sexta-feira, março 28, 2008

Civilização ocidental: uma ideia cujo tempo chegou

O Procurador Geral Michael Mukasey bebericava a sua água nervosamente. Era a primeira vez que testemunhava perante o Comité Judicial do Senado desde a controversa confirmação da sua nomeação. Em debate então e agora: a tortura. Considera ele o waterboarding [“submarino”] como tortura? Edward Kennedy, senador democrata de Massachussets, transformou-o num assunto pessoal: «O submarino seria tortura se o fizessem a si?» «Sentiria que sim», respondeu Mukasey. Apesar de ter fugido às perguntas, antes e depois da de Kennedy, a sua resposta pessoal soava a autêntica.

O nosso Procurador Geral não deveria necessitar de ser submetido ao submarino para saber que é tortura. De igual modo, os norte-americanos não deveriam ter que sofrer sob uma ditadura brutal para saber que está mal apoiar ditadores no estrangeiro.

Tomemos, por exemplo, o perene ditador da Indonésia, Suharto. Morreu esta semana aos 86 anos, uma idade que a maioria das suas mais de um milhão de vítimas não alcançaram. Suharto governou a Indonésia durante mais de 30 anos, sustido pelo país mais poderoso da Terra, os Estados Unidos. Suharto ascendeu ao poder em 1965 através de um golpe de estado apoiado pela CIA, que lhe forneceu listas de dissidentes, os quais então o exército indonésio assassinou, um a um. Foi expulso do poder em 1998, num levantamento pela democracia.

Durante todo o regime de Suharto, as administrações dos EUA – democratas e republicanas – armaram, treinaram e financiaram o exército indonésio. A somar ao milhão de indonésios assassinados, centenas de milhares foram igualmente assassinados durante a ocupação indonésia de Timor Leste, um pequeno país a 480 Km a norte da Austrália. É um país que conheço bem, já que fiz a cobertura informativa sobre esse país durante anos. No dia 12 de Novembro de 1991, quando fazia a cobertura de uma marcha pacífica de timorenses em Díli, a capital de Timor, o exército de ocupação de Suharto abriu fogo contra a multidão, matando 270 timorenses. Saí dessa situação com alguma sorte: os soldados agrediram-me com as suas botas e com as culatras das suas M 16 estadunidenses. Fracturaram o crânio do meu colega Allan Nairn, que naquela época escrevia para a revista The New Yorker. E aquele massacre foi um dos mais pequenos que ocorreu em Timor. Apesar disso, o presidente George H. W. Bush continuou a tentar fornecer armas à Indonésia, tal como o seu sucessor, Bill Clinton. Só um movimento de base nos Estados Unidos travou a venda de armas estadunidenses.

Além de ser brutal a níveis inimagináveis, Suharto era também um corrupto. A organização Transparência Internacional calculou que a fortuna de Suharto se situava entre 15 e 35 mil milhões de dólares. O actual embaixador estadunidense na Indonésia, Cameron Hume, louvou a memória de Suharto esta semana, declarando: «O presidente Suharto conduziu a Indonésia durante mais de 30 anos, um período durante o qual a Indonésia alcançou um notável desenvolvimento económico e social. [...] Apesar de poder haver alguma controvérsia sobre o seu legado, o presidente Suharto foi uma figura histórica que deixou uma marca duradoura na Indonésia e na região do sudeste da Ásia». Marca? Sim, se ele quer dizer arrancar as unhas às pessoas, fazer desaparecer os dissidentes indonésios, ou eliminar um terço da população de Timor Leste, um dos grandes genocídios do século XX. Mas claramente isso não foi o que Hume quis dizer.

Quer se trate do waterboarding [“submarino”], de lançar uma guerra ilegal, ou de reter centenas de prisioneiros sem acusação durante anos na Baía de Guantánamo ou em sítios negros da CIA por todo o mundo, recordo me de Mahatma Gandhi, um dos maiores líderes não-violentos do mundo: «Que diferença faz aos mortos, aos órfãos ou aos sem lar», perguntava, «se a destruição sem sentido é levada a cabo em nome do totalitarismo ou do santo nome da liberdade ou da democracia?»

A audição de Mukasey coincidiu por acaso com o 60º aniversário do assassinato de Gandhi. Também nesse dia, Rudolph Giuliani e John Edwards retiraram-se da corrida presidencial. No seu discurso de despedida, Edwards disse: «Chegou a hora da transformação dos Estados Unidos». À medida que se estreita a corrida, chega um momento chave para reflectir: um dos candidatos favoritos, John McCain, foi realmente torturado (ao contrário de Mukasey, ainda que McCain tenha apoiado a confirmação da sua nomeação). McCain prognosticou que poderíamos permanecer no Iraque durante 100 anos. Concorre contra Mitt Romney, que afirmou que duplicaria o tamanho de Guantánamo. Nenhum dos candidatos democratas restantes pede a retirada imediata das tropas do Iraque. Sim, é um momento chave para reflectir sobre os ensinamentos de Gandhi. Quando lhe perguntaram o que pensava da civilização ocidental, Gandhi respondeu: «Penso que seria uma boa ideia».

Amy Goodman
http://infoalternativa.org/autores/goodman/goodman0004.htm

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