Da governação socialista liderada pelo engenheiro Sócrates, o que mais me inquieta e perturba não é tanto as controversas opções neo-liberais por que aquela se norteia e este a subjuga, mas, sobretudo, a ausência de intervenção pública das elites políticas e culturais nacionais e a cada vez mais anémica participação democrática do povo português no destino do país.
Sócrates fez do partido socialista uma espécie de “sala de chuto” da esquerda política portuguesa, para a qual tratou de convocar revolucionários ideologicamente espoliados e de para ela arrastar militantes compulsivamente desalojados do aparelho partidário. Nela – na sala de chuto socialista - as seringas (leia-se o letal silêncio para que muitos foram remetidos) pagam-se a peso de ouro (uma seringa pode, por exemplo, equivaler a um almejado lugar de eurodeputado) e a “maldita cocaína” corresponde, em muitos casos, a um chorudo lugar de topo na administração de uma qualquer (in)viável empresa pública.
O espantoso é que, incólume, Sócrates tenta fazer ao País o que antes tratou de fazer ao seu partido, povoando um e outro de uma cultura de medo, perseguição e intriga palaciana. Mas o problema – o verdadeiro problema – é o de a democracia nacional promovida por Sócrates se assemelhar cada vez mais a um desonesto jogo de ‘poker’, na qual a batotice política é consentida e a delapidação económica do Estado é instigada.
Neste galinheiro em que a democracia portuguesa se parece apressadamente precipitar, o capitalismo internacional não só é dono dos ovos e das galinhas, como é, também, dono do governo de Sócrates. Dito de outro modo, é verdade que as galinhas põem os ovos e que o socrático galo manda na capoeira nacional, porém quem põe e dispõe nestas transgénicas culturas de aviário, são os mesmos que na próxima ceia de Natal não deixarão de comer o galo e de exigir às galinhas mais produtividade e mais competitividade para saciar o seu voraz e predador apetite.
Para gáudio dos mentores da globalização dos mercados, Sócrates pode pavonear-se e vangloriar-se de num ápice ter promovido os cidadãos portugueses à condição de inveterados consumidores da «McDonaldização» do mundo; de ter transformado os agregados familiares em desesperados devedores hipotecados às corporações financeiras e de ter feito de cada trabalhador uma oportunidade de negócio pago a ‘preços da China’.
Não se estranhará, por tudo isto, que Sócrates trate de esvaziar o Estado das suas funções sociais; que em nome de uma já fantasmagórica contenção da despesa pública, fragilize a segurança social e a protecção aos cidadãos; que cuide de cinicamente arruinar a Escola pública preparando-se para entregar a educação dos filhos da classe média ao sector privado, deixando para o Estado a responsabilidade educativa de socialmente “adestrar” os filhos das famílias mais empobrecidas que neste não virão a ter lugar.
Sócrates dá mostras de padecer de uma atípica e conflituosa relação de amor e ódio para com o povo português. Como governante parece detestá-lo e, ao mesmo tempo, como líder partidário parece eleitoralmente amá-lo. Este, aliás, não é caso único no elenco governativo: Sócrates não gosta dos portugueses da mesma forma que a ministra da educação abomina os professores e o ministro da saúde despreza os utentes do Serviço Nacional de Saúde.
Ignorará Sócrates que Portugal não pode competir à escala mundial como o fazem outros países europeus com outra estratégica centralidade e posição geopolítica? Desconhecerá Sócrates que no actual contexto da mundialização dos mercados o modelo político e económico por que Portugal poderia ambicionar seria o de um Estado social similar ao dos países nórdicos? Saberá Sócrates que a descapitalização de um Estado periférico como o nosso, apenas conduz à sua crónica depauperação económica e social e à sua subalternização política no contexto internacional?
No País vizinho, por exemplo, o governo de Zapatero trata de estrategicamente incentivar e apoiar a colocação de médicos nas aldeias do interior e de dinamizar a educação e a cultura nas respectivas comunidades locais, revitalizando-as economicamente e tornando assim viável o seu repovoamento. Por cá, quanto a esta matéria, a palavra de ordem é ‘desertificar’. Para o engenheiro Sócrates, encerrar escolas e urgências hospitalares é uma necessidade orçamental que justifica o abandono das populações. Porém, para os cidadãos e para os utentes do SNS é uma vergonha nacional. Para Sócrates, o desemprego é um mal menor que o choque tecnológico um dia tratará de remediar.
Por sua vez, a economia de subsistência familiar, da qual em muito se sobrevive particularmente no interior, é um assombroso ‘mercado negro’ a que a ASAE tem de por cobro. A este propósito, questiono-me: não será a ASAE um misto de polícia económica e de polícia política que hoje persegue e desmorona pequenos negócios de dimensão familiar? Será que a híbrida ASAE, ou outra qualquer entidade policial, também controla os negócios dos grandes grupos económicos e financeiros a operar em Portugal? Será que o crime económico é uma exclusividade das actividades de subsistência familiar?
Saberá Sócrates que a cultura e a tradição portuguesas não se compaginam com as gladiadoras culturas competitivas que provêm do embate económico entre os EUA e a Ásia emergente. Ou será que, para Sócrates, é indiferente saber que as transnacionais norte-americanas ‘Wal-Mart Stores’ (sector de retalho), a ‘Exxon Mobil’ (petróleo e gás), a ‘General Motors’ e a ‘Ford’ (ambas na actividade de consumos duráveis), a britânica ‘BP’ e a holandesa ‘Shell’ (ambas a actuar no petróleo e gás) e a alemã ‘Daimler-Chrysler’ (consumos duráveis) superam a riqueza total produzida por Portugal? Saberá Sócrates que Portugal é um País sem petróleo? Não será que Portugal é, cada vez mais, um americanizado quintal na Europa à beira mar plantado?
Será que o primeiro-ministro de Portugal desconhece que o Produto Interno Bruto (PIB) nacional, medido em unidades de poder de compra, situou-se em 2006 em 75 por cento da média europeia, sendo o mais baixo da Zona Euro, segundo dados do ‘Eurostat’ recentemente publicados, e que atrás de nós só é possível encontrar novos Estados-membros, dos quais, mesmo assim, quatro deles (Chipre, Eslovénia, República Checa e Malta) já nos ultrapassaram?
O absurdo e incompreensível(?) de tudo isto é quase ausência de oposição política, social e cultural à governação de Sócrates. Porém, a inexistência de oposição partidária à política neo-liberal de Sócrates também não é de estranhar. Pelo contrário. Veja-se, por exemplo, como o líder social-democrata incentiva e apoia coniventemente o engenheiro Sócrates. Menezes, o líder(?) da oposição, assegurou, há poucas semanas, que se fosse ele o primeiro-ministro de Portugal (que Deus não queira e que o povo disso nos livre!), em 6 (seis!) meses privatizaria a quase totalidade dos serviços do Estado, como se isso não fosse aquilo que Sócrates tem vindo a promover desde que, nas últimas legislativas, Santana Lopes, por demérito próprio, lhe ofereceu de bandeja o lugar de primeiro ministro.
Ainda assim, torna-se hoje claro que Sócrates é um líder político a abater a curto ou a médio prazo. É, por outras palavras, um “moço de recados” da economia mundial, que tem no panorama político português a função instrumental -e por isso transitória- de importar, de aplicar e de politicamente socializar, por um lado os desígnios predadores da economia global norte-americana e, por outro, de satisfazer os interesses mais obscuros da economia europeia, ampliando assim o espectro de acção dos grandes grupos económicos e financeiros mundiais no território nacional.
Na ausência de oposição, talvez o voto em branco, em tempos insinuado pelo nobel Saramago, possa ser nas próximas legislativas (que tardam em chegar), a alternativa mais imediata e mais credível a este socratismo neo-liberal que assola e devasta o País.
Enfim, readaptando o grande Almada Negreiros, quase apetece dizer que “Se Sócrates é português, então eu quero ser espanhol(!)”. De preferência, já!
Fernando Cortes Leal
http://sol.sapo.pt/blogs/kosmografias/default.aspx
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