Por vezes, algo é dito sobre você, e você não tem a certeza se o deve receber como elogio ou como insulto.
Dois proeminentes jornalistas, que respeito muito, mencionaram me em conexão com o primeiro ministro. Akiva Eldar, do Haaretz, perguntou no mês passado sobre Ehud Olmert: «Como tratar um filho da Família Lutadora (uma alcunha do Irgun, do qual um dos líderes foi o pai de Olmert) que soa como Uri Avnery?» E esta semana Gideon Levy escreveu no mesmo jornal que Olmert «fala como Uri Avnery, ainda que 40 anos mais tarde».
Referiam-se, presumo, ao pedido público que dirigi há 40 anos ao então primeiro ministro, para que permitisse que os palestinianos estabelecessem um Estado palestino na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, que acabavam ambos de ser ocupados por tropas israelenses.
Eu estava então sozinho entre os 120 membros do Parlamento, e a minha revista noticiosa semanal, Haolam Hazeh, era o único órgão da imprensa que publicara o plano.
Agora, Olmert diz que o Estado de Israel estará perdido se não se criar um Estado palestino no quadro da Solução dos Dois Estados.
Devo sentir satisfação? Se o primeiro ministro de Israel aceita as coisas que você dizia há 40 anos (e também há 60 anos), o que poderia ser melhor?
Afinal de contas, se você propõe um plano político, você quer que se realize. A única pessoa que pode implementá lo na prática é o primeiro ministro. Quando o primeiro ministro se apropria do plano, é caso para saltar de felicidade, cantando: “Eu bem disse!”
Num livro publicado em 1970 pela editora oficial da OLP em Beirute, a Solução dos Dois Estados era chamada “o Plano Avnery”. O autor, Kamil Mansur, condenava o sem meias-palavras. Mas apenas três anos mais tarde, no final de 1973, Yasser Arafat adoptou o. Agora é apoiado tanto pelo líder da OLP quanto pelo primeiro ministro de Israel. Aleluia.
Claro que Olmert não faz estas declarações porque eu e os meus amigos o tenhamos convencido. Conheço o há 40 anos, desde os seus primeiros passos na arena pública, e durante a maior parte desse tempo fomos inimigos. No início, ele era o homem de mão de Shmuel Tamir, que em 1967 cunhou a palavra de ordem «territórios libertados não serão devolvidos». Mais tarde, como presidente de câmara de Jerusalém, construiu colonatos por todo o lado e deliberadamente provocou confrontos sangrentos, como o infame incidente do túnel.
Mas se ele agora sente a necessidade de apoiar um plano que é o oposto de tudo o que defendeu durante toda a vida, isso prova a popularidade da ideia. A nossa participação directa nisto pode ter sido limitada, mas a nossa contribuição indirecta foi, talvez, considerável. Preparámos a opinião pública. E, em qualquer caso, os processos históricos desenvolveram se do modo como previmos, e empurraram as lideranças de ambos os lados neste sentido.
Isto prova novamente que, embora à superfície estejam a acontecer coisas monstruosas, por baixo, nas profundezas da consciência nacional, tendências racionais e positivas estão a ganhar terreno. Trata se de um longo e doloroso processo, mas, no final, estas ideias prevalecerão.
Mas a dúvida está a roer. Talvez as palavras de Olmert sejam apenas ilusão? Engano? Trapaça?
Será que Olmert viu realmente a luz, como Saul na estrada para Damasco, ou é isto apenas uma jogada política?
Algumas pessoas crêem que a conversa sobre as «questões nucleares» e o «acordo de reserva antes do final de 2008» não são mais que as tácticas sofisticadas de um político astuto que está em apuros. Dentro de duas semanas, a Comissão Winograd publicará o seu relatório final sobre a Segunda Guerra do Líbano, e Olmert pode encontrar-se numa posição impossível. Manifestantes, na rua, exigirão a sua demissão. O líder do Partido Trabalhista, Ehud Barak, enfrentará a exigência para se demitir, como prometeu, no dia em que o relatório seja emitido, e assim fazendo cair o governo.
Em tal situação, um político só pode fazer uma de duas coisas: começar uma guerra ou correr para a paz. Como as condições necessárias para uma guerra não parecem presentes no momento, a única opção que resta é um processo de paz. Então Olmert torna se um homem de paz, fala a linguagem da paz e faz gestos de paz.
Os cépticos perguntam: assumindo que isto ajudará Olmert a sobreviver à crise e a continuar primeiro ministro com uma coligação estável – continuará depois a mover-se no sentido da paz? Não se servirá do primeiro pretexto disponível para lhe pôr fim? Não é isto indicado pela seu comportamento actual: não honrar o compromisso de remover os postos avançados dos colonatos, intensificar a actividade construtora em Jerusalém Leste e na Cisjordânia, prosseguir o bloqueio e o banho de sangue na Faixa de Gaza e recusar a oferta de cessar fogo do Hamas?
Em suma, não devemos cair presa da esperança. Pelo contrário, devemos expor a face real do primeiro ministro que está a explorar o nosso plano como um meio de engano.
Mas, ainda que esta análise pareça razoável, sofrerá de excessiva simplificação?
O facto político mais importante da semana passada foi a demissão de Avigdor Lieberman do governo. A sua razão oficial foi que não pode permanecer num governo que está a levar a cabo negociações sobre as «questões nucleares»: fronteiras, refugiados, Jerusalém e colonatos. Isto pode ser só um pretexto. Lieberman realiza arrevesados cálculos políticos que uma pessoa razoável não pode seguir. Mas facto é facto. Os novos admiradores de Olmert, incluindo o líder do Meretz, Yossi Beilin, afirmam que a demissão prova que Olmert é sério.
Lieberman foi-se, mas o Shas fica – respondem os cépticos. A maneira de pensar de Lieberman pode ser labiríntica, mas as considerações do Shas são bastante evidentes. O Shas está agora na situação com que todo o político sonha. Após a separação de Lieberman, a coligação governamental tem apenas 67 votos dos 120 assentos do Parlamento. Se os 11 membros do Shas se separarem também, então Olmert não tem governo.
O Shas é um partido da direita nacionalista e precisa de um pretexto para ficar na gamela governamental. Declaram que sairão no momento em que o governo inicie conversações com os palestinianos sobre Jerusalém. Mas em negociações sérias será impossível não o fazer. As questões nucleares não estão separadas – uma concessão numa questão deve ser respondida com uma concessão a condizer noutra questão. A presença continuada do Shas no governo sugere um compromisso secreto de Olmert de não tocar de todo nas questões nucleares.
Os assistentes de Olmert fazem o melhor para colocar à vontade a direita: não há nada por que ficar preocupar. Bem vistas as coisas, Olmert tenciona apenas atingir um «acordo de reserva» dentro de um ano. «Acordo de reserva» é um novo termo político que significa um documento que resume todos os princípios de um acordo de paz. A sua aplicação real será então adiada até que ambas partes cumpram as exigências básicas: a «liquidação da infra-estrutura do terror» num lado e a «evacuação dos postos avançados dos colonatos» no outro. “Isso nunca acontecerá”, diz a gente de Olmert à direita com um piscar de olhos.
De qualquer forma, quando se sopesam as possibilidades, também nos devemos lembrar que as declarações de um primeiro-ministro têm vida própria, qualquer que seja a sua intenção. Não podem voltar à boca que as pronunciou. As palavras ficam gravadas na memória colectiva, mudam a consciência nacional. Quando Olmert diz que o Estado de Israel está «perdido» se um Estado palestino não for estabelecido ao seu lado, este é um marco significativo.
Tal como as pessoas dos reality shows, a primeira prioridade de Olmert é sobreviver.
Isto deve ser tido em conta ao tentar adivinhar se ele é sério quando fala a nossa linguagem, ou se estas são apenas palavras vazias. É este um “novo Olmert”, tal como Saul se converteu de facto em Paulo, ou é este apenas o velho Olmert num novo disfarce de moda? Será possível que, acima de todas as considerações tácticas, Olmert queira realmente gravar o seu nome na história com um grande feito?
Entretanto, a situação na sitiada Faixa de Gaza torna se cada vez pior. O número de palestinianos mortos todos os dias duplicou. O Chefe do Estado Maior jacta se disso. As organizações palestinas, por sua vez, dobraram o número de foguetes Qassam lançados sobre Israel e, também desta vez, o Hamas está a assumir oficialmente a responsabilidade. Como de costume, cada lado alega que só está a responder aos actos do outro lado.
Entre os palestinianos mortos estava Hussam al-Zahar, o filho do antigo ministro dos Negócios Estrangeiros do governo do Hamas. O serviço de segurança Shabak afirma que o pai é agora o líder mais extremista do Hamas. Se for verdade, isso é significativo. Há 16 anos, al-Zahar manifestou-se juntamente com activistas da paz israelenses contra a expulsão de personalidades islâmicas por Yitzhak Rabin. Quando os desterrados voltaram, organizou uma grande assembleia em Gaza, na qual fui convidado a falar (em hebreu) perante centenas de xeques, portando o emblema das duas bandeiras – a bandeira de Israel e a bandeira da Palestina.
Se tal pessoa se tornou no líder mais extremista, isso é indubitavelmente o fruto da ocupação. Prova de novo – se é necessária prova – que a opressão, que é suposta destruir o Hamas, consegue exactamente o oposto: empurra a organização palestina para posições cada vez mais extremas. Nesta semana, depois de al Zahar ter perdido o seu segundo filho (o mais velho já tinha sido morto há algum tempo), tornou se o líder mais popular do mundo árabe. Chefes de Estado apressaram-se a ligar lhe para lhe expressar condolências.
São estas as acções de um primeiro-ministro israelense que quer alcançar a paz porque acredita que Israel está perdido sem ela?
Voltando ao princípio: devo estar feliz ou furioso quando «Olmert soa como Uri Avnery»?
Recordo as palavras de Rudyard Kipling: «Se podes suportar ouvir a verdade que disseste / Retorcida por velhacos para fazer uma armadilha para néscios...» Diz se que a imitação é a mais sincera forma de lisonja, mas será necessária a implementação para afastar a dúvida persistente.
Uri Avnery
http://infoalternativa.org/autores/avnery/avnery083.htm
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