Considerações sobre o Federalismo
Apesar do pensamento proudhoniano ser duma riqueza extraordinária, vou limitar-me a fazer algumas observações sobre certos aspectos do federalismo, daquele que é o grande adversário ideológico de Marx, o pai do socialismo centralista e estatista.
O critério segundo o qual me proponho fazer a minha escolha é o da actualidade política tal e qual se apresenta aos olhos dum homem que vive num estado centralizado, que começa agora a colocar o problema da regionalização e onde Proudhon é, infelizmente, pouco conhecido nos nossos dias.
Neste contexto, queria fazer uma observação pessoal: para este trabalho, não foi um interesse pela ciência social pura que me conduziu ao estudo do que escreveu Proudhon; foi sobretudo o cuidado político de contribuir para aquilo que poderíamos chamar o renascimento do pensamento proudhoniano. Pois, creio que temos necessidade de examinar o valor prático do pensador do Princípio Federativo que vivia, como nós, numa época de transição. De modo que podemos presumir que as suas análises e as conclusões a que ele chegou, poderão também ensinar-nos qualquer coisa e aos nossos contemporâneos.
Sabemos bem que Proudhon, no fim da sua vida movimentada, resumiu o conjunto das suas conclusões, na verdade todo o seu pensamento, no conceito geral de “federalismo”. O público português tem agora acesso directo ao que ele escreveu, em 1863, no Do Princípio Federativo a este respeito: “Todas as minhas ideias económicas, elaboradas desde há vinte e cinco anos, podem resumir-se nestas três palavras: Federação agrícola-industrial.Todas as minhas vistas políticas se reduzem a uma fórmula idêntica: Federação política ou Descentra-
lização;...todas as minhas esperanças actuais e de futuro são expressas por este terceiro termo, corolário dos dois outros: federação progressiva.” (1)
A palavra “federalismo” designa então, dum modo englobante, um princípio de estruturação nos domínios da economia, da sociedade e do Estado, que resume o conjunto das ideias de Proudhon relativo a uma nova ordem política, tomada no sentido mais amplo.
Um pouco mais tarde, Constantin Frantz na Alemanha utilizou o termo “federalismo” duma maneira igualmente englobante.No entanto, os dois homens têm ideias totalmente diferentes daquilo a que eles chamam “federalismo”. Em Frantz, o federalismo englobando o Estado, a economia e a sociedade formam um programa político que deriva da sua Weltans-
chauung teológico-transcendental, guiado pela ideia directriz dum pacto concluído entre Deus e os homens. Ao contrário, podemos, a meu ver, caracterizar o conceito proudhoniano de “federalismo” como sendo uma noção racional e imanente, esta última palavra tomada no sentido que lhe deu Emmanuel Kant, noção que tem as suas raízes no século das Luzes. Em que medida, entretanto, poderíamos descobrir também na noção proudhoniana de “Justiça”, um elemento transcendental, é uma questão que não nos iremos ocupar aqui e agora.
É justamente por esta razão, e também em virtude da perspectiva política mencionada atrás, que queria limitar-me a fazer alguns reparos que dizem respeito aos aspectos do federalismo proudhoniano, graças aos quais podemos demonstrar particularmente bem a sua actualidade política. A saber: a federação agrícola-industrial e a associação de regiões autónomas na base de comunas autónomas. Destes dois aspectos do federalismo proudhoniano, só me interessa destacar de mais perto, aqueles que possuem traços característicos dos quais podemos deduzir ideias que, em parte, foram já desenvolvidas e em parte, devem-no ser cada vez mais, a fim de que a crise política dos países europeus, tomada no sentido largo do termo, possa ser superada.
É bem conhecido que tratando-se da “federação agrícola-industrial”, tem a ver com uma aliança de empresas dos sectores primário e secundário da economia, como são hoje designados, que se devem unir por sua vez por ramos na base dos princípios do “contrato sinalagmático e comutativo”,(2) para defender os interesses das suas competências face ao Estado e à alta finança. Um dos traços característicos desta estrutura organizacional que se estenderá para lá das fronteiras nacionais, parece-me ser o da sua formação segundo o “princípio residual”; quer dizer: elementos de poder cada vez menos importantes serão distribuídos “de baixo para cima” pela atribuição de competências e de recursos adequados aos fins pretendidos, partindo das empresas individuais, e através das escalas superiores, até ao nível nacional ou mesmo europeu deste sistema escalonado.
Neste contexto, podemos bem criticar Proudhon no sentido de que não exprime de maneira concreta, a respeito da questão difícil, da representação dos trabalhadores nos escalões superiores das empresas individuais. Um outro traço característico do conceito proudhoniano de “federação agrícola-industrial” parece-me ser a consciência de solidariedade exigida, a fim que sejam ligadas entre eles de maneira fecunda o pendor individualista dos homens,por um lado, e a necessidade de trabalhar nos grupos a favor da salvaguarda comum dos seus interesses. Digo “deve guiar” para indicar a carência político-pedagógica que se verifica, actualmente, talvez ainda mais do que na época de Proudhon, numa via económica caracterizada largamente por um “individualismo massificante”.
Sabemos que há sempre forças exercendo a sua influência contra as tendências à massificação e, também, contra as tendências - ligadas às primeiras - da despersonalização do indivíduo. Que me lembre, a título de exemplo, do movimento não-conformista que existiu em países europeus entre as duas guerras mundiais, foi bem representado em França, por grupos como “Ordre Nouveau”, “Esprit” e outros. Nos anos sessenta, nos países industrializados da Europa ocidental houve um movimento análogo, extremamente heterogéneo, ocupando-se prioritariamente de problemas ecológicos assim como a revalorização da pessoa humana recorrendo cada vez mais à ideia de “entre-ajuda”. Esta posição pode ser considerada como uma reacção ao crescimento do poder - bem mais intenso no século XX que no XIX - de “potências feudais” modernas, para me aproximar da terminologia proudhoniana. Se as compa- -rarmos com as de então, elas podem servir-se de instrumentos inéditos de dominação tanto técnicos como financeiros que são susceptíveis de se apoiar numa rede de comunicação global que funciona perfeitamente.
A muito custo, regularmente tocado por reveses sérios e diversos, este “movimento alternativo” está de qualquer das maneiras, em vias de ultrapassar o particularismo reinante entre os seus aderentes e grupos-membros, em favor duma solidariedade bem diferenciada nos seus objectivos. O mesmo em favor de estruturas de organização que garantam as suas autonomias respectivas e, ao mesmo tempo, rendam possível a salvaguarda comum dos seus interesses particulares nos domínios económico e social: pensar por exemplo, nas ideias respeitantes a um consumo de energia descentralizado e residindo em recursos naturais, o desenvolvimento de economias regionais substituíndo as economias nacionais e, por fim, a construção de todo um sistema de redes constituídas por grupos de entre-ajuda que podem perfeitamente ser estabelecidos através das fronteiras dos Estados nacionais.
A actualidade permanente do conceito proudhoniano de “federação agrícola industrial” permanece, na minha opinião, deste modo: este conceito - modificado conformemente às exigências do nosso tempo - poderia contribuir para uma ligação, uma espécie de laço, espiritualizando todos estes grupos e grupúsculos do movimento alternativo que acabo de mencionar; mais, poderia ajudá-los a encontrá-los a sua “Ideia”, tomada no sentido proudhoniano, e a tornar-se gradualmente o “contra-poder” que se tornará, se ela quiser substituir um dia o sistema da sociedade de massas - que, industrializado, burocratizado e militarizado, é ameaçado cada vez mais pelas suas contradições inerentes - desenvolvendo uma nova ordem, salvaguardando a natureza e a humanidade.
Vamos agora passar ao segundo aspecto do federalismo proudhoniano que considero actual do ponto de vista político, a saber, a associação das regiões autónomas assentes em comunas autónomas. Digo conscientementemente “associação”, a fim de evitar um debate sobre a questão, a saber se Proudhon é representado, neste contexto, sobretudo por uma federação europeia ou uma confederação- debate que não contribui em nada em relação aquilo que me propus esclarecer. De passagem, esclareço que partilho a opinião de Bernard Voyenne, que no seu livro “Le Féderalisme de P.J. Proudhon”, inclina-se a pensar que Proudhon tinha antes a ideia duma confederação que a de uma federação.
Para mim, é mais importante sublinhar que a associação proudhoniana de regiões autónomas a construir sobre a base de comunas autónomas é caracterizada pelos seguintes traços:
Em primeiro lugar ela apresenta-se como uma estrutura transnacional que repousa essencialmente em três degraus, a saber: sub-regiões imediatamente acima das comunas, regiões étnicas e, enfim, uma confederação europeia com elementos de carácter federativo-por exemplo um Congresso europeu - que não deve ser “que uma confederação de confederações” (Do Princípio Federativo).(3)
Em seguida, o que caracteriza a concepção proudhoniana é a determinação dum objectivo sobretudo socio-económico que político.Quer dizer, a associação das regiões autónomas, segundo Proudhon, deveria servir sobretudo à satisfação das necessidades económicas e sociais das diversas populações regionais e à salvaguarda dos seus interesses do que corresponder à satisfação de aspirações políticas de não sei quais minorias dominantes nos domínios dos negócios estrangeiros e dos assuntos militares, o que não impediria a sua colocação em serviço em vista da defesa, se isso viesse a ser necessário. (ibid.)(4)
Finalmente, podemos designar como terceiro traço característico da concepção proudhoniana duma confederação europeia a distribuição do poder entre as suas partes diversas, segundo o princípio de residualidade, a realizar de tal maneira que as competências e os recursos minguavam a partir das unidades comunais através das unidades regionais até ao nível nacional. Conforme a este princípio, atribuir-se-ia ás “autoridades federais” (ibid.) somente tarefas de cordenação, de controle,de iniciação,de informação e “o menos possivel... de execução” (ibid.)
Proudhon inspirou de maneira decisiva, entre outras fontes, o regionalismo françês clássico na mudança entre os XIX e XX séculos, como o estudo escrito por Reinhard Sparwasser aparecido em 1986 com o título Zentralismus, Dezentra-
-lisation, Regionalismus und Föderalismus in Frankreich, bem demonstrou (5). Determinar se Proudhon continua a exercer a sua influência sobre o movimento actual do regionalismo étnico e autonómico - e se assim for, em que grau - seria duma importância política considerável. Segundo o que sei - e devo confessar que as minhas informações a este respeito são infelizmente limitadas tendo em conta o número enorme de livros e brochuras escritos sobre o regionalismo e o número restrito de pessoas com as quais pude contactar ao longo destes últimos anos,- os fins dos regionalistas autonómicos, na medida em que visam a Europa, assemelham-se um pouco ao conceito proudhoniano de uma associação de regiões autónomas.Trata-se, portanto, dum vasto espectro de intenções do lado dos regionalistas que vai, por exemplo, da noção do Scottish National Party duma Europa de Estados-nações soberanos de base étnica, ligados uns aos outros somente por alianças que se poderiam anular a todo o momento, e, por outro lado, o fim anunciado pelo Partito Popolare Trentino-Tirolese per l‘Unione Europea dum Estado europeu federal constituído por regiões étnicas autónomas.
O conceito proudhoniano duma associação de regiões autónomas poderia contribuir para a ideia duma unificação regionalista da Europa, como alternativa à simples justaposição de Estados-nações jacobinos, ideal das forças políticas reinantes hoje em dia, para se poder concretizar.É nisto que se revela a actualidade política permanente deste concepção.Verificamos, com efeito, premissas fecundas duma tal concretização, tanto científica como política.A título de exemplo, só menciono aqui, no domínio científico, que a concepção duma federação europeia constituída por regiões monoétnicas autónomas elaborado por Guy Héraud, professor de direito constitucional que é evidentemente inspirado pelo pensamento proudhoniano. Igualmente, no domínio político, o programa de base do Parti Fédéraliste Européen contém já certos traços fundamentais duma constituição europeia.
A actualidade política da concepção proudhoniana, em relação com o conceito moderno duma federação europeia de regiões monoétnicas, reconhece-se também relativamente à “questão alemã”, problema político sempre crucial para a Europa de hoje. Sabemos que Proudhon se pronunciou claramente contra toda a aspiração de unificação jacobina. Após várias hesitações nos anos quarenta e cinquenta, os diversos governos da Républica federal da Alemanha, de qualquer orientação política que fosse, tomaram as suas distâncias em relação a uma visão ilusória duma reunificação da Alemanha sob a forma dum Estado nacional de tipo jacobino. Servindo-se da fórmula: “reunificação alemã no quadro duma ordem pacífica de toda a Europa”, podemos imaginar outras formas duma convivência política entre os Alemãs diferente da que foi adoptada. Um debate público através da Europa, que se referisse às ideias de Proudhon, de Héraud e, talvez, também às ideias do federalista suiço, Denis de Rougemont, relativo àquilo que poderíamos chamar de “regionalismo polivalente”, nos levaria a longo termo, a uma outra solução da “questão alemã” que como acabo de dizer continua sempre no primeiro plano.
Termino estas observações sobre os aspectos do federalismo proudhoniano que me parecem sempre actuais do ponto de vista político. Que partes importantes do pensamento proudhoniano sejam de actualidade política, demonstra, como este pensamento é conforme à realidade, ou, para ser mais preciso, como ele é capaz de “se inscrever na realidade em movimento” para me servir das palavras do federalista Alexandre Marc (no prefácio ao livro citado de Bernard Voyenne) onde diz de Proudhon, que é “le vrai père du fédéralisme”(6). Trata-se não duma actualidade passageira de algumas simples receitas políticas que só é necessário aplicar palavra a palavra para resolver os problemas menos importantes, mas sobretudo de uma actualidade caracterizando orientações fundamentais, ao reforço das quais poderíamos encontrar respostas duráveis, conformes à realidade e ajustadas às necessidades e aos interesses dos homens. Espero que estas observações possam contribuir aos esforços para libertar tais orientações.
Apesar do pensamento proudhoniano ser duma riqueza extraordinária, vou limitar-me a fazer algumas observações sobre certos aspectos do federalismo, daquele que é o grande adversário ideológico de Marx, o pai do socialismo centralista e estatista.
O critério segundo o qual me proponho fazer a minha escolha é o da actualidade política tal e qual se apresenta aos olhos dum homem que vive num estado centralizado, que começa agora a colocar o problema da regionalização e onde Proudhon é, infelizmente, pouco conhecido nos nossos dias.
Neste contexto, queria fazer uma observação pessoal: para este trabalho, não foi um interesse pela ciência social pura que me conduziu ao estudo do que escreveu Proudhon; foi sobretudo o cuidado político de contribuir para aquilo que poderíamos chamar o renascimento do pensamento proudhoniano. Pois, creio que temos necessidade de examinar o valor prático do pensador do Princípio Federativo que vivia, como nós, numa época de transição. De modo que podemos presumir que as suas análises e as conclusões a que ele chegou, poderão também ensinar-nos qualquer coisa e aos nossos contemporâneos.
Sabemos bem que Proudhon, no fim da sua vida movimentada, resumiu o conjunto das suas conclusões, na verdade todo o seu pensamento, no conceito geral de “federalismo”. O público português tem agora acesso directo ao que ele escreveu, em 1863, no Do Princípio Federativo a este respeito: “Todas as minhas ideias económicas, elaboradas desde há vinte e cinco anos, podem resumir-se nestas três palavras: Federação agrícola-industrial.Todas as minhas vistas políticas se reduzem a uma fórmula idêntica: Federação política ou Descentra-
lização;...todas as minhas esperanças actuais e de futuro são expressas por este terceiro termo, corolário dos dois outros: federação progressiva.” (1)
A palavra “federalismo” designa então, dum modo englobante, um princípio de estruturação nos domínios da economia, da sociedade e do Estado, que resume o conjunto das ideias de Proudhon relativo a uma nova ordem política, tomada no sentido mais amplo.
Um pouco mais tarde, Constantin Frantz na Alemanha utilizou o termo “federalismo” duma maneira igualmente englobante.No entanto, os dois homens têm ideias totalmente diferentes daquilo a que eles chamam “federalismo”. Em Frantz, o federalismo englobando o Estado, a economia e a sociedade formam um programa político que deriva da sua Weltans-
chauung teológico-transcendental, guiado pela ideia directriz dum pacto concluído entre Deus e os homens. Ao contrário, podemos, a meu ver, caracterizar o conceito proudhoniano de “federalismo” como sendo uma noção racional e imanente, esta última palavra tomada no sentido que lhe deu Emmanuel Kant, noção que tem as suas raízes no século das Luzes. Em que medida, entretanto, poderíamos descobrir também na noção proudhoniana de “Justiça”, um elemento transcendental, é uma questão que não nos iremos ocupar aqui e agora.
É justamente por esta razão, e também em virtude da perspectiva política mencionada atrás, que queria limitar-me a fazer alguns reparos que dizem respeito aos aspectos do federalismo proudhoniano, graças aos quais podemos demonstrar particularmente bem a sua actualidade política. A saber: a federação agrícola-industrial e a associação de regiões autónomas na base de comunas autónomas. Destes dois aspectos do federalismo proudhoniano, só me interessa destacar de mais perto, aqueles que possuem traços característicos dos quais podemos deduzir ideias que, em parte, foram já desenvolvidas e em parte, devem-no ser cada vez mais, a fim de que a crise política dos países europeus, tomada no sentido largo do termo, possa ser superada.
É bem conhecido que tratando-se da “federação agrícola-industrial”, tem a ver com uma aliança de empresas dos sectores primário e secundário da economia, como são hoje designados, que se devem unir por sua vez por ramos na base dos princípios do “contrato sinalagmático e comutativo”,(2) para defender os interesses das suas competências face ao Estado e à alta finança. Um dos traços característicos desta estrutura organizacional que se estenderá para lá das fronteiras nacionais, parece-me ser o da sua formação segundo o “princípio residual”; quer dizer: elementos de poder cada vez menos importantes serão distribuídos “de baixo para cima” pela atribuição de competências e de recursos adequados aos fins pretendidos, partindo das empresas individuais, e através das escalas superiores, até ao nível nacional ou mesmo europeu deste sistema escalonado.
Neste contexto, podemos bem criticar Proudhon no sentido de que não exprime de maneira concreta, a respeito da questão difícil, da representação dos trabalhadores nos escalões superiores das empresas individuais. Um outro traço característico do conceito proudhoniano de “federação agrícola-industrial” parece-me ser a consciência de solidariedade exigida, a fim que sejam ligadas entre eles de maneira fecunda o pendor individualista dos homens,por um lado, e a necessidade de trabalhar nos grupos a favor da salvaguarda comum dos seus interesses. Digo “deve guiar” para indicar a carência político-pedagógica que se verifica, actualmente, talvez ainda mais do que na época de Proudhon, numa via económica caracterizada largamente por um “individualismo massificante”.
Sabemos que há sempre forças exercendo a sua influência contra as tendências à massificação e, também, contra as tendências - ligadas às primeiras - da despersonalização do indivíduo. Que me lembre, a título de exemplo, do movimento não-conformista que existiu em países europeus entre as duas guerras mundiais, foi bem representado em França, por grupos como “Ordre Nouveau”, “Esprit” e outros. Nos anos sessenta, nos países industrializados da Europa ocidental houve um movimento análogo, extremamente heterogéneo, ocupando-se prioritariamente de problemas ecológicos assim como a revalorização da pessoa humana recorrendo cada vez mais à ideia de “entre-ajuda”. Esta posição pode ser considerada como uma reacção ao crescimento do poder - bem mais intenso no século XX que no XIX - de “potências feudais” modernas, para me aproximar da terminologia proudhoniana. Se as compa- -rarmos com as de então, elas podem servir-se de instrumentos inéditos de dominação tanto técnicos como financeiros que são susceptíveis de se apoiar numa rede de comunicação global que funciona perfeitamente.
A muito custo, regularmente tocado por reveses sérios e diversos, este “movimento alternativo” está de qualquer das maneiras, em vias de ultrapassar o particularismo reinante entre os seus aderentes e grupos-membros, em favor duma solidariedade bem diferenciada nos seus objectivos. O mesmo em favor de estruturas de organização que garantam as suas autonomias respectivas e, ao mesmo tempo, rendam possível a salvaguarda comum dos seus interesses particulares nos domínios económico e social: pensar por exemplo, nas ideias respeitantes a um consumo de energia descentralizado e residindo em recursos naturais, o desenvolvimento de economias regionais substituíndo as economias nacionais e, por fim, a construção de todo um sistema de redes constituídas por grupos de entre-ajuda que podem perfeitamente ser estabelecidos através das fronteiras dos Estados nacionais.
A actualidade permanente do conceito proudhoniano de “federação agrícola industrial” permanece, na minha opinião, deste modo: este conceito - modificado conformemente às exigências do nosso tempo - poderia contribuir para uma ligação, uma espécie de laço, espiritualizando todos estes grupos e grupúsculos do movimento alternativo que acabo de mencionar; mais, poderia ajudá-los a encontrá-los a sua “Ideia”, tomada no sentido proudhoniano, e a tornar-se gradualmente o “contra-poder” que se tornará, se ela quiser substituir um dia o sistema da sociedade de massas - que, industrializado, burocratizado e militarizado, é ameaçado cada vez mais pelas suas contradições inerentes - desenvolvendo uma nova ordem, salvaguardando a natureza e a humanidade.
Vamos agora passar ao segundo aspecto do federalismo proudhoniano que considero actual do ponto de vista político, a saber, a associação das regiões autónomas assentes em comunas autónomas. Digo conscientementemente “associação”, a fim de evitar um debate sobre a questão, a saber se Proudhon é representado, neste contexto, sobretudo por uma federação europeia ou uma confederação- debate que não contribui em nada em relação aquilo que me propus esclarecer. De passagem, esclareço que partilho a opinião de Bernard Voyenne, que no seu livro “Le Féderalisme de P.J. Proudhon”, inclina-se a pensar que Proudhon tinha antes a ideia duma confederação que a de uma federação.
Para mim, é mais importante sublinhar que a associação proudhoniana de regiões autónomas a construir sobre a base de comunas autónomas é caracterizada pelos seguintes traços:
Em primeiro lugar ela apresenta-se como uma estrutura transnacional que repousa essencialmente em três degraus, a saber: sub-regiões imediatamente acima das comunas, regiões étnicas e, enfim, uma confederação europeia com elementos de carácter federativo-por exemplo um Congresso europeu - que não deve ser “que uma confederação de confederações” (Do Princípio Federativo).(3)
Em seguida, o que caracteriza a concepção proudhoniana é a determinação dum objectivo sobretudo socio-económico que político.Quer dizer, a associação das regiões autónomas, segundo Proudhon, deveria servir sobretudo à satisfação das necessidades económicas e sociais das diversas populações regionais e à salvaguarda dos seus interesses do que corresponder à satisfação de aspirações políticas de não sei quais minorias dominantes nos domínios dos negócios estrangeiros e dos assuntos militares, o que não impediria a sua colocação em serviço em vista da defesa, se isso viesse a ser necessário. (ibid.)(4)
Finalmente, podemos designar como terceiro traço característico da concepção proudhoniana duma confederação europeia a distribuição do poder entre as suas partes diversas, segundo o princípio de residualidade, a realizar de tal maneira que as competências e os recursos minguavam a partir das unidades comunais através das unidades regionais até ao nível nacional. Conforme a este princípio, atribuir-se-ia ás “autoridades federais” (ibid.) somente tarefas de cordenação, de controle,de iniciação,de informação e “o menos possivel... de execução” (ibid.)
Proudhon inspirou de maneira decisiva, entre outras fontes, o regionalismo françês clássico na mudança entre os XIX e XX séculos, como o estudo escrito por Reinhard Sparwasser aparecido em 1986 com o título Zentralismus, Dezentra-
-lisation, Regionalismus und Föderalismus in Frankreich, bem demonstrou (5). Determinar se Proudhon continua a exercer a sua influência sobre o movimento actual do regionalismo étnico e autonómico - e se assim for, em que grau - seria duma importância política considerável. Segundo o que sei - e devo confessar que as minhas informações a este respeito são infelizmente limitadas tendo em conta o número enorme de livros e brochuras escritos sobre o regionalismo e o número restrito de pessoas com as quais pude contactar ao longo destes últimos anos,- os fins dos regionalistas autonómicos, na medida em que visam a Europa, assemelham-se um pouco ao conceito proudhoniano de uma associação de regiões autónomas.Trata-se, portanto, dum vasto espectro de intenções do lado dos regionalistas que vai, por exemplo, da noção do Scottish National Party duma Europa de Estados-nações soberanos de base étnica, ligados uns aos outros somente por alianças que se poderiam anular a todo o momento, e, por outro lado, o fim anunciado pelo Partito Popolare Trentino-Tirolese per l‘Unione Europea dum Estado europeu federal constituído por regiões étnicas autónomas.
O conceito proudhoniano duma associação de regiões autónomas poderia contribuir para a ideia duma unificação regionalista da Europa, como alternativa à simples justaposição de Estados-nações jacobinos, ideal das forças políticas reinantes hoje em dia, para se poder concretizar.É nisto que se revela a actualidade política permanente deste concepção.Verificamos, com efeito, premissas fecundas duma tal concretização, tanto científica como política.A título de exemplo, só menciono aqui, no domínio científico, que a concepção duma federação europeia constituída por regiões monoétnicas autónomas elaborado por Guy Héraud, professor de direito constitucional que é evidentemente inspirado pelo pensamento proudhoniano. Igualmente, no domínio político, o programa de base do Parti Fédéraliste Européen contém já certos traços fundamentais duma constituição europeia.
A actualidade política da concepção proudhoniana, em relação com o conceito moderno duma federação europeia de regiões monoétnicas, reconhece-se também relativamente à “questão alemã”, problema político sempre crucial para a Europa de hoje. Sabemos que Proudhon se pronunciou claramente contra toda a aspiração de unificação jacobina. Após várias hesitações nos anos quarenta e cinquenta, os diversos governos da Républica federal da Alemanha, de qualquer orientação política que fosse, tomaram as suas distâncias em relação a uma visão ilusória duma reunificação da Alemanha sob a forma dum Estado nacional de tipo jacobino. Servindo-se da fórmula: “reunificação alemã no quadro duma ordem pacífica de toda a Europa”, podemos imaginar outras formas duma convivência política entre os Alemãs diferente da que foi adoptada. Um debate público através da Europa, que se referisse às ideias de Proudhon, de Héraud e, talvez, também às ideias do federalista suiço, Denis de Rougemont, relativo àquilo que poderíamos chamar de “regionalismo polivalente”, nos levaria a longo termo, a uma outra solução da “questão alemã” que como acabo de dizer continua sempre no primeiro plano.
Termino estas observações sobre os aspectos do federalismo proudhoniano que me parecem sempre actuais do ponto de vista político. Que partes importantes do pensamento proudhoniano sejam de actualidade política, demonstra, como este pensamento é conforme à realidade, ou, para ser mais preciso, como ele é capaz de “se inscrever na realidade em movimento” para me servir das palavras do federalista Alexandre Marc (no prefácio ao livro citado de Bernard Voyenne) onde diz de Proudhon, que é “le vrai père du fédéralisme”(6). Trata-se não duma actualidade passageira de algumas simples receitas políticas que só é necessário aplicar palavra a palavra para resolver os problemas menos importantes, mas sobretudo de uma actualidade caracterizando orientações fundamentais, ao reforço das quais poderíamos encontrar respostas duráveis, conformes à realidade e ajustadas às necessidades e aos interesses dos homens. Espero que estas observações possam contribuir aos esforços para libertar tais orientações.
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