sexta-feira, março 28, 2008

CONTRADIÇÕES E DISFUNÇÕES NO SISTEMA DE ENSINO EM PORTUGAL

COMUNICAÇÃO AO IV CONGRESSO PORTUGUÊS DE SOCIOLOGIA

Agora que muito se fala de uma nova reforma curricular, é talvez a ocasião propícia para questionarmos, de novo, a natureza e o funcionamento do ensino em Portugal. Com décadas de reformismo a atravessar (e a minar) as políticas educativas, a distância entre as intenções proclamadas e os resultados continua a ser abissal. Se acreditarmos nas «paixões» dos nossos "decisores", a finalidade do sistema educativo seria proporcionar qualquer coisa como uma qualificação ao nível das habilitações médias capaz de colocar os portugueses no «pelotão da frente» em matéria de competitividade. Não me irei deter nas metáforas "atléticas" desta concepção de ensino, nem no cálculo economicista a que este discurso pretende reduzir o conceito de educação. Há um fenómeno que torna essa análise irrelevante. E esse fenómeno é o facto de o nosso sistema de ensino parecer deliberadamente orientado para produzir exactamente o contrário daquilo que os sucessivos governos proclamam. Isto é: o contrário do famigerado «sucesso escolar», quer ele seja entendido na acepção neoliberal dominante, quer na versão igualitarista da «escola de massas».
Atingiu-se um ponto de saturação em que já ninguém acredita nas «paixões» pela educação. Mas, curiosamente, esse cansaço não produz qualquer revolta. Existe antes uma cumplicidade generalizada com as inércias do sistema educativo. Na verdade, um estranho consenso, feito de silêncio ou de indiferença, abateu-se recentemente sobre a reflexão crítica em torno do ensino em Portugal, como se, de repente, o «guterrismo» nos tivesse colocado no melhor dos mundos possíveis. As contradições e as disfunções, porém, permanecem bem evidentes nas escolas portuguesas, nenhuma «paixão» as erradicou por milagre, e é isso que torna necessário reactivar, aqui e agora, uma teoria crítica do ensino em Portugal.
Nesta comunicação, procuro identificar as contradições que me parecem nucleares no sistema educativo português, bem como os efeitos disfuncionais que delas resultam. São, antes de mais, hipóteses de trabalho que eu aqui levanto, baseadas em mais de dez anos de actividade lectiva no ensino secundário, repartidos por várias regiões do país e por alguns milhares de alunos. Esclareço ainda que sou professor de Introdução à Filosofia, disciplina que constitui um laboratório privilegiado para observar boa parte das disfunções a que me irei referir.
1. IDEOLOGIA «ILUMINISTA» VS. IDEOLOGIA DAS «NOVAS PEDAGOGIAS»
A primeira grande contradição que, em meu entender, interessa destacar não é uma originalidade portuguesa. Pelo contrário, ela reflecte a dependência do nosso país em relação aos centros de produção ideológica. De facto, nos últimos vinte anos Portugal tem partilhado com os países centrais europeus e os Estados Unidos uma contradição entre duas ideologias do ensino que coabitam a instituição escolar:
• A primeira, apelidá-la-ei de «iluminista». Segundo ela, a função da escola consiste em emancipar o género humano mediante a criteriosa administração do saber – da ciência –, o que desde logo pressupõe a sua democratização, ainda que parcelar e controlada. Semelhante ideal baseia-se nas seguintes convicções:
- A razão é a coisa mais bem distribuída do mundo, mas poucos a sabem usar.
- Os seres humanos não são naturalmente curiosos, e preferem a segurança da crença e do preconceito ao desconforto da crítica e da verdade.
- A ignorância constitui o estado natural e primitivo da consciência.
- Aprender é um acto anti-natural, que tem de ser imposto.
Este programa pedagógico apareceu assim dominado por uma representação vertical-disciplinar do ensino, ecoando à distância o mito platónico de uma «dialéctica ascendente» (a educação concebida enquanto forma de disciplinar as pulsões e como rito de passagem, com a correlativa transição do nível inferior para o superior, das "trevas" para a "luz", e a superação de obstáculos, a sujeição às provas e aos consequentes rituais de dureza). Por isso, semelhante ideologia, embora teoricamente igualitária, incluiu uma exigência de selectividade: já que o processo educativo é árduo, a ignorância renitente, a inculcação do saber dolorosa... nem todos passarão. Democrática, a substância da escola seria, em derradeira instância, meritocrática.
Em Portugal, a pedagogia «iluminista» constitui um caso de «globalismo localizado» , de raiz franco-germânica. Por cá chamou-se «positivismo» e foi consagrado com o advento da primeira República, quando ao objectivo da emancipação pelo saber se associou o projecto de fazer das crianças «bons portugueses» (tradução nacional-republicana para «bons cidadãos») . Com o salazarismo, deu-se o colapso de todo este programa: doravante, os «bons portugueses» precisavam apenas de saber ler, escrever e contar (ou nem isso). Colapso parcial, entenda-se, pois a ideologia «iluminista» não faleceu aí, como não desapareceu por completo nos dias de hoje: ela é matricial e indissociável dessa entidade moderna a que chamamos «escola». Entre nós, o seu último rebento mais notório terá sido a «Reforma Veiga Simão», dando ao «iluminismo» pedagógico um cunho «desenvolvimentista» e «tecnocrático» que ainda hoje aflora no discurso oficial de uma educação para a «competitividade».
• A outra ideologia, simultaneamente antagónica e complementar da primeira, é a das «novas pedagogias», desenvolvidas sobretudo ao longo dos anos 60 como reflexo da emergência de novos movimentos sociais, da crítica radical das instituições e da experimentação política próprias desse período. O discurso pedagógico "renovado" não só denunciou o programa «iluminista» como ideológico – isto é, como cobertura para as assimetrias sociais que o ensino supostamente confirma e reproduz –, mas também se opôs ao seu conteúdo ideal, particularmente no que toca à representação vertical-disciplinar do ensino. Contra esta imagem, as «novas pedagogias» afirmaram duas grandes convicções:
- As crianças e os jovens são naturalmente curiosos, criativos e sequiosos de aprendizagens.
- A escola pode e deve ser um espaço de prazer.
Daí foi extraída uma imagem alternativa, que designarei por representação horizontal-lúdica do ensino, caracterizada pelos seguintes tópicos:
- O ensino deve estar «centrado no aluno», não o tratando como receptáculo passivo da transmissão de informações, mas indo ao encontro das suas «necessidades» e «desejos», de maneira a integrar os conhecimentos de que ele é, desde o início, um suposto portador .
- O papel do professor não é o de um transmissor do saber, mas o de um mero catalisador e organizador da «curiosidade» e da «criatividade» dos alunos, tendo o cuidado de nunca lhes propor uma ruptura com o contexto social em que estão mergulhados .
- O objectivo primordial da escola não é avaliar conhecimentos nem seleccionar com base nessa avaliação, mas sim propiciar as condições para o «sucesso educativo integral» (de que a dimensão cognitiva é apenas uma parte, e não a mais importante) .
Esta ideologia tornou-se oficial e dominante após o 25 de Abril, percorrendo todos os documentos de carácter pedagógico emanados do Ministério da Educação (independentemente da cor política de quem ocupa a cadeira do ministro). É outro exemplo de um «globalismo localizado», desta feita de extracção anglo-saxónica, mas também francesa. Podemos dizer que ele está para a segunda República como o iluminismo positivista esteve para a primeira.
Sucede que a coexistência destas duas ideologias no sistema escolar tem contribuído para a indefinição dos objectivos e para a produção de políticas mutuamente exclusivas: por um lado, submetem-se os alunos a um processo de avaliação dos conhecimentos cujo fim último é classificá-los e seriá-los de acordo com critérios selectivos (em conformidade com a ideologia «iluminista»); por outro lado, são culpabilizados os professores que atribuem classificações negativas em número considerado excessivo, agitando-se o critério de um sucesso educativo incompatível com a hierarquização dos resultados obtidos pelos estudantes (e existe uma bateria formal de pessoas, de práticas e de instituições – inspectores do Ministério, Escolas Superiores de Educação, acções de formação – encarregues de apontar essa culpa, em conformidade com a ideologia das «novas pedagogias» ).
O diferendo entre as duas ideologias é estrutural e afecta o funcionamento de todo o sistema educativo: a das «novas pedagogias» impregna quase por inteiro o percurso da escolaridade obrigatória – onde o peso dado à transmissão dos saberes e ao desempenho cognitivo é diminuto e a selectividade se vê reduzida ao mínimo, com a prática generalizada da «passagem automática» –, para depois ceder o lugar às exigências da ideologia «iluminista» ao longo dos três níveis do secundário – aqueles em que as "boas intenções pedagógicas" têm de se curvar às "duras realidades" da filtragem, impostas pela exiguidade da rede de ensino superior e pela retracção do mercado de trabalho. Essa cedência nunca é aberta e assumida: aparentemente, as «novas pedagogias» continuam a imperar nos textos programáticos do Ministério da Educação e nas pressões exercidas sobre os instrumentos de avaliação que herdámos do «iluminismo» pedagógico. Todavia, embora diminuída e cercada, a ideologia «iluminista» sobrevive nos três anos do ensino secundário, já que, como veremos, ela responde a um objectivo inestimável das políticas educativas: classificar, seriar e filtrar, continuam a ser desígnios do sistema de ensino, mesmo que praticados de forma mais ou menos envergonhada.
Entretanto, o predomínio das «novas pedagogias» na escolaridade básica tem-se traduzido na quase total impreparação dos alunos para enfrentarem os requisitos do ensino secundário . A descontinuidade entre os dois graus de ensino deve-se, em grande medida, à impossibilidade de harmonizar regimes (e ideologias) de avaliação completamente opostos: uma avaliação predominantemente «formativa» na escolaridade obrigatória e uma avaliação quantitativa e hierarquizante no secundário. O império da «avaliação formativa» no ensino básico constitui uma pressão para que as práticas educativas se transformem «radicalmente»: é o triunfo da oralidade sobre a escrita, o colectivismo pedagógico (a obsessão pelos trabalhos de grupo), a relativização dos conteúdos lectivos (imersos numa espécie de debate permanente que facilmente os reduz ao estatuto de simples «opiniões») e a redução do papel do professor ao de um animador cultural . A minha hipótese é que esta contradição maior entre a escolaridade básica e o nível de ensino pré-universitário é deliberada e visa reforçar determinados efeitos de poder, a que aludirei mais adiante.
Concluindo este ponto, direi que em Portugal a ideologia das «novas pedagogias» serve, acima de tudo, três propósitos: seleccionar, não os alunos, mas os professores (ela comanda actualmente todo o processo de formação profissional dos docentes, obrigados a fazer prova de "boa consciência pedagógica", «aberta» e «inovadora» quanto baste), facilitar a transição dos alunos durante os ciclos da escolaridade obrigatória – servindo assim a demagogia "educativa" do poder político –, e, finalmente, compensar simbolicamente os índices de insucesso escolar do secundário, mediante uma cosmética de auto-culpabilização do sistema educativo. Como essa ideologia percorre todos os ciclos de escolaridade, ainda que numa contradição surda com a ideologia «iluminista», podemos dizer que ela é hegemónica no discurso e na prática pedagógicos. Trata-se, contudo, de uma hegemonia limitada e muitas vezes inconsequente: dada a rede de contradições e de subordinações em que vive mergulhada, a influência das «novas pedagogias» está longe de assumir um poder absoluto.
Esta contradição entre a ideologia «iluminista» do ensino e a ideologia das «novas pedagogias» tem sido interpretada, por quem defende a última, como uma tensão entre um paradigma meritocrático, recuperado pelo neoliberalismo, e um paradigma igualitário, supostamente mais democrático e emancipatório . Não me irei pronunciar, por agora, sobre este juízo de valor (mais à frente, deter-me-ei nele). No ponto em que estou, interessa-me antes salientar que, ainda que o programa ideológico do neoliberalismo pareça empenhado em introduzir a selectividade e a meritocracia nas escolas, esse objectivo, em Portugal, é coarctado pela contradição entre as ideologias que coabitam no ensino: o modelo selectivo está longe de se impor, já que a selecção é sistematicamente nivelada por baixo (basta ver como o ensino superior aceita estudantes com classificações negativas); e o modelo igualitarista esbarra nas exigências de seriação e de classificação que reaparecem durante os três anos do ensino secundário. O corolário de tudo isto é que nenhuma ideia minimamente coerente de educação preside ao sistema escolar que temos.
2. IDEOLOGIAS DO ENSINO VS. CONDIÇÕES MATERIAIS DO ENSINO
A segunda contradição nuclear da escola dá-se entre as ideologias do ensino e as condições materiais em que este se desenvolve. O discurso oficial insiste na optimização das potencialidades intrínsecas dos alunos – cuja medida se reduz, aliás, às percentagens de classificações positivas atribuídas (dessa forma incorrendo na contradição ideológica atrás referida). A verdade, porém, é que as escolas e os agentes educativos não dispõem de meios materiais e humanos necessários à prossecução dessa finalidade, por contraditória que seja. Desdobremos, uma vez mais, a lista: os estabelecimentos de ensino dos ciclos básicos e do secundário – mas também poderíamos acrescentar boa parte das universidades – são exíguos para a quantidade de jovens que a eles afluíram com a democratização do acesso e com o alargamento da escolaridade obrigatória, o que leva à sobrelotação das turmas. Por outro lado, as escolas estão desprovidas de equipamentos didácticos (faltam bibliotecas, laboratórios, pavilhões gimnodesportivos, meios mediáticos e informáticos), para já não falar de condições mínimas de habitabilidade (salas inestéticas, sufocantes no Verão e muitas vezes chuvosas no Inverno); o número de «auxiliares da acção educativa» é frequentemente escasso e as direcções das escolas enfrentam enormes dificuldades para a sua contratação, limitados como estão por dotações orçamentais estreitas. A lista poderia continuar, engordada por histórias surrealistas .
Nos países centrais em que se observa esta contradição, os governos neoliberais têm-na utilizado para reforçar a rede do ensino privado à custa da pauperização do ensino público. Uma estratégia que, aliás, reflecte bem o papel das ideologias pedagógicas, quando politicamente articuladas com as condições materiais do ensino. Assim, nas escolas do sector público, associa-se a miséria dos investimentos ao domínio das «novas pedagogias», empenhadas em evitar qualquer situação de prova que possa "ferir" o ego dos alunos. A anos-luz do propósito emancipatório dessas pedagogias, a associação das duas tendências que acabei de referir tem tido um único efeito notório: nivelar por baixo as competências escolares dos que frequentam o ensino público. Para as escolas privadas fica então reservada a conjugação das boas condições materiais para a prática educativa com os padrões de exigência próprios do «iluminismo» pedagógico.
Em Portugal, onde o número de escolas particulares é pouco significativo – sobretudo no que respeita aos 2.º e 3.º ciclos do básico e ao secundário –, esta manobra tem sido aplicada no ensino superior, deixando as universidades estatais a braços com uma crise financeira sem precedentes e alimentando, ao mesmo tempo, a proliferação de instituições privadas, ainda que de qualidade duvidosa.
3. IDEOLOGIAS DO ENSINO VS. OBJECTIVOS POLÍTICOS DO PODER CENTRAL
A terceira contradição opõe, e simultaneamente subordina, as ideologias do ensino aos objectivos políticos do poder central. Trata-se de uma relação complexa. Das considerações anteriores, talvez já se tenha inferido que são as políticas governamentais a dirigir cada uma das ideologias contra a sua rival, entroncando-se ora numa, ora noutra, em função de finalidades distintas. Deste modo, a ideologia «iluminista» é eclipsada sempre que entra em colisão com os seguintes objectivos políticos:
- "Armazenar" as crianças e os jovens nos estabelecimentos de ensino, mantendo-os ocupados enquanto os pais trabalham e assegurando, ao mesmo tempo, a sua transição "suave" de ano lectivo para ano lectivo (objectivo incompatível com o rigorismo selectivo da ideologia «iluminista»).
- Apresentar indicadores de sucesso escolar traduzíveis num reduzido número de reprovações, operação de marketing político com dois endereços: o dos destinatários internos – as famílias que importa tranquilizar a troco dos seus favores eleitorais –, e o dos destinatários externos – os organismos da União Europeia, junto dos quais interessa promover a miragem de um «Portugal de sucesso». Indiferente às reais competências dos alunos, a propaganda exige a renúncia à avaliação das mesmas.
O apoio institucional que a ideologia das «novas pedagogias» tem recebido encontra a sua explicação no aparente afã com que o Ministério da Educação zela pela efectivação dos dois objectivos acima mencionados. Mas o papel dessa ideologia acaba por ser puramente cenográfico: oferecer um duplo falseado das práticas instituídas, das relações reais e das carências que caracterizam o sistema de ensino. Com efeito, os diferentes textos publicados pelo dito Ministério (legislação, introduções aos programas das várias disciplinas, orientações para a sua aplicação, edições do Instituto de Inovação Educacional, etc.) encenam uma escola idealizada, onde tudo estaria a decorrer no melhor dos mundos em harmonia com o modelo horizontal-lúdico das «novas pedagogias». Deste modo, um discurso pedagógico que se pretende emancipador é facilmente colocado ao serviço de uma mistificação com fins reguladores. Por ser o mero revestimento de uma realidade esquelética, esta ideologia vê-se facilmente destituída quando nos deslocamos do "paraíso" do ensino básico para a política dominante no ensino secundário:
- Atribuir aos alunos classificações que funcionem como signos de promoção ou despromoção social, a fim de os distribuir por categorias cuja segmentação reproduz (e antecipa) os vários patamares do mercado de trabalho, filtrando ao mesmo tempo o seu ingresso no ensino superior.
Dá-se então o «retorno do recalcado»: tendo saído pela porta dos fundos, a ideologia «iluminista» regressa nos níveis correspondentes ao ensino secundário, ou seja, nos anos terminais de um percurso escolar "normal" (sendo "normal", no nosso país, não prosseguir os estudos). É, como já disse, um retorno denegado, pois nos textos oficiais continua a circular o discurso libertário das «novas pedagogias». E, nesse movimento, também a ideologia «iluminista», com a sua ênfase nas competências cognitivas, fica reduzida a uma função meramente regulatória. Se, após a permissividade do ensino básico, se redescobre o "rigor" apenas nos três últimos níveis do secundário , é a própria exigência da pedagogia «iluminista» que se vê assim esvaziada e instrumentalizada.
4. IMAGEM MODERNA DA ESCOLA VS. CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
Finalmente, a última contradição dá-se entre a imagem moderna da escola e a condição pós-moderna emergente. De uma maneira ou de outra, as duas ideologias referidas participaram da modernidade, dado que ambas constituem verdadeiras «narrativas de emancipação», o pólo «iluminista» centrado na sacralização do saber e do mestre, e nas suas virtualidades "iluminativas", o pólo das «novas pedagogias» confiante na autonomia emancipatória de todo o sujeito-alvo do processo educativo. E ambas pressupõem uma certa temporalidade escolar: o tempo longo, o tempo da apropriação gradual dos saberes, o tempo da «ruminação» (para usar uma metáfora nietzschiana) inerente à actividade reflexiva, ou ainda o tempo pessoalizado a vários ritmos, o tempo em que cada um ensaia as suas capacidades e os seus limites. Ora, esta temporalidade do tempo longo, o da progressão – as duas ideologias são, convém lembrá-lo, eminentemente progressistas –, constitui hoje uma ilha, cada vez mais ínfima, no meio de temporalidades desconexas, efémeras, velozes a ponto de se tornarem voláteis. Perfazendo uma temporalidade outra, a que chamarei pós-moderna, elas cercam hoje a escola por todos os lados e preparam-se para invadir a sua própria substância.
Neste fenómeno interveio fortemente o devir contemporâneo da globalização. Antes de mais, a globalização comunicacional. É sabido como a vertiginosa rapidez dos contactos à distância, a anulação do tempo na instantaneidade com que nos ligamos (ou temos a ilusão de nos ligar) ao mundo inteiro, a circulação instantânea de quantidades maciças de informação facultadas pelos mass-media, pelo correio electrónico e pelas redes informáticas, localizaram a comunicação na sala de aula – uma comunicação simplesmente presencial, e cuja interactividade é apenas interpessoal. Essa localização foi ainda reforçada pelo contraste entre, por um lado, a temporalidade que articula a comunicação escolar e, por outro, a temporalidade mediática, com a sua sucessão de mensagens que persistem em nós apenas enquanto durar o espectáculo.
Os efeitos de tal localização são diversos e atingem, simultaneamente, os actores do processo educativo e as ideologias que pretendem sustentá-lo. Comecemos por analisar o que sucedeu aos actores:
- A autoridade magistral do professor foi completamente dessacralizada, a par da descanonização do saber de que ele é o suposto guardião. Essa erosão avançou em duas frentes:
* a da massificação populacional nas escolas, quer de alunos, quer de docentes, que retirou ao professor qualquer aura ou carisma (ele é somente mais um, no meio da massa – um efeito ainda moderno, já que resulta da exigência de democratização do ensino);
* mas também a de uma ludicidade que tende a nivelar, por meio do riso e da descontracção, tudo o que tenha pretensões a ser importante (e este é um efeito tipicamente pós-moderno).
- Os jovens que chegam à escola são já os mutantes da pós-modernidade. Desconto o que possa haver de impressionista e de redutor nesta generalização, salvaguardando todas as excepções que não caibam na etiqueta «os jovens». Feita esta ressalva, parece razoável afirmar que o psiquismo sensório-perceptivo daqueles, modelado pela descodificação dos novos produtos mediáticos (jogos de computador, video-clips, todo um universo de relações céleres entre o som e a imagem), colide frequentemente com o contexto temporal em que se desenrola a comunicação escolar: a atenção dos jovens é flutuante, ao passo que a escola requer uma concentração demorada; os jovens interiorizam os imperativos do consumo, enquanto a escola ainda acredita nas virtudes da fruição; os jovens são impacientes (de uma impaciência que não chega a ser reivindicação do futuro, mas somente intolerância para com a demora), ao passo que a escola reclama a «paciência dos conceitos». Dir-se-ia que este psiquismo reflecte um dos grandes paradoxos contemporâneos: no momento em que a globalização das redes comunicacionais parece criar as condições para um compromisso do ser humano com o mundo inteiro, dá-se, afinal, uma retirada estratégica da mente, que liga, desliga, olha e ouve, mas sem absorver. Defesa psíquica contra as quantidades maciças de informação que nos assaltam, mas também indiferença, desatenção, silenciamento da solidariedade. A aldeia global desmultiplica-se em encasulamentos. E daqui provém essa imensa falta de memória que os professores surpreendem nos jovens: não apenas uma ausência de memória cultural ou histórica, indispensável a qualquer relação produtiva com o presente, mas da própria função mnésica, que em muitos alunos parece sofrer um inquietante bloqueio .
Não é difícil calcular os "estragos" que a «condição pós-moderna» tem feito às duas ideologias dominantes no sistema escolar:
- A descanonização dos saberes consiste, acima de tudo, em ridicularizar o paradigma vertical-disciplinar da ideologia «iluminista», em contrapôr às hierarquias da ascensão um nivelamento que proibe a destrinça entre a ignorância e o saber –prolongando a diluição relativista da «alta cultura» no «todo cultural». Este fenómeno combina-se com o desprezo pela leitura e pelos suportes literários da mesma, com a despreocupada incapacidade de estruturação escrita e oral (e com a redução drástica do vocabulário disponível), enfim, com esse vasto continente que é hoje o «analfabetismo funcional» das culturas urbanas. A iliteracia «pós-moderna» é bem a consequência da já citada globalização mediática, cujo modelo audio-visual absorveu e reconverteu os processos de escrita e de leitura, ao mesmo tempo que substituiu o silêncio necessário ao trabalho da interpretação por um omnipresente ruído de fundo (essa música que invade os espaços públicos, as nossas casas e a intimidade dos walkman). E é também isto que explica por que motivo todas as tentativas escolares de estimular o gosto pela leitura desembocam invariavelmente no fracasso .
- Por seu turno, a ideologia das «novas pedagogias» acolheu os efeitos pós-modernos como se de velhos conhecidos se tratasse. Na verdade, ela "soube" antecipá-los. Mas, ainda assim, a incursão da «pós-modernidade» nas «novas pedagogias» acabou por descaracterizar as boas intenções emancipatórias de que estas se reclamavam. Assim, a componente de horizontalidade que, no modelo pedagógico dessa ideologia, contesta a relação de desigualdade entre professor e educando, é reinterpretada, na condição pós-moderna, como nivelamento descontraído dos saberes e dos actores da interacção educativa: enquanto se proclama que «tudo é diferente», anulam-se as diferenças que poderiam marcar uma distância hierárquica – o professor não detém qualquer privilégio, nem de saber nem de autoridade, sobre os alunos. Por outro lado, a componente de ludicidade, mediante a qual essa ideologia pretendia derrubar o «autoritarismo» do mestre e a «passividade» do aluno na relação pedagógica, é agora também reinterpretada como puro entretenimento, infantilização dos conteúdos, supressão das provas enquanto desafios. O sucesso escolar na versão de uma pedagogia debole ou "pedagogia pop", simétrica da «pop'filosofia» desejada por Deleuze.
A escola faz hoje figura de instituição anacrónica, um desses resíduos do passado persistindo teimosamente numa paisagem que lhe é cada vez mais indiferente – quando não mesmo hostil. Entre a crispação dos sitiados e a cedência às pressões no sentido de "actualizar" a escola, de a sintonizar com o "presente", é grande a tentação de se escolher a segunda hipótese. Estamos ainda longe do momento em que a condição pós-moderna se converterá, enfim, numa idade pós-escolar. Não sei se lá chegaremos. E não sei se, chegados lá, ainda nos recordaremos do que Goya quis dizer quando inscreveu numa sua gravura: «O sono da razão engendra monstros».
5. DISFUNÇÕES DO SISTEMA DE ENSINO
Encerrarei esta análise com uma reflexão imanente à escola, reflexão que assenta, não numa antevisão do seu fim, mas na constatação da sua permanência e da sua importância estratégica. À laia de síntese do que foi dito, interessa-me destacar os cruzamentos entre as ideologias de ensino, as políticas educativas e as consequências disfuncionais dessas relações tantas vezes perversas. Sei-o bem: o conceito de «disfunção» tem um lastro suspeito. Ele participa do ideário estrutural-funcionalista, esse travesseiro ideológico onde repousa a "boa consciência" do sistema. Mas a verdade é que não encontro melhor noção operatória para identificar os contra-sensos – justamente sistémicos – de uma instituição. Considere-se, pois, que esse termo incide sobre o conteúdo institucional da escola, sem se pronunciar a respeito da sua pertinência ou legitimidade.
O Quadro I descreve os efeitos disfuncionais do oportunismo com que o poder, em Portugal, tem recorrido às ideologias de ensino para legitimar políticas mutuamente exclusivas. É claro que subsiste sempre a hipótese maquiavélica de esses desfechos frustrantes serem a finalidade inconfessada de tais políticas, e o facto é que o telos do sistema educativo português parece mesmo ser o insucesso escolar. Este constitui, sem dúvida, o imbróglio mais visível, o pretenso "cavalo de batalha" dos sucessivos governos – e a encruzilhada de todas as ineficácias. Contudo, se afinarmos a nossa análise, veremos que ele é apenas parte de um conjunto maior de disfunções, que podemos derivar das contradições assinaladas ao longo deste texto. O Quadro II dá conta dessa abordagem.
Deslocando um pouco o âmbito de aplicação do conceito, diremos que as três primeiras contradições – e, particularmente, a segunda – ilustram esse fenómeno português que Boaventura de Sousa Santos denomina «carnavalização da política», isto é, a discrepância existente entre o discurso das intenções, proferido pelos agentes políticos, e a realidade das actuações e das práticas. Essa divergência mina o prestígio do Estado junto dos cidadãos, desvitalizando a nossa já frágil cidadania, instalada na impotência do cepticismo e no tal «distanciamento lúdico» ou «fársico» que propulsiona todo o tipo de relações manipulatórias com os órgãos institucionais – o "desenrascanço" com que o cidadão se procura "safar" por entre os interstícios do aparelho . No caso do sistema educativo, são múltiplos os abismos entre os compromissos programáticos, de um lado, e o quadro real onde se movem os actores sociais. Essas diferenças formam uma sub-contradição que percorre todo o sistema, e que se exprime nas inúmeras duplicidades da produção legislativa sobre o ensino. Multiplicam-se as directivas que colidem entre si e cujo único propósito parece ser o de lançar a confusão no funcionamento das escolas. Essas «orientações» feitas para desorientar tanto podem incidir no calendário escolar, como na natureza das provas e dos exames a que os alunos serão sujeitos, ou na definição da carreira docente, do estatuto remuneratório dos professores e dos concursos para a colocação dos mesmos. Em todo esse magma de legislação avulsa é possível assistir às mais descabeladas violações dos princípios de equidade democrática na regulação do direito, não sendo incomum que o Ministério da Educação inverta, subrepticiamente, a primazia na ordem de subordinação dos textos legais, subvertendo as disposições de um decreto através de um simples despacho ou até de uma circular interna. Esta teia legislativa, espelho dos muitos meandros que se cruzam no imenso aparato burocrático daquele Ministério, serve variadas clientelas e grupos de interesses. O que só vem confirmar a crescente informalização do Estado, disperso em Estados paralelos e subterrâneos aos quais os portugueses alienam a sua cidadania .
6. DOS MITOS PEDAGÓGICOS À SOCIOLOGIA CRÍTICA
Gostaria de terminar com algumas considerações acerca do papel do sociólogo face aos problemas do sistema educativo português. Receio bem que, salvo uma ou outra excepção, a sociologia, neste ponto, se tenha deixado assimilar aos instrumentos demagógicos por meio dos quais o poder político se foi eximindo das suas responsabilidades. Com efeito, incorporada nas «ciências da educação», essa sociologia contribuiu para as prestidigitações, "reformistas" e "bem-intencionadas", de quantos nos pretendem fazer crer que as patologias do sistema educativo podem ser corrigidas mediante a acção "profiláctica" de tais «ciências». Devidamente oleadas pela ideologia das «novas pedagogias», muitas vezes recicladas em versão "pós-moderna", as «ciências da educação» determinam – como referi atrás – a selecção e a formação dos professores, para o que contam com o apoio do Ministério e o peso institucional de alguns lobbies – as Universidades, as Escolas Superiores de Educação e os próprios sindicatos –, cujas relações são, de resto, frequentemente conflituosas. Em uníssono, mais não têm feito do que iludir as causas estruturais do insucesso escolar e das desvantagens em que os alunos se encontram perante as exigências (contraditórias) do sistema educativo. Por isso, e para que a sociologia transforme a sua relação crítica com esse sistema, importa questionar uma série de mitos que têm dominado boa parte das teorias sociológicas da educação.
Um desses mitos atribui à escola uma missão salvífica: corrigir as desigualdades sociais que a realidade externa transporta para o seu interior. Esse mito parte de uma constatação que já é um "clássico" da sociologia da educação: a de que a escola confirma e reproduz essas assimetrias através da «rotulagem académica» dos alunos, baseada numa «cultura da discriminação» de que os professores são cúmplices activos . Tal «rotulagem» manifesta-se, entre outras formas, nas avaliações hierarquizantes, na diferenciação das classificações atribuídas, nas aprovações e reprovações, nas próprias sanções disciplinares – todo um conjunto de instrumentos que, segundo esta visão, contribuem sobretudo para «estigmatizar» os jovens em geral, e, em particular, os das classes sociais mais desfavorecidas, aqueles que apresentam «maiores dificuldades para ir ao encontro das expectativas» dos docentes.
Convém dizer que esta teoria é o último avatar de uma já longa tradição de tentativas para se encontrar o "culpado" pelo insucesso escolar. Os "culpados" vão-se sucedendo (primeiro, eram os próprios alunos, depois foi a sociedade, agora é a escola) e a desorientação teórica permanece . Na "explicação" actualmente dominante passa-se demasiado depressa das premissas para uma generalização paranóide, que detecta injustiças sociais em qualquer hierarquia e vê cenas traumáticas em todas as avaliações diferenciadoras. Daí segue-se rapidamente um outro imperativo, segundo o qual devem ser removidos todos os desafios, testes ou exigências que ponham os alunos em risco de frustração. Para coroar tudo isto, reclama-se a supressão total da selectividade, ao nível da escolaridade obrigatória, como condição fundamental para uma «escola democrática» .
Nesta versão, «escola democrática» traduz-se por «escola de sucesso para todos». Mas, como se sabe que esse sucesso é incompatível com a fixação normativa de um tipo ideal de aluno, resolve-se o problema relativizando o conceito de «sucesso escolar»: a cada um o seu "sucesso" – uma "solução" baseada no relativismo epistemológico e cultural hoje tão em voga: toda a particularidade cultural é uma virtude (especialmente se for a particularidade do oprimido) e afirma-se que não há sequer horizonte para além dos etnocentrismos que atomizam cada grupo (a «cultura universal» é, desde logo, arrumada como a «cultura do opressor») . Portanto, há que garantir a promessa: no fim, todos serão bem sucedidos, mesmo que não saibam ler nem escrever. Os «currículos alternativos», e a «flexibilização» anunciada pela próxima reforma curricular , aí estão a alimentar esta ilusão piedosa. Os pedagogos insistem: temos que ir ao encontro dos «interesses» dos alunos e, para isso, é preciso «adequar» os conteúdos programáticos às diferentes populações escolares . Dantes, a emancipação implicava transcender as limitações do etnocentrismo; agora significa reforçá-las em nome da auto-estima dos alunos e da defesa, a todo o custo, da heterogeneidade e da diversidade. Os «mais desfavorecidos», aliás, volatilizaram-se por detrás dos diferentes: «todos diferentes, todos iguais».
O «sucesso escolar» funciona, assim, como compensação simbólica para uma ferida narcísica que o sistema de ensino é incapaz de colmatar: «não fui mais longe, mas também tive sucesso». Por ser meramente simbólica, limita-se a confirmar a desigualdade social que pretendia corrigir.
Será preciso evocar, uma vez mais, os resultados desta política? Eu sei que «ignorância» é um termo proscrito e «politicamente incorrecto». Mas é de ignorância que é preciso falar. Uma ignorância, em todos os graus de ensino (incluindo o universitário), no que respeita ao domínio da língua materna, à capacidade de interpretar e de construir textos, às referências históricas, ao conhecimento científico em geral. Uma ignorância imensa e plural, que só uma enorme hipocrisia pode iludir, relativizar ou sublimar. Uma ignorância que não é, diga-se de passagem, um exclusivo de Portugal – o que, obviamente, não nos consola e só mostra que taxas superiores de «sucesso escolar» não significam melhores aprendizagens. Uma ignorância, enfim, que representa o meio mais eficaz de consolidar as assimetrias nas relações de poder e de privar os sujeitos dos instrumentos de análise crítica que lhes permitiriam pensar tais relações.
As suas causas são múltiplas e complexas, e não se devem apenas à hegemonia das «novas pedagogias» no processo de democratização do ensino. Não esqueçamos que os efeitos disfuncionais provêm, sobretudo, de contradições que minam qualquer projecto hegemónico. Mas só quem não tenha um mínimo contacto com a realidade das escolas portuguesas recusa a hipótese de essa hegemonia, mesmo que intrinsecamente contraditória, ser fortemente responsável pelo estado a que se chegou. Na medida em que a referida hegemonia se inscreve numa constelação de relações de poder inerentes ao sistema educativo, tudo indica que ela esteja a servir, objectivamente, para despotenciar os sujeitos em vez de contribuir para os emancipar.
Em suma, a ideologia pedagógica dominante conseguiu, na prática, o oposto do que pretende na teoria. Ela insiste na necessidade de salvaguardar a «qualidade das aprendizagens». Porém, como renunciou a qualquer definição normativa e universal dessa «qualidade», só podemos concluir que a insistência é puramente retórica. Uma impressão reforçada quando vemos o que certos teóricos das «ciências da educação» sustentam como solução para superar o insucesso escolar. É vê-los desvalorizarem a «componente curricular académica», por ser nela que os alunos registam as piores classificações , ou pretenderem que cada grau de ensino não deva preparar para o nível seguinte, mas permanecer condicionado pelo nível anterior . Assim se perpetua a contradição entre a escolaridade obrigatória e a não-obrigatória, alicerçada pela enorme desorientação que atravessa o "pensamento" dos "pedagogos". Exemplo dessa desorientação: enquanto que se elogiam as "virtudes" dos currículos diferenciados para o ensino básico, já no secundário a palavra de ordem é a uniformização… como meio de combate ao insucesso escolar! .
Parece-me, pois, justificada a suspeita de que os defensores destas ideias se propõem simplesmente aligeirar os conteúdos e baixar a exigência. O que, de facto, têm conseguido , com um único resultado assinalável: a maioria dos jovens chega ao secundário sem possuir as competências mínimas para enfrentar uma disciplina como a que eu lecciono. Mas os pedagogos do Ministério da Educação não desistem, e, em 1998, apontavam a «sobrevalorização dos conteúdos académicos» como um dos principais problemas existentes no ensino secundário .
Este ataque ao currículo académico obedece a uma premissa que importa desmontar: a de que esse currículo se limita a reflectir o padrão cultural da classe dominante. Para lá do viés relativista deste argumento, que reduz a cultura humanística e científica a um «etnocentrismo de classe», ele releva do mais estafado determinismo sociologista. Talvez a ordem de causalidade que ele sugere possa ser invertida para gerar a seguinte hipótese perversa: é graças à socialização num currículo académico, informado por um padrão de exigência, que os membros das classes sociais mais favorecidas adquirem o know-how necessário para se perpetuarem no poder. Aos pobres ficam então destinados os «currículos alternativos», com relevância para os «saberes pragmáticos» e para as «componentes não académicas» (trabalhos manuais, trabalhos oficinais, etc.) . Se isto não é uma óptima estratégia de preservação das assimetrias sociais, não sei o que seja.
O sociologismo que encontramos em muitas destas teorias da educação tem também um corolário: desresponsabilizar sistematicamente os alunos pelos resultados obtidos . O que, convenhamos, não é a melhor maneira de lhes propiciar a tão desejada autonomia. Trata-se, no fundo, de mais um exemplo de raciocínio binarista: as causas do insucesso ou estão nos alunos ou estão na sociedade, na escola e nos professores. Nunca se admite que os vários insucessos escolares – pois esse insucesso existe no plural, e não no singular – possam resultar da convergência de todos esses factores. Mais uma vez, em nome da preservação da auto-estima dos «coitadinhos», é a cultura da irresponsabilidade que se promove: «A culpa é sempre dos outros».
Entendamo-nos: eu não nego que a escola seja um poderoso sistema de exclusão, um sistema que antecipa os mecanismos excludentes do espaço de mercado. E também não afirmo que a alternativa defensável seja reforçar, nos alunos, comportamentos individualistas de competição que sirvam de treino para a concorrência comercial ou para a luta darwiniana por um posto de trabalho. O que eu digo é que esta questão não se esgota na opção entre uma escola competitiva e uma escola facilitista.
De resto, as premissas ético-políticas dos que contestam o ensino selectivo merecem ser interrogadas: será toda a exclusão moral e politicamente injusta? E será toda a selectividade necessariamente anti-democrática? Estas perguntas remetem para uma exigência crucial na teorização da democracia, que é a de pensarmos as dimensões não-democráticas que necessariamente se inscrevem na democracia.
Para pensar tais dimensões, não há como regressar a outro tema, tão velho como a própria teoria política: o tema da soberania. Conhecemos o que a doutrina clássica entendia a este respeito. Para ela, a atribuição da soberania confundia-se com a identificação da competência, de tal modo que a fonte do poder era identificada com o lugar do saber. Isto significava que nem toda a autoridade pode e deve ser partilhada, nem todas as decisões podem e devem ser objecto de negociação, e que nem todos os indivíduos podem deter autoridade sobre qualquer assunto. Esta concepção que, de facto, é não-democrática, atravessa no entanto o exercício da democracia. E por uma razão muito simples: nenhum sistema – mesmo a democracia mais participativa possível – funciona sem hierarquização de funções, sem uma distinção mínima entre instâncias de comando e instâncias de execução, havendo uma multiplicidade de contextos em que a distribuição das funções só resulta se for relativamente irreversível e desigual. E esta é uma situação que nenhuma denúncia foucaultiana das relações entre saber e poder consegue rasurar.
Ora, o processo educativo é bem o exemplo do que acabou de ser dito. A sua dimensão disciplinadora tem de começar por ser imposta antes de ser auto-interiorizada. E só mais tarde ela poderá ser objecto de avaliação, de problematização e de negociação. Muitos pedagogos pensam que democratizar a relação pedagógica exige o fim da desigualdade de poder entre professor e alunos, substituída por uma relação de «simetria» e de «reciprocidade», assente na «partilha» e numa permanente «negociação» da autoridade. Mas esta reivindicação confunde autoridade com autocracia e não reconhece a dimensão de coacção que está presente em toda a experiência educativa. Se alguma coisa aprendi foi justamente isto: que é na base das tensões resultantes da desigualdade entre professor e alunos que a relação pedagógica se pode construir e tornar-se produtiva. O nivelamento da autoridade não favorece a emancipação dos alunos ou a sua autonomia: apenas os desorienta. Pelo contrário, a autonomia cria-se no confronto criativo com a autoridade.
Para Hannah Arendt , o problema da soberania não é «como conciliar liberdade e igualdade», mas sim «como conciliar igualdade e autoridade». O desafio é, portanto, articular o regime igualitário com uma necessidade intrinsecamente desigualitária: a de seleccionar a elite política. Essa articulação é também a da exclusão e inclusão no interior de um paradigma de justiça, quando sabemos que estas são mecanismos inevitáveis e condições funcionais de qualquer sistema social. No caso da escola, o desafio reside em conciliar uma exigência não-democrática – a da selecção pela excelência – com a democratização do ensino. Isto requer a superação de todas as dicotomias que um certo discurso pedagógico pôs a circular: a oposição entre conhecimentos e competências, entre saber e «saber-fazer», entre o currículo uniforme e a heterogeneidade dos alunos, entre escola universalista e escola multicultural. Exige a imaginação necessária para começarmos a pensar as articulações possíveis entre os termos desses binómios.
O princípio da selecção pela excelência não é, em si mesmo, perverso, e o combate por uma definição emancipatória desse princípio parece-me estar na primeira linha da luta por uma escola genuinamente democrática. Esse combate requer que os critérios de excelência sejam subtraídos às lógicas de exclusão exercidas nos diferentes espaços de poder do sistema social. Mas esta é uma luta que extravasa muito para além do campo escolar. E enquanto ela não for travada, e decidida, em todos os domínios exteriores à escola, será inevitável que os modelos de hierarquização pelo mérito continuem a replicar as hierarquias de classe, e que os paliativos reformistas para evitar essa tendência incorram no mesmo vício.
Quanto ao «sucesso de todos», essa é uma mentira que, na melhor das hipóteses, significa o sucesso da mediocridade. E a mediocridade, tanto quanto sei, está longe de ser emancipatória…
MÁRIO ARTUR MACHAQUEIRO

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