Com inteligente humor, Ricardo Araújo Pereira dedica a sua crónica semanal na revista Visão de hoje ao vídeo em que uma aluna da escola Carolina Michaelis dá início a um motim porque a professora de Francês teve a ousadia de lhe confiscar o telemóvel e afirma:
“Eu nunca perco uma oportunidade de me juntar a um coro de moralistas (que normalmente têm uma afinação irrepreensível), e por isso estou aqui para dizer o mesmo: isto no meu tempo não era assim”. E mais adiante chama a atenção para este facto: “A verdade é que, se há coisa que nunca muda em toda a História da Humanidade é esta: os adolescentes são parvos em todo o lado”.
E nisso tem razão. Ora vejamos o que encontrei no casco submerso das minhas recordações esquecidas:
Em 1958, andava a minha turma no 5º ano do Liceu (o actual 9º de escolaridade) e a nossa sala de aulas era no rés-do-chão, mesmo ao lado do Gabinete do Reitor - à época o temível professor de matemática.
Nas suas aulas era frequente ouvi-lo dizer:
- Ozz meninozz vão mas é para casa ajudar as mãezinhazz a dezcazcar batatazz porque não percebem nada de matemáticazz – com aquela inolvidável peculiaridade de “zibilar” os esses, que tão bem o caracterizava no falar e lhe valia a alcunha de Zéquinha.
Por isso, não faltavam irreverências e picardias da nossa parte – com a inevitável retaliação, é claro.
Uma vez que um espertalhão acrescentou a um aviso – colocado na vitrina dentro da sala – por baixo do nome do Reitor a palavra Zéquinha, a reacção não se fez esperar. Foi assim:
- Chamada escrita. Escrevam as equações (tal, tal e tal) com Z maiúsculo em todas as incógnitas.
E logo que escrevemos as tais equações, mandou-nos entregar a “chamada escrita”, recolheu o aviso da vitrina, comparou as caligrafias e... identificou e puniu o irreverente autor da gracinha.
Ia o ano lectivo a meio quando, por impedimento do professor titular de português, veio substituí-lo uma senhora ternurenta e simpatiquíssima – daquelas tipo excepção para confirmar a regra – que achava imensa piada a todos os disparates que dizíamos e fazíamos durante as suas aulas.
Numa delas, deu-nos para cantarmos em coro “Malagueña Saleroza”, uma cantiguinha que estava na moda.
Como solista, um colega meu abriu as goelas empoleirado numa carteira, com um pé no banco e outro no tampo.
Íamos naquela “bonita” parte em que se entoa “iiiaaaauuu”, e o tenor, em êxtase, de olhos fechados e braços abertos, a imitar para aí o Mário Lanza, quando se abre de repente a porta e entra o Reitor.
Calamo-nos todos menos o solista, que continuou de olhos fechados em gorgeios “iiiaaauuuu, iaau, iiiiiaaaaaauuuuu”.
Até o Zéquinha o puxar da carteira por um braço e pô-lo fora da sala aos berros:
- Ah! Malandro, desta vez apanhei-te! Vais pagá-las todas juntas!
No dia seguinte, já o aluno cantor estava a cumprir cinco dias de suspensão às aulas.
Também Baptista-Bastos se refere ao assunto no DN de ontem em que começa por escrever:
“Parece que o vídeo da zaragata ocorrida entre uma aluna e uma professora do Liceu Carolina Michaëlis de Vasconcelos, no Porto, sobressaltou as serenas consciências e permitiu uma resoluta série de opiniões. Putativos culpados: a aluna, a professora, a escola, a ministra - e os pais. Não me atrevo a juízos definitivos. A vigilância hierarquizada, assim como a punição pelo método da pirâmide, correspondem, em última análise, a insidiosas extensões dos mecanismos de poder. O que está em causa, modestamente o creio, é a questão do "sistema", não as debilidades do "regime". Este possui os desvios e as turbulências comuns às suas estruturas e instituições. Aquele nunca cedeu ao seu radical objectivo.
A verdade é que, um pouco por todo o mundo, a violência nos estabelecimentos de ensino é um dado adquirido. Os estudantes do Maio de 68 exigiam "Tudo, já!", e invocavam ser a última das gerações marcadas pela injustiça. Sacolejaram a velha doutrina. O festim durou um instante. E os seus líderes deram no que deram, com especial relevo para a teatralidade pungente de Cohn-Bendit. O mal-estar persiste porque se alterou alguma coisa a fim de tudo ficar na mesma. A fórmula de Lampedusa aplica-se, também, às situações a que temos assistido. Não há ausência de valores. Há, isso sim, outros valores de rápida importação, sobre os quais nenhuma reflexão tem sido feita. A nova ordem económica mundial modificou, substancialmente, o articulado no qual se estatuiu, durante décadas, a nossa existência comum. Tudo se tornou precário, instável e inquietante. Destruiu-se comportamentos consolidados, disposições familiares de séculos, mecanismos que garantiam equilíbrios sociais. …
Em todos os sectores funcionam aparelhos penais, num espaço que as sociedades deixaram vazio, por não esclarecerem a dimensão das novas regras. E estas foram estabelecidas pelo capitalismo moderno, rude e desenfreado por inexistência de alternativa credível
…
Vivemos num tempo evolutivo. A escola, a Igreja, a justiça, o amor, o conceito de família, a noção de comunidade, tal como no-lo foram inculcados, são sacudidos porque emergiram outras modalidades de poder. O caso do liceu do Porto é um dos sinais do tempo. Nem mais nem menos graves do que outros”
Pois é! Também acho que são sinais do tempo que vivemos.
E há muito digo: mudem o sistema senão isto acaba mal.
http://alvarohfernandes.blogspot.com/
Sem comentários:
Enviar um comentário