Prefácio ao DO PRINCÍPIO FEDERATIVO
A Nacionalidade e a Unidade, eis o que são hoje a fé, a lei, a razão de Estado, eis os deuses da Democracia. Mas, a Nacionalidade é para ela uma simples palavra, pois que para o pensamento dos democratas ela só representa sombras. Quanto à Unidade, veremos, no decurso desta obra, o que é preciso pensar do regime unitário. Mas posso adiantar, a propósito da Itália e dos arranjos de que a carta política desse país foi objecto, que essa unidade sobre a qual se lançaram com um tão vivo entusiasmo tantos dos apelidados amigos do povo e do progresso, não é mais, no pensar dos habilidosos, que um negócio, um enorme negócio, metade dinástico e metade bancocrático, polido de liberalismo, entrecortado de conspirações, e à qual republicanos honestos, mal informados ou tomados por papalvos, servem de ama¬ seca.
Tal democracia, tal jornalismo. Desde a época em que eu acusava, no Ma¬nuel du spéculateur à la Boursee), o papel mercenário da imprensa, este papel não mudou; tão somente estendeu o círculo das suas operações. Tudo o que outrora possuía de razão, de espírito, de crítica, de saber, de eloquência, resumiu¬ se, salvo raras excepções, nessas duas palavras que tomo de empréstimo ao vocabulário do ofício: Crítica negativa e Publici¬dade. O problema italiano atirado aos jornais, nem mais nem menos como se se tratasse de uma sociedade por quotas, esses estimáveis quadrados de papel, como uma claque que obedece ao sinal do chefe, começaram por me tratar por mistificador, malabarista, bourbonista, papista, de Eros¬tratof), renegado, vendido: abrevio a ladaínha. Depois, tomando um tom mais calmo, começaram a lembrar que eu era o inimigo irreconciliável do Império e de todos os governos, da Igreja e de todas as religiões, assim como de toda a moral: um materialista, um anarquista, um ateu, uma espé¬cie de Catilina literário sacrificando tudo, pudor e bom senso, à fúria de se fazer falado, e cuja táctica exposta a partir de então era, associando sorra¬teiramente a causa do Imperador à do Papa, atirar os dois contra a demo¬cracia, perder uns pelos outros todos os partidos e todas as opiniões, e erigir um monumento ao meu orgulho sobre as ruínas da ordem social. Tal foi o fundo das críticas do Siècle, Opinion national, Presse, Echo de la Presse, La Patrie, Pays, Dèbats: e omito, pois não li tudo. Lembraram, nessa ocasião, que eu tinha sido a principal causa da queda da República; e apareceram democratas tão amolecidos do cérebro para me dizerem ao ouvido que tal escândalo não se repetiria, que a democracia tinha regres¬sado das loucuras de 1848, e que o primeiro a quem ela destinava as suas balas conservadoras era a mim.
Não queria de modo algum parecer atribuir a violências ridículas, di¬gnas das páginas que as inspiravam, mais importância do que a que mere¬ciam; cito¬ as pela influência do jornalismo contemporâneo e teste¬munho do estado dos espíritos. Mas se o meu amor¬ próprio como indiví¬duo, se a minha consciência de cidadão é superior a semelhantes ataques, o mesmo não acontece com a minha dignidade de escritor intérprete da Revolução. Estou farto dos ultrages de uma democracia decrépita e dos aviltamentos dos seus jornais. A seguir ao 10 de Dezembro de 1848, vendo a massa do país e todo o poder do Estado virados contra aquilo que me parecia ser a Revolução, tentei aproximar¬ me de um partido que, se desprovido de ideais, valia ainda pelo número. Foi um erro de que amar¬gamente me arrependi, mas do qual ainda é tempo de regressar. Sejamos nós próprios, se queremos ser algo; formemos, se houver lugar, com os nossos adversá¬rios e os nossos rivais, federações, nunca fusões. O que me acontece desde há três meses, decidiu¬ me, sem retrocesso. Entre um partido caído no romantismo, que com uma filosofia do direito soube des¬cobrir um sistema de tirania, e com as manobras dos agiotas um pro¬gresso; para o qual os costumes do absolutismo são virtudes republicanas, e as prerrogativas da liberdade uma revolta; entre esse partido, dizia, e o homem que procura a verdade da Revolução e a sua justiça, não pode haver nada de comum. A separação é necessária, e, sem raiva como sem receio, faço¬ a.
Durante a primeira revolução, os jacobinos sentiram de tempos a tem¬pos a necessidade de retemperar a sua sociedade, executando sobre eles próprios aquilo que se chamava então uma limpeza. É a uma manifestação do género que apelo ao que resta dos amigos sinceros e esclarecidos das ideias de 89. Convencido do concurso de uma elite, contando com o bom senso das massas, rompo, pela minha parte, com uma facção que já não representa nada. Mesmo que não fôssemos mais do que uma centena, chega para o que ouso empreender. Sempre a verdade serviu os seus perseguidores; quando eu tiver caído, vítima dos que estou decidido a combater, terei ao menos a consolação de pensar que quando a minha voz se calar o meu pensamento obterá justiça, e que cedo ou tarde os meus próprios inimigos serão meus apologistas.
Mas que digo eu? Não haverá nem batalha nem execução: o julgamento do público justificou¬ me antecipadamente. Não tinha corrido o rumor, repetido por diversos jornais, que a resposta que publico agora teria como título: Os Iscariotes?... Não há justiça como a da opinião pública. É pena! seria mal que desse à minha brochura esse título sangrento, para alguns mais que merecido. Desde há dois meses que estudo o estado das almas, pude aperceber¬ me que, se a democracia abunda de Judas, aí encontramos ainda mais S. Pedros, e escrevo para estes pelo menos tanto como para aqueles. Renunciei pois ao prazer de uma vendetta; sentir¬ me¬ ei muito feliz se, como o galo da Paixão, puder fazer entrar neles tanto de pequenas coragens, e lhes restituir com a consciência o entendimento.
Pois se, numa publicação cuja forma era mais literária que didáctica, pretendeu¬ se não atingir o pensamento que lhe dava a alma, sou forçado a retomar os processos escolares e argumentar dentro das regras. Assim, divido este trabalho, bem mais extenso do que desejaria, em três partes: a primeira, a mais importante para os meus ex¬ correligionários políticos, cuja razão sofre, terá por objecto apresentar os princípios da matéria; –na segunda, aplicarei esses princípios à questão italiana e ao estado geral dos assuntos, mostrarei a loucura e a imoralidade da política unitária; – na terceira, responderei às objecções dos Senhores jornalistas, benevolentes ou hostis, que julgaram dever ocupar-se do meu último trabalho, e farei ver pelo seu exemplo o perigo que corre a razão das massas, sob a influência de uma teoria destrutiva de todo o individualismo.
Peço às pessoas, seja qual for a sua opinião, que, mesmo não aceitando algo do fundo das minhas ideias, acolheram as minhas primeiras observações acerca da Itália com consideração, para me continuarem a apoiar. Não dependerá de mim, no caos intelectual e moral em que estamos mergulhados, nesta altura em que os partidos não se distinguem, como os cavaleiros que combatiam nos torneios, senão pela cor das suas faixas, que os ho¬mens de boa vontade vindos de todos os pontos do horizonte, encontrem finalmente uma terra sagrada sobre a qual possam pelo menos estender uma mão leal e falar uma língua comum. Essa terra é a do Direito, da Moral, da Liberdade, do respeito da Humanidade, numa palavra, em todas as suas manifestações, Indivíduo, Família, Associação, Cidade; terra da pura e franca Justiça, onde confraternizem, sem distinção de partidos, de escolas nem de cultos, de desgostos nem de esperança, todas as almas generosas. Quanto a essa fracção arruinada da democracia, que acreditou envergonhar me com o que ela chama os aplausos da imprensa legitimista, clerical e imperial, não lhe direi de momento senão uma palavra, é que vergonha, se vergonha há, é toda para ela. Era ela que me deveria aplaudir: o maior favor que lhe poderei fazer será o de lho provar.
e)Obra Proudhoniana cuja 1ª edição saiu em 1853, anónima. A 3ª edição, aumentada é de 1857 e vem já identificada. (N.T.)
f)Indivíduo obscuro, natural de Efeso que desejoso de imortalizar-se por um feito me-morável incendiou o templo de Ártemis da mesma cidade. (N.T.)
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