000. Não é necessária uma razão, basta que um polícia se lembre. Como resultado, apenas 27 indivíduos foram acusados com base em leis anti-terrorismo, mas o impacto na comunidade asiática tem sido devastador, alienando ainda mais uma secção alienada da sociedade. E, como até a polícia admite, os resultados foram totalmente contra-produtivos.[3]
Mesmo assumindo que o país está pejado de terroristas dispostos a destruir a ‘civilização ocidental’ (embora nunca seja explicado como é que isso iria acontecer com bombas de fabrico caseiro), as contradições da histérica resposta deliberadamente engendrada a esta alegada ameaça à ‘civilização’ não fazem sentido, a não ser que haja uma agenda escondida sobre a qual não estamos informados.
Se um país como a antiga União Soviética, armado até aos dentes com os enormes recursos do estado, após setenta e cinco anos não conseguiu esse alegado objectivo de derrubar o capitalismo, é razoável fazer a pergunta: porque é que o estado britânico embarcou numa política de criação de um estado policial de facto, repleto de leis que têm mais do que meras semelhanças com as aprovadas quer por Hitler quer por Mussolini? Entrem na “segurança baseada no medo”.[4]
“A segurança não é uma coisa que possamos ter mais ou menos até porque não é nenhuma coisa… é o nome que nós usamos para o estado da situação estendido no tempo caracterizado pela calculabilidade e previsibilidade do futuro… A impossibilidade de garantir a segurança radica no facto que tal como a justiça, e como a democracia, a ‘segurança’ não é tanto um estado empírico da situação mas um ideal – um ideal em nome do qual um grande número de procedimentos, mecanismos, relações sociais, e instituições políticas são concebidas e desenvolvidas.”[5]
Para responder a esta questão temos de nos virar para outro sítio qualquer que não uma gruta no Afeganistão ou um apartamento camarário em Birmingham ou Bolton.
A história do capitalismo está cheia de exemplos de ‘conspirações’ alegadamente geradas por grupos fanáticos empenhados em derrubar o satus quo, desde os primeiros sindicalistas até aos ‘anarquistas’ do final do séc.XIX e primórdios do séc.XX e por aí fora, todos requerendo que a ira do estado fosse dirigida para os desafortunados indivíduos envolvidos. De forma relevante, estas ‘conspirações’ foram usadas como desculpa para aumentar o controlo do estado sobre os seus cidadãos através da aprovação de vários estatutos que limitaram os nossos ‘direitos’ democráticos de manifestação e protesto, e agora até é crime pensar em derrubar o estado.
Também relevante, estas ‘conspirações’ foram usadas para justificar variadas guerras de agressão, quer contra o comunismo ou sob a capa da luta contra o comunismo, quer contra lutas de libertação nacional. A História está repleta de conspirações imperialistas inventadas para justificar estas guerras, incluindo o incidente do Golfo de Tonkin que conduziu à guerra do Vietname, ou os míticos MiG soviéticos alegadamente fornecidos aos sandinistas na Nicarágua, bem como as inexistentes armas de destruição em massa no Iraque de Saddam Hussein.
“Recuarmos para as margens do debate internacional, como alguns advogam, ou isolarmo-nos na cena internacional como forma de evitar os efeitos da mudança global, seria simplesmente enfraquecer o modo como enfrentamos e nos adaptamos a essa mudança e enfraquecer os interesses vitais britânicos. Recuo e isolamento não são o caminho para a libertação nacional, mas para a ruína nacional.” ‘Procurando uma política externa e activa e empenhada’. Discurso de Jack Straw na Casa dos Comuns, (27/11/2003)
Procurando por baixo da propaganda vamos encontrar a frase que diz muito sobre as verdadeiras razões para a invenção de uma ‘ameaça terrorista’, “os interesses vitais britânicos”. Mas o que se quer dizer com ‘interesses vitais britânicos’? E outra frase muitas vezes repetida, ‘segurança energética’, assim que começamos a observar, as declarações públicas mediáticas e estatais estão cheias destas frases, ‘os interesses de segurança nacional britânica’, recentemente usada para abafar a investigação policial a subornos feitos pela BAE Systems na Arábia Saudita.[6]
“Abundam as teorias da conspiração… Outros dizem que [a invasão do Iraque] foi inspirada pelo petróleo… [Esta] teoria é um grande disparate.” Jornal London Independent, 16 de Abril de 2003.[7]
Por trás das mentiras retóricas, está a verdadeira razão para a criação de uma ‘ameaça terrorista’, o mundano mundo da economia, pois em última análise vai tudo parar ao lucro sujo. Durante quinhentos anos o capitalismo ocidental foi roubando e escravizando continentes inteiros, exterminando culturas completas e populações, em busca do lucro. Fez isto, até ao séc.XX praticamente com impunidade, em virtude do esmagador poderio militar e controlo do comércio internacional, ele próprio protegido por uma força militar esmagadora.
Mas depois da queda da União Soviética em 1991, o capitalismo ocidental ficou sem justificação para continuar a pilhagem do planeta. Precisava de um inimigo novo atrás do qual pudesse continuar as suas operações e um efectivamente impossível de derrotar, pois ele não tem um centro, mas também porque o ‘terrorismo internacional’ simplesmente não existe, excepto como mensagem de propaganda.
Assim, sob a pretensão de fazer uma ‘guerra ao terrorismo’, iniciaram-se novas guerras de aquisição. No entanto, estas guerras tiveram de ser conduzidas nestas novas circunstâncias, em grande parte sem o apoio das populações domésticas.
Teve de ser engendrado um novo clima de medo para justificar as guerras imperialistas de conquista. Por isso, acima de tudo, o que foi necessário foi mesmo um cenário com mortos e com culpados, e nada melhor do que quatro ‘fundamentalistas islâmicos’ que convenientemente faleceram no massacre de 7 de Julho de 2005.
As contradições e perguntas por responder relativas aos acontecimentos de 7 de Julho de 2005 já foram discutidas noutra altura, mas basta dizer que há tantos buracos na história oficial que não espanta que o governo tenha resistido a todos os pedidos de um inquérito público. No entanto, se o Relatório Hutton serve de comparação para o que vale um inquérito sob o governo de Blair, viremos a descobrir pouco de relevante a partir de um inquérito. E pode ser argumentado que os ‘inquéritos públicos’ efectivamente anulam mais investigações ao criar a ilusão de uma ‘investigação independente’.
Mas se os quatro ‘bombistas suicidas’ foram ao engano ou não (é a minha aposta sobre os acontecimentos de 7 de Julho), eles serviram o que era pretendido, nomeadamente a justificação para a criação de um estado securitário com base no medo, no qual podem ser aprovadas leis ainda mais repressivas e por extensão a continuação de uma guerra externa de agressão.
Devia ser óbvio, deste modo, que a ‘guerra de cá” e as guerra conduzidas no estrangeiro estão intimamente ligadas. De facto, elas são os componentes gémeos de um ciclo vicioso, e é por isso que o governo Blair foi tão inflexível na resistência à ligação entre a invasão do Iraque e o aumento do ‘radicalismo islâmico’, apesar de mesmo nesse assunto nunca ter sido clarificado se foi o Islão ou o nacionalismo que fez aumentar o activismo dentro da comunidade asiática do Reino Unido. E para além disso, a diabolização do Islão é em si mesma uma importante fonte de revolta e ressentimento, especialmente entre os jovens asiáticos que sofrem agora múltiplos actos de racismo, pobreza e uma xenofobia cuidadosamente engendrada.
Em última análise, o sistema capitalista floresce na criação de crises, ou naquilo que Naomi Klein erradamente chama ‘capitalismo desastroso’, uma nova descrição de uma velha doença, pois numa época de vigilância electrónica global, o negócio da criação de um estado securitário é em si mesmo um grande negócio, e como sempre, também a guerra. Este é o velhinho imperialismo como o do tempo em que o Brittania dominava os mares.
Mas mais importante do que aquilo que na realidade é uma privatização das actividades do estado, é o facto de a ‘guerra ao terrorismo’ representar uma tentativa desesperada para lidar com o vasto excesso de acumulação de capital que teve lugar desde a queda da União Soviética. Tão grande é o volume gerado desde a queda do ‘comunismo’ que nem mesmo a privatização total de grandes fatias dos ‘bens comuns’ não consegue absorver tudo.
Como sempre, a guerra é a ‘solução’, independentemente da forma que adquira, e de modo a justificar tão avultados gastos, como dizem Bush e Blair abertamente, é necessária uma guerra infinita. Parece que cinquenta anos são mandados às urtigas a não ser que não consigamos entender a mensagem.
É no interior desta crise que encontramos a fonte da ‘guerra ao terrorismo’ e daí a necessidade de 11 de Setembro e 7 de Julho, pois sem tais ‘inimigos’ invisíveis como é que poderíamos justificar a carnificina, muito menos os gastos e a criação de um grande estado global corporativo securitário?
Também pode ler este texto no excelente website The July Seventh Truth Campaign.
Notas
1. “Governing Security, Governing Through Security”, em: R.J.Daniels, P. Macklem e Kent Roach (2002), Security of Freedom: Essays on Canada’s Anti-terrorism Bill, U of T Press, pág. 85.
2. “Privacy in an Age of Terror”, por Mike France e Heather Green, Business Week, 5 de Novembro de 2001.
3. De acordo com um relatório da Polícia Metropolitana no ano anterior a Setembro de 2006, a Polícia Metropolitana efectuou 22672 detenções e buscas sob a secção 44. Isto levou a 27 detenções por terrorismo, o relatório da Polícia diz: “A sua eficácia … está sérias dúvidas.” The Ealing Times, 22 de Fevereiro de 2007.
4. ‘Fear-based Security: The Political Economy of ‘Threat’’ Por Margaret Beare, Nathanson Centre for the Study of Organized Crime and Corruption
5. “Governing Security, Governing Through Security”
6. ‘Al Yamamah: Another Government Capitulation To Big Business’
7. ‘AHMED CHALABI – OIL MAN IN BAGHDAD’, William Bowles (18/04/2003)
William Bowles
http://williambowles.info/ini/2007/0207/ini-0472.html
http://investigandoonovoimperialismo.blogs.sapo.pt/15213.html
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