Se estamos seriamente interessados na qualidade do ensino, temos de perguntar o que realmente tem efeitos causais na qualidade do ensino ministrado pelos professores. Não vale a pena andar com malabarismos futuristas pensando que daqui a vinte anos os piores professores terão sido afastados e substituídos por professores de excelência, por via de um qualquer sistema de avaliação. Ninguém será despedido ou afastado do ensino por incompetência ou por haver melhores professores do que eles fora do sistema. Isso não acontecerá nesta avaliação nem vai acontecer em qualquer outra. Mesmo um professor com graves deficiências de língua portuguesa, ou de cálculo, ou de conhecimento histórico, acabará por atingir a idade da reforma no sistema. É puro delírio pensar que algum professor alguma vez será afastado por incompetência ou, ainda mais delirante, por ser menos competente do que outros. Isso jamais acontecerá. É por isso que toda esta conversa da avaliação dos professores é uma mentira política.Tentando olhar para as coisas com realismo, vejo seis factores que me parece terem realmente impacto na qualidade do ensino. Outros haverá, mas estes parecem-me centrais:1) O domínio das matérias por parte do professor. Como formador de professores de filosofia, com centenas de horas de formação no meu currículo, a minha experiência é esta: são poucos os professores que procurei formar que estão em condições dar boas aulas de filosofia, a menos que recebam ajuda constante e formação contínua de qualidade. Não conhecem as bibliografias, saíram das universidades em estado virginal, não têm hábitos de estudo, e têm fortes limitações cognitivas por pura falta de treino. É preciso apoiá-los, porque ninguém os vai despedir; temos de contar com eles, e muitos deles, apesar de todas as deficiências, têm realmente vontade de fazer melhor, se alguém lhes disser claramente como se faz isso e se forem apoiados nesse esforço.2) O rigor dos programas. Estes são muito importantes, se forem bem feitos, pois ajudam os professores a fazer melhor o seu trabalho. Mas, pensando no caso da Filosofia, o programa actual tem muitas deficiências, para dizer as coisas com candura: não tem indicações de conteúdos científicos reconhecíveis como tal (limita-se a dizer “ensinem algo”), mas tem imensas prescrições pedagógicas. Devia fazer precisamente o oposto: deixar as estratégias pedagógicas ao professor — até porque estas têm de se ajustar aos contextos de aula — e tornar os conteúdos claros, precisos, rigorosos, e indicar fontes bibliográficas lúcidas. E este é um sinal das indicações emanadas da ideologia do “eduquês” que prolifera no Ministério da Educação, e que vê as coisas um pouco como os positivistas lógicos: pensam que há um Método Pedagógico que, se for aplicado, resolve todos os problemas do ensino, se aplica a todos os contextos e é independente do conteúdo das disciplinas. Infelizmente, não há tal Método Pedagógico, e a atenção devia estar nos conteúdos científicos e não nesse fantasiado Método Pedagógico.3) A qualidade dos manuais escolares. Manuais com muitos erros científicos, conversas moles sobre cidadanias, incoerências página sim página não, indecisão sobre o que se quer ensinar ao aluno, linguagens desnecessariamente vagas e complexas, falta de precisão — isto só impede o ensino de qualidade. Mas não há maneira de ter melhores manuais excepto estimulando a produção de melhores manuais, porque se fizermos um sistema de avaliação de manuais quem os vai avaliar terá deficiências científicas e didácticas tão graves quanto as pessoas que os escrevem. Não podemos entrar no delírio de pensar que há massa crítica por aí ao pontapé para fazer um bom trabalho de avaliação — se houvesse, não haveria manuais com falta de qualidade, pois essas pessoas escreveriam os manuais, nem haveria programas risíveis, pois uma vez mais essas pessoas fariam os programas. Temos de assumir de uma vez por todas as nossas deficiências formativas de base e trabalhar a partir de uma vontade humilde de fazer melhor, estudando, discutindo ideias e métodos e conteúdos, procurando bibliografias e comparando-as, para encontrar as melhores.4) A existência de boa bibliografia de apoio escolar, que ajude professores e estudantes, apresentando as matérias relevantes de maneira rigorosa e despretensiosa, numa linguagem clara, e que ajude o leitor não apenas a compreender os conteúdos da disciplina em causa (em vez de os decorar), mas também a) o gosto de estudar, b) e as competências centrais da disciplina em causa (no caso da filosofia: argumentar e teorizar, analisar teorias e argumentos alheios, traçar distinções conceptuais relevantes, formular problemas filosóficos e distingui-los dos que não são filosóficos, etc.).Estes são quatro factores internos, digamos, causalmente relevantes para a qualidade do ensino. Outros dois factores, externos, digamos, são os seguintes:5) A eliminação da identificação das matérias “nobres” (como a História ou a Matemática, a Filosofia ou a Física) com a superioridade social (ou até racial). O objectivo do ensino público é dar a todos — pobres e ricos, amarelos e azuis, rapazes e raparigas — a oportunidade de descobrir estas coisas. Não há mal algum em não gostar delas e preferir o surf, a telenovela ou jogos de computador. O mal é aluno não ter tido a oportunidade de conhecer essas matérias à melhor luz possível, para ver se isso lhe interessa ou não. Quando o ensino público não faz isso, só os filhos das famílias privilegiadas se interessam por essas coisas — os outros, ficam cativos do Big Brother e do resto, sem que tenham escolhido realmente essa via. Os actuais responsáveis educativos aprofundaram como nunca a ideia absurda de que aos filhos dos pobres não vale a pena tentar ensinar física quântica, pois estes só podem interessar-se por jogos de computadores e surf. Claro que os filhos deles mesmos se interessam precisamente por essas matérias "nobres".6) Programas de valorização do estudo, que façam as famílias mais carenciadas apoiar o estudo dos seus filhos e passar a ver o estudo como algo importante, e não como uma maneira de “depositar os filhos” para ir trabalhar. Para fazer isto é crucial o factor 5: enquanto continuarem a aparecer uns senhores de gravata na televisão com uma linguagem ininteligível para um taxista a dizer que ler livros é muito importante, a mensagem que está realmente a ser transmitida é a oposta: o taxista confirma que aquilo não é para o filho dele, até porque nunca se fala de dinheiro nem de saídas profissionais nessas conversas moles sobre a importância superlativa da “cóltura”. A história, biologia, filosofia ou matemática ou química ou música erudita devem ser encaradas como coisas com a mesmíssima dignidade social (ou racial) do que a tarefa de recolher lixo, fazer pão e conduzir comboios. O que conta é que as pessoas possam escolher, depois de conhecer, aquilo em que revelam mais talento e que se sentem melhor a fazer, pois é essa a melhor contribuição que podem dar aos outros: serem competentes na sua área, seja qual for, e fazer o que fazem por gosto. Isto no nosso país é uma meta longínqua porque há uma história social triste em que as pessoas se tornam médicos ou advogados ou professores ou seja o que for não por gostarem realmente do que fazem, mas porque era a única maneira de ter um certo estatuto social, apropriado ao estatuto social da sua família. O resultado é uma imensa distorção na nossa sociedade: a energia cognitiva e afectiva das pessoas não está na profissão que desempenham a contragosto, mas noutra coisa qualquer, na qual são então também igualmente incompetentes precisamente porque têm apesar de tudo de dar alguma atenção cognitiva à sua profissão real.Caso se estivesse a pensar seriamente na qualidade do ensino, teríamos de estar a discutir estes e outros tópicos igualmente relevantes. A conversa sobre a avaliação dos professores nada tem a ver com isto. É pura mentira política: uma maneira de poupar dinheiro, nada mais.
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