quinta-feira, março 01, 2007

Sejamos todos Cité Soleil

Em menos de dois anos as tropas da Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti) provocaram três massacres em Cité Soleil, bairro periférico de Puerto Príncipe. Segundo inúmeros depoimentos, escassamente difundidos pelos meios de comunicação comerciais, as forças de ocupação ingressam em blindados no bairro mais pobre da pobríssima ilha apoiados por helicópteros artilhados. Pelo menos em duas ocasiões, a 6 de Julho de 2005 e a 22 de Dezembro passado, dispararam sobre a população desarmada provocando dezenas de mortos. Muitos morreram nas suas precárias casas, onde se tinham refugiado dos capacetes azuis. Segundo o prémio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel, só no primeiro ano de mobilização da Minustah (instalada em Junho de 2004) morreram mil 200 pessoas por actos de violência..

Chama a atenção que as esquerdas latino americanas – que com justeza denunciam as guerras imperiais no Iraque e no Afeganistão – não estejam a fazer o mesmo com o genocídio que se está a produzir no Haiti. Que as tropas da ONU estejam integradas maioritariamente por países que ostentam governos progressistas e de esquerda, que contribuem com mais de 40 por cento dos 7 mil soldados e oficiais, e sejam comandadas pelo Brasil de Lula, deveria ser um motivo adicional para manter uma activa solidariedade com o povo haitiano. Os motivos que se alegam para enviar tropas para a ilha não são de confiança. O principal argumento é o de contribuir para a pacificação e para o assentamento da democracia, para o que seria necessário desarmar e desarticular os “bandidos” e narcotraficantes. Como se essas questões pudessem resolver se pela via militar. Dois anos e meio depois de instalada, a Minustah não conseguiu nem um nem outro. Mais de 100 mil manifestantes reclamaram no passado dia 7 de Fevereiro a retirada da missão e o retorno do presidente legítimo Jean Bertrand Aristide; apesar disso, a ONU está decidida a prolongar a permanência dos capacetes azuis.

Para Brasil – o país mais empenhado na mobilização dos seus soldados no Haiti – trata-se de atingir suficiente projecção internacional que lhe permita conseguir o ansiado assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Alguns analistas sustentam que a Minustah pode ser um balão de ensaio da futura “NATO latino americana” promovida por várias governos da região [1]. Em paralelo, de uma posição anti imperialista há quem considere que a participação das forças armadas da Argentina, Brasil, Chile, Bolívia e Uruguai é uma forma de pôr limites ao expansionismo ianqui na região.

Em todo o caso, as esquerdas do continente produziram uma viragem radical sem debate e com o único argumento de que agora são governo. É o que aconteceu no Uruguai, país que contribui com 750 soldados, o mais comprometido de uma perspectiva quantitativa em relação à sua população. O que em Julho de 2004, quando se criou a Minustah, era fazer o jogo do império, um ano depois converteu se numa atitude razoável para democratizar o Haiti. Desse modo, o parlamento uruguaio votou um importante aumento do contingente militar que a direita no governo tinha decidido enviar um ano antes. Por lamentável que pareça, só um deputado em mais de 50 se atreveu a levantar a voz contra uma mudança de posição que passou por cima de princípios sem a menor consulta às bases da Frente Ampla. Os debates no Brasil, Argentina e Chile foram mais escassos ainda. Na Bolívia, Evo Morales bloqueou qualquer tentativa de debater o tema, segundo o ex ministro Andrés Soliz Rada.

No entanto, o que está em jogo é bem mais que questões de princípios. É certo que os governos de esquerda não se devem comprometer com o envio de tropas para outros países e menos ainda com a flagrante violação dos direitos humanos, que no Haiti tem rasgos de genocídio contra os pobres. Com efeito, é nos bairros mais pobres da periferia urbana de Puerto Príncipe, esses lugares que Mike Davis sustenta que são «o novo palco geopolítico decisivo», onde os capacetes azuis actuam com maior rigor. Brian Concannon, director do Instituto para a Democracia e a Justiça no Haiti, sustenta que «é difícil não perceber uma relação entre as grandes manifestações ocorridas em Cité Soleil e os bairros que a ONU seleccionou para realizar extensas operações militares».

Do que se trata é de uma guerra contra os pobres encabeçada por governos que se dizem afins aos pobres. Existe uma estreita relação entre as actividades dos nossos soldados nos bairros pobres do Haiti e a militarização das favelas e dos bairros pobres das grandes cidades sul americanas. O deputado brasileiro Marcelo Freixo sustenta que «as favelas constituem o espaço ocupado pelo inimigo público, um espaço de ausência de direitos que vem representar a desordem, a insegurança, a tal ponto que se chegou a colocar um tanque de guerra a apontar contra uma comunidade». Uma política de segurança que substitui a ampliação de direitos para os jovens negros pobres que habitam as favelas. Nesse sentido, a Minustah actua como o exército brasileiro nas favelas: criminalizando os pobres.

Há um século atrás, a social democracia alemã cruzou o Rubicão ao apoiar a colonização do terceiro mundo e a guerra imperialista de 1914. Essa atitude para com a política externa atingiu o seu correlato doméstico na repressão do movimento operário que teve nos assassinatos de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht o seu lado mais escandaloso. Uma esquerda manchada com sangue dos de baixo deixa de ser esquerda. A solidariedade para com a oprimida população de Cité Soleil é urgente, mas [é também] a melhor forma de nos defender-mos dos abusos que têm na guerra contra os pobres talvez a face mais ignominiosa dos governos progressistas e de esquerda.

[1] Raúl Zibechi, Hacia las fuerzas armadas sudamericanas, La Jornada, 02/12/2006.
Raúl Zibechi
La Jornada
http://www.infoalternativa.org/amlatina/haiti003.htm

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