terça-feira, abril 17, 2007

Os pressupostos

Será que o pensamento científico é apenas o resultado de aceitar pressupostos científicos? Nesse caso, seria tão arbitrário aceitar os resultados do pensamento científico como aceitar os resultados do pensamento religioso. Por outro lado, o pensamento religioso emana de Deus, e não apenas do esforço humano concertado de compreender melhor o mundo, pelo que até seria digno de maior confiança.

O erro deste tipo de argumento é não compreender que o pensamento científico e filosófico inaugurado pelos gregos antigos é uma procura constante: uma interrogação aberta. Não é um conjunto dogmático de respostas fechadas e acabadas, que resta apenas interpretar e reinterpretar infinitamente. A ironia histórica é que a atitude de procura constante e de interrogação permanente produziu em escassos mil anos uma compreensão da natureza das coisas incomparável com o que as religiões todas da humanidade produziram ao longo de vários milénios.

O pensamento científico não parte deste ou daquele pressuposto para depois aceitar as suas consequências. Isso é o que faz o pensamento religioso: aceita, por exemplo, que um determinado livro tradicional, registo escrito de tradições orais anteriores, emana directamente de Deus — e raciocina a partir daí. Na ciência interroga-se tudo. Na religião aceita-se por fé mitos fundadores — que um homem nasceu de uma virgem, que esse homem depois de morto ressuscitou, no caso do cristianismo — cuja veracidade não pode ser colocada em causa sem se ser considerado blasfemo e contra a ortodoxia. Filosofar e fazer ciência é ser heterodoxo, interrogar e pôr tudo em causa. Dar respostas fechadas, que confortam os crentes, é o que faz a religião. São atitudes muito diferentes.

Mas a interrogação de tudo não é o mesmo que arbitrariedade. Sim, é possível, logicamente possível, que de cada vez que deixo cair uma pedra aconteça que um anjo a empurra para baixo; pode ser que a gravidade seja um disparate, porque há muitas explicações alternativas. Pois há. Mas não é estranho que esta criatividade na procura de explicações alternativas só se aplique aos resultados mais sólidos da ciência, como a teoria da evolução pela selecção natural, mas não se aplique, por exemplo, aos livros sagrados ou às experiências religiosas? Afinal, explicações alternativas por explicações alternativas, por que não explicar os textos religiosos como mera produção humana, fruto de alucinações motivadas por fenómenos neurológicos e não pela presença de um deus?

Um sinal segundo de ausência de seriedade intelectual é a exuberância criativa na procura de explicações alternativas às explicações científicas da realidade, mas a sua falta na procura de explicações alternativas às explicações religiosas da realidade. Isto é falta de seriedade e de amor pela verdade porque com igual arbitrariedade podemos “refutar” seja o que for e defender seja o que for. Quem pensa desta maneira pode genuinamente estar convencido que as explicações científicas são tão arbitrárias quanto as religiosas, dado que o seu pensamento religioso é arbitrário — e nunca teve a experiência da procura paciente e genuína da verdade, do levantar de hipóteses que são refutadas, da crítica dos pares, da reavaliação de explicações e teorias, enfim, da interrogação permanente. Mas não está menos enganado por isso.
Desidério Murcho
http://dererummundi.blogspot.com/

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