A Problemática Anarquista
A primeira grande pergunta a fazer será pelo porquê da obra de Proudhon ter dado lugar a tantas polémicas, releituras e reinterpretações. Há certamente respostas a esta pergunta, mas é necessário sublinhar a enorme quantidade de escritos e tomadas de posição propícias a estes debates e a este considerável trabalho de reflexão crítica.
Há, poderemos dizer, textos fechados no seu dogmatismo que se prestam à repetição e preparam a submissão, e outros que abrem a discussão e estimulam o pensar crítico. A obra de Proudhon pertence a estes últimos.
É nossa intenção procurar aqui o porquê e as dimensões pelas quais esta obra foi e continua a ser essencialmente uma obra aberta, e igualmente, provocante no sentido de propiciadora de reflexões, de críticas e de acções.
Relembremos, antes de tudo, que Proudhon não se proclama anarquista em 1840 quando ele escreve a sua Primeira Memória; não se apresenta como o mensageiro duma doutrina já constituída que seria o anarquismo. Em 1840, não há, com efeito, doutrina anarquista definida, não há escola anarquista, mesmo se temas anarquistas foram anteriormente delineados. Proudhon empenha-se num trabalho de elaboração que vai durar de 1840 a 1865: face às transformações económicas, sociais, políticas, irá construir a sua reflexão, hesitar por vezes, corrigir-se, evoluir mas nunca desenvolver uma fórmula simples ou uma utopia à maneira de Fourier, por exemplo.
Nesta obra em evolução, obra comprometida mas também empenhada num trabalho permanente, quais serão os eixos essenciais que os anarquistas irão descortinar? É o que iremos fazer,de seguida, de um modo breve; podemos reter três: a crítica económica, a crítica política e, por fim, a crítica ideológica.
I. A crítica económica. A denúncia da propriedade privada, base de exploração dos trabalhadores, é preliminar, fundadora de toda a reflexão de Proudhon. A partir deste ponto assente, a reflexão, a discussão podem alargar-se. A crítica da propriedade privada dos meios de produção não conduz necessariamente a uma resposta anarquista. Este ponto de partida é também o de Étienne Cabet, de Constantin Pecqueur, de Karl Marx, e conduz a um conjunto de respostas bem variadas.
Para mais, Proudhon, como se sabe, não se limita à denúncia crítica (“Destruí e construíreis” proclama ele).O anarquismo proudhoniano não é somente negação, mesmo quando Proudhon faz a apologia da negação. Trata-se de realizar, como ele diz “a anarquia positiva” (85), quer dizer, a nova organização das forças sociais e económicas. O anarquismo proudhoniano encontra-se a léguas do niilismo.
Sobre este ponto essencial da organização anarquista das forças económicas, Proudhon não pára de se interrogar, trabalha de 1840 a 1865, precisa o seu pensamento e, em certa medida, evolui. Há, na interpretação que faço da filosofia proudhoniana, uma profunda continuidade de inspiração entre as páginas de 1850 na “Ideia Geral de Revolução” sobre o equilíbrio das forças económicas e as de 1865 sobre o mutualismo generalizado, e mesmo desde as breves indicações de 1840 sobre o equilíbrio das forças antagónicas. Trata-se sempre de libertar o trabalho e os laços de produção, de criar um sistema eminentememte pluralista onde a dinâmica e o equilíbrio serão tocados pela igualdade dos produtores, os contratos, pelo estabelecimento da justiça nas trocas.(86)
Contudo, Proudhon prosseguiu a reflexão, a evolução em particular, sobre o papel exacto da propriedade no dinamismo económico, desde a “Primeira Memória” de 1840 até ao texto póstumo publicado em 1865: “Teoria da Propriedade”.
Esta evolução, esta obra que vai sendo feita, em movimento sobre estes pontos essenciais, leva-nos, podemos dizê-lo, a pensar. Esta evolução na continuidade é, de qualquer modo, provocante. Podemos prever que certos leitores reterão sobretudo a evolução enquanto que outros reterão fundamen-talmente a continuidade: debates múltiplos se têm desenvolvido, com efeito, sobre esta questão.
Esta “provocação a fazer pensar” foi reivindicada firmemente por Proudhon. Como escreveu claramente a Marx na sua carta de Maio de 1846: “estigmatizemos todas as exclusões... não olhemos nunca uma questão como esgotada, e, quando tivermos usado até ao nosso último argumento, recomecemos, se for preciso.” (87) Proudhon apela ao prosseguimento da reflexão crítica e faz profissão em contestar-se.
II. A critica política. O segundo eixo da crítica, a denúncia do poder e do Estado, traz-nos certamente elementos teóricos incontestavelmente anarquistas.
Conhece-se as circunstâncias: estamos em 1849-1850, Proudhon verifica o refluxo e a confusão do movimento revolucionário; apercebe-se das ameaças duma evolução em direcção a um socialismo de Estado. É o momento em que distingue simultaneamente o poder da ilusão política e os riscos duma regressão autoritária sob a capa duma pretensa democracia ou dum aparente socialismo.
É o momento em que Proudhon analisa a natureza do Estado através de fórmulas lapidares: “constituição exterior do poder social” diz ele, constituição tornada transcendente que se volta contra a sociedade, contra a liberdade dos cidadãos:
“Por esta constituição exterior do seu poder e soberania, o povo não se governa a ele próprio: é umas vezes um indivíduo, outras vezes vários que, a título electivo ou hereditário, são encarregados do governar.” (88)
Este poder exterior à sociedade verdadeira, poder de opressão e de repressão, antinómico às liberdades individuais e colectivas, princípio das hierarquias e das desigualdades, está em perfeita contradição com “a autonomia das massas”.
Proudhon enuncia então com clareza a sua concepção de anarquia. E, na sua polémica contra Louis Blanc et Pierre Leroux, as fórmulas abundam. Após a revolução social dirá:
“A sociedade subsiste por ela própria e não tem necessidade de governo. Nós somos, por consequência, e proclamamo-lo mais duma vez, anarquistas. A anarquia é a condição de existência das sociedades adultas, como a hierarquia é a condição das sociedades primitivas”. (89)
Esta crítica atinge não somente a tirania e os despotismos, mas todos os regimes políticos e todas as legitimações governamentais, as democracias representativas igualmente, no sentido em que todos estes regimes presupõem a necessidade do Estado e negam a possibilidade para os povos de se organizarem.
Proudhon inverte a significação burguesa para a palavra anarquia. Aquilo que é necessário doravante considerar como anarquista é a desordem capitalista - e utiliza por vezes a palavra neste sentido, quando evoca, por exemplo, a anarquia das forças económicas em regime proprietário - mas a anarquia, no sentido positivo do termo, é, ao contrário, “o mais alto degrau da ordem. Nós afirmamos... que esta anarquia, que exprime, como o vemos actualmente, o mais alto degrau de liberdade e de ordem ao qual a humanidade pode alcançar, é a verdadeira fórmula da República, o fim ao qual nos empurra a Revolução de Fevereiro”.(90)
Contudo, após esta polémica de 1849-1850, o pensamento de Proudhon prossegue.
Este anarquismo é, no pensamento de Proudhon, um anarquismo que só se pode realizar no seio da revolução social e socio-económica. A negação do governo e do Estado não tem sentido a não ser ligada à revolução social e é a partir desta sociedade revolucionada que se pode realizar a anarquia. O anarquismo proudhoniano é indissoluvelmente económico e social.
Daí o prosseguimento da reflexão no Federalismo. Proudhon pode legitimamente afirmar, em 1863, que o Federalismo sintetiza as suas críticas anteriores e responde aos problemas colocados anteriormente. Este Federalismo “agrícola - industrial”, como escreve Proudhon, vai para além do Federalismo político, exalta todas as dimensões éconómicas, sociais, culturais das sociedades em causa.(91)
No entanto, qual a evolução, quais as modificações que se deram do anarquismo ao federalismo e ao mutualismo? Trata-se de uma questão, de uma questão em aberto, provocante. Haverá no pensamento de Proudhon, passagem, evolução, do anarquismo para o federalismo? É uma passagem por continuidade, onde os anarquistas verrão uma certa ruptura, a respeito por exemplo, do papel do Estado federal? Que será do papel do “centro” segundo a terminologia actual? Há certamente uma continuidade entre as teses de 1849 e as de 1863, mas como interpretar, por exemplo, a dialéctica da autoridade e da liberdade? Não faltará quem pense que Proudhon tornou-se sobretudo o defensor deste federalismo em vez do anarquismo. Mas poder-se-à responder que a anarquia positiva se encontra, bem pelo contrário, realizada pelo Federalismo? Aí também, Proudhon e de um modo muito claro, abriu a discussão.
III. A crítica ideológica. O terceiro eixo, o da crítica ideológica, colocará nos seus princípios, menos dificuldades à reinterpretação dos anarquistas, do que na criação dos desenvolvimentos.
A crítica do absoluto, a denúncia de todo o princípio do qual Proudhon demonstre que ele conduz necessariamente ao espoliamento da liberdade, esta crítica do absoluto é directamente resultado duma reflexão anarquista no sentido etimológico do termo. Logo que Proudhon utiliza este conceito de anarquia comenta-o dizendo: “Nós negamos o governo e o Estado, porque afirmamos... a personalidade e a autonomia das massas”(92), retoma rigorosamente a etimologia do termo: “anarchia”, o facto da ausência de chefe, o facto de se viver sem autoridade suprema, o estado dum povo vivendo regularmente sem chefe. E já, em certos autores gregos, encontra-se o duplo sentido que chega até aos nossos dias e que confunde ou distingue anarquia e desordem. Duplo sentido que se apoia no dogma, segundo o qual a ausência de comando conduz à confusão, e que um grupo humano não se pode auto-organizar.
Do mesmo modo, logo que Proudhon se define como anarquista, retoma rigorosamente o adjectivo que corresponde ao sentido etimológico: aquele que vive sem mestre, e também, aquele que não se deixa governar, aquele que recusa obedecer a um mestre.
A anarquia significa igualmente, e é esta significação que poderíamos colocar em epígrafe ao grande livro “Da Justiça na Revolução e na Igreja”, não somente a ausência de chefe, mas, mais abundantemente, a ausência de primeiro princípio, ou ainda o facto de “o que não tem princípio ”. Ora, é bem nesta história que Proudhon se apercebe da exaltação da Justiça vindo suplantar uma imensa história durante a qual as sociedades não cessaram de se referir a uma transcendência ilusória, a uma entidade, qualquer que ela seja, a um princípio do qual elas fizeram uma regra e à qual obedeceram. Pensar a Revolução, é pensar esta radical transposição em que os homens cessam de obedecer, cessam de ser subordinados a um tirano, a um rei ou à comunidade elevada em novo princípio sagrado, e onde eles vão, pela primeira vez, produzir de perdurável maneira as reciprocidades, os contratos, as trocas que são as formas concretas da Justiça.
Daí a amplitude da reflexão: este desabamento anarquista toca todas as dimensões da vida humana, atinge a economia, o social, o político e o ideológico; atinge necessariamente os costumes, as relações interpessoais, a moralidade individual.
E chegamos, nas últimas partes “Da Justiça”, a uma nova provocação. Passamos duma reflexão crítica a um conjunto de afirmações sobre o casamento, sobre a condição feminina que serão inaceitáveis para muitos dos seus contemporâneos. Proudhon está, aliás, consciente que estas proposições são, em 1858, provocadoras. Será interessante notar como os anarquistas reagiram a estas provocações ou, simplesmente, as negligen-ciaram.
IV. O homem e a obra. Acabamos de relembrar os grandes eixos da obra que se podem abrir às discussões e provocá-las. Seguramente, foi por estes escritos que Proudhon se tornou conhecido e definido.
Mas terá sido sempre a obra que suscitou o interesse, a discussão, a aprovação, a admiração?
Logo que Jules Vallès, em revolta contra a sua família, contra a pobreza, chega a Paris durante a Revolução de 1848, lê avidamente os artigos do jornal “Le Peuple”. Logo que olha Proudhon como o seu modelo, será que ele meditou nas obras de 1840, 1842, 1846? Seguramente bem pouco. E logo que Bakunine faz uma imagem do anarquismo de Proudhon, é sobretudo através das suas livres discussões com o próprio Proudhon, durante o Inverno de 1844-45, e não tanto através da estudiosa leitura das obras económicas de Proudhon.
Com efeito, para muitos que tomaram posição a seu respeito, Proudhon é também uma certa personalidade, uma existência particular e significativa, um estado de espírito, um estilo de ser, uma sensibilidade política e original. Alguns pensarão que o anarquismo de Proudhon, é antes de tudo, o anarquista Proudhon, aquele que, segundo a sua definição, não se deixa governar, aquele que recusa obedecer a um senhor, seja ele qual for, e recusa igualmente ser um senhor para os outros.
Pela sua vida, pela sua personalidade, Proudhon forjou uma imagem, em parte voluntária, em parte pelo facto das circuns-
tâncias, a imagem do insubmisso. Revoltado contra todas as dimensões fundamentais da sociedade do seu tempo, contra a desigualdade económica, contra a submissão política, contra todas as submissões ideológicas.
Um revoltado que não se reconcilia. Proudhon não é como os saint-simonianos revoltados durante vinte anos mas emburguesados sob o Segundo Império.Também não é como os revoltados provisórios que encontram de seguida uma solução apaziguadora nas seitas ou em comunidades, ou mesmo num partido tranquilizador.
Há uma forte coerência entre a sua apologia da negação e a sua errância militante. Na sua carta a Marx, escrevia que estava resolvido a preservar, sem descanso, a reflexão crítica e a discussão. E, durante toda a sua vida, nunca consentiu parar, como teve oportunidade de o fazer repetidas vezes. Não parou de criticar e de duvidar.
Mas, apesar da sua agressividade, da sua virulência, contra os proprietários, contra os chefes de Estado, contra os bispos, Proudhon permanece, com efeito, um violento sem ressenti-
mentos, sem ódio irremediável. As suas vituperações conservam ainda hoje qualquer coisa de insolente regojizante na ferocidade aparente. Há nele, através da virulência verbal, uma genero-
sidade feita, talvez, de elevação mas também de benevolência, vocação a apaixonar-se pelo próximo, a sentir-se tocado pelos outros. Neste sentido, Proudhon é “humanista”, no sentido de apaixonado pelo humano.
Diremos ainda que este pensamento incarnado, sendo essencialmente crítico, negativo, fortificante, não é nunca desesperado ou desesperante. Se o sistema social é completa-
mente revoltante, se é atravessado de contradições que esmagam os indivíduos e quebram os fracos, resta saber que ele pode ser dominado. Pode ser dominado pela reflexão, que é uma forma de emancipação assim como nos revoltarmos lucidamente e compreendermos ao que nos opomos. Mas poderá ser dominado por uma revolução social que destruirá a triologia das alienações.
Proudhon afirma que o caos social pode ser superado; mas - e aqui está mais um traço da sua sensibilidade anarquista - é a cada um a responsabilidade de fazer acontecer esta revolução que não se saberá esperar passivamente. E também não se pode acreditar que esta revolução será seguida dum retorno à passividade. Não há prazo no combate pela Justiça e na sua realização efectiva. Para Proudhon, o anarquista é aquele que se não deixa governar, mas também aquele que terá sempre que traçar o combate pela sua própria liberdade e pela dos outros.
A primeira grande pergunta a fazer será pelo porquê da obra de Proudhon ter dado lugar a tantas polémicas, releituras e reinterpretações. Há certamente respostas a esta pergunta, mas é necessário sublinhar a enorme quantidade de escritos e tomadas de posição propícias a estes debates e a este considerável trabalho de reflexão crítica.
Há, poderemos dizer, textos fechados no seu dogmatismo que se prestam à repetição e preparam a submissão, e outros que abrem a discussão e estimulam o pensar crítico. A obra de Proudhon pertence a estes últimos.
É nossa intenção procurar aqui o porquê e as dimensões pelas quais esta obra foi e continua a ser essencialmente uma obra aberta, e igualmente, provocante no sentido de propiciadora de reflexões, de críticas e de acções.
Relembremos, antes de tudo, que Proudhon não se proclama anarquista em 1840 quando ele escreve a sua Primeira Memória; não se apresenta como o mensageiro duma doutrina já constituída que seria o anarquismo. Em 1840, não há, com efeito, doutrina anarquista definida, não há escola anarquista, mesmo se temas anarquistas foram anteriormente delineados. Proudhon empenha-se num trabalho de elaboração que vai durar de 1840 a 1865: face às transformações económicas, sociais, políticas, irá construir a sua reflexão, hesitar por vezes, corrigir-se, evoluir mas nunca desenvolver uma fórmula simples ou uma utopia à maneira de Fourier, por exemplo.
Nesta obra em evolução, obra comprometida mas também empenhada num trabalho permanente, quais serão os eixos essenciais que os anarquistas irão descortinar? É o que iremos fazer,de seguida, de um modo breve; podemos reter três: a crítica económica, a crítica política e, por fim, a crítica ideológica.
I. A crítica económica. A denúncia da propriedade privada, base de exploração dos trabalhadores, é preliminar, fundadora de toda a reflexão de Proudhon. A partir deste ponto assente, a reflexão, a discussão podem alargar-se. A crítica da propriedade privada dos meios de produção não conduz necessariamente a uma resposta anarquista. Este ponto de partida é também o de Étienne Cabet, de Constantin Pecqueur, de Karl Marx, e conduz a um conjunto de respostas bem variadas.
Para mais, Proudhon, como se sabe, não se limita à denúncia crítica (“Destruí e construíreis” proclama ele).O anarquismo proudhoniano não é somente negação, mesmo quando Proudhon faz a apologia da negação. Trata-se de realizar, como ele diz “a anarquia positiva” (85), quer dizer, a nova organização das forças sociais e económicas. O anarquismo proudhoniano encontra-se a léguas do niilismo.
Sobre este ponto essencial da organização anarquista das forças económicas, Proudhon não pára de se interrogar, trabalha de 1840 a 1865, precisa o seu pensamento e, em certa medida, evolui. Há, na interpretação que faço da filosofia proudhoniana, uma profunda continuidade de inspiração entre as páginas de 1850 na “Ideia Geral de Revolução” sobre o equilíbrio das forças económicas e as de 1865 sobre o mutualismo generalizado, e mesmo desde as breves indicações de 1840 sobre o equilíbrio das forças antagónicas. Trata-se sempre de libertar o trabalho e os laços de produção, de criar um sistema eminentememte pluralista onde a dinâmica e o equilíbrio serão tocados pela igualdade dos produtores, os contratos, pelo estabelecimento da justiça nas trocas.(86)
Contudo, Proudhon prosseguiu a reflexão, a evolução em particular, sobre o papel exacto da propriedade no dinamismo económico, desde a “Primeira Memória” de 1840 até ao texto póstumo publicado em 1865: “Teoria da Propriedade”.
Esta evolução, esta obra que vai sendo feita, em movimento sobre estes pontos essenciais, leva-nos, podemos dizê-lo, a pensar. Esta evolução na continuidade é, de qualquer modo, provocante. Podemos prever que certos leitores reterão sobretudo a evolução enquanto que outros reterão fundamen-talmente a continuidade: debates múltiplos se têm desenvolvido, com efeito, sobre esta questão.
Esta “provocação a fazer pensar” foi reivindicada firmemente por Proudhon. Como escreveu claramente a Marx na sua carta de Maio de 1846: “estigmatizemos todas as exclusões... não olhemos nunca uma questão como esgotada, e, quando tivermos usado até ao nosso último argumento, recomecemos, se for preciso.” (87) Proudhon apela ao prosseguimento da reflexão crítica e faz profissão em contestar-se.
II. A critica política. O segundo eixo da crítica, a denúncia do poder e do Estado, traz-nos certamente elementos teóricos incontestavelmente anarquistas.
Conhece-se as circunstâncias: estamos em 1849-1850, Proudhon verifica o refluxo e a confusão do movimento revolucionário; apercebe-se das ameaças duma evolução em direcção a um socialismo de Estado. É o momento em que distingue simultaneamente o poder da ilusão política e os riscos duma regressão autoritária sob a capa duma pretensa democracia ou dum aparente socialismo.
É o momento em que Proudhon analisa a natureza do Estado através de fórmulas lapidares: “constituição exterior do poder social” diz ele, constituição tornada transcendente que se volta contra a sociedade, contra a liberdade dos cidadãos:
“Por esta constituição exterior do seu poder e soberania, o povo não se governa a ele próprio: é umas vezes um indivíduo, outras vezes vários que, a título electivo ou hereditário, são encarregados do governar.” (88)
Este poder exterior à sociedade verdadeira, poder de opressão e de repressão, antinómico às liberdades individuais e colectivas, princípio das hierarquias e das desigualdades, está em perfeita contradição com “a autonomia das massas”.
Proudhon enuncia então com clareza a sua concepção de anarquia. E, na sua polémica contra Louis Blanc et Pierre Leroux, as fórmulas abundam. Após a revolução social dirá:
“A sociedade subsiste por ela própria e não tem necessidade de governo. Nós somos, por consequência, e proclamamo-lo mais duma vez, anarquistas. A anarquia é a condição de existência das sociedades adultas, como a hierarquia é a condição das sociedades primitivas”. (89)
Esta crítica atinge não somente a tirania e os despotismos, mas todos os regimes políticos e todas as legitimações governamentais, as democracias representativas igualmente, no sentido em que todos estes regimes presupõem a necessidade do Estado e negam a possibilidade para os povos de se organizarem.
Proudhon inverte a significação burguesa para a palavra anarquia. Aquilo que é necessário doravante considerar como anarquista é a desordem capitalista - e utiliza por vezes a palavra neste sentido, quando evoca, por exemplo, a anarquia das forças económicas em regime proprietário - mas a anarquia, no sentido positivo do termo, é, ao contrário, “o mais alto degrau da ordem. Nós afirmamos... que esta anarquia, que exprime, como o vemos actualmente, o mais alto degrau de liberdade e de ordem ao qual a humanidade pode alcançar, é a verdadeira fórmula da República, o fim ao qual nos empurra a Revolução de Fevereiro”.(90)
Contudo, após esta polémica de 1849-1850, o pensamento de Proudhon prossegue.
Este anarquismo é, no pensamento de Proudhon, um anarquismo que só se pode realizar no seio da revolução social e socio-económica. A negação do governo e do Estado não tem sentido a não ser ligada à revolução social e é a partir desta sociedade revolucionada que se pode realizar a anarquia. O anarquismo proudhoniano é indissoluvelmente económico e social.
Daí o prosseguimento da reflexão no Federalismo. Proudhon pode legitimamente afirmar, em 1863, que o Federalismo sintetiza as suas críticas anteriores e responde aos problemas colocados anteriormente. Este Federalismo “agrícola - industrial”, como escreve Proudhon, vai para além do Federalismo político, exalta todas as dimensões éconómicas, sociais, culturais das sociedades em causa.(91)
No entanto, qual a evolução, quais as modificações que se deram do anarquismo ao federalismo e ao mutualismo? Trata-se de uma questão, de uma questão em aberto, provocante. Haverá no pensamento de Proudhon, passagem, evolução, do anarquismo para o federalismo? É uma passagem por continuidade, onde os anarquistas verrão uma certa ruptura, a respeito por exemplo, do papel do Estado federal? Que será do papel do “centro” segundo a terminologia actual? Há certamente uma continuidade entre as teses de 1849 e as de 1863, mas como interpretar, por exemplo, a dialéctica da autoridade e da liberdade? Não faltará quem pense que Proudhon tornou-se sobretudo o defensor deste federalismo em vez do anarquismo. Mas poder-se-à responder que a anarquia positiva se encontra, bem pelo contrário, realizada pelo Federalismo? Aí também, Proudhon e de um modo muito claro, abriu a discussão.
III. A crítica ideológica. O terceiro eixo, o da crítica ideológica, colocará nos seus princípios, menos dificuldades à reinterpretação dos anarquistas, do que na criação dos desenvolvimentos.
A crítica do absoluto, a denúncia de todo o princípio do qual Proudhon demonstre que ele conduz necessariamente ao espoliamento da liberdade, esta crítica do absoluto é directamente resultado duma reflexão anarquista no sentido etimológico do termo. Logo que Proudhon utiliza este conceito de anarquia comenta-o dizendo: “Nós negamos o governo e o Estado, porque afirmamos... a personalidade e a autonomia das massas”(92), retoma rigorosamente a etimologia do termo: “anarchia”, o facto da ausência de chefe, o facto de se viver sem autoridade suprema, o estado dum povo vivendo regularmente sem chefe. E já, em certos autores gregos, encontra-se o duplo sentido que chega até aos nossos dias e que confunde ou distingue anarquia e desordem. Duplo sentido que se apoia no dogma, segundo o qual a ausência de comando conduz à confusão, e que um grupo humano não se pode auto-organizar.
Do mesmo modo, logo que Proudhon se define como anarquista, retoma rigorosamente o adjectivo que corresponde ao sentido etimológico: aquele que vive sem mestre, e também, aquele que não se deixa governar, aquele que recusa obedecer a um mestre.
A anarquia significa igualmente, e é esta significação que poderíamos colocar em epígrafe ao grande livro “Da Justiça na Revolução e na Igreja”, não somente a ausência de chefe, mas, mais abundantemente, a ausência de primeiro princípio, ou ainda o facto de “o que não tem princípio ”. Ora, é bem nesta história que Proudhon se apercebe da exaltação da Justiça vindo suplantar uma imensa história durante a qual as sociedades não cessaram de se referir a uma transcendência ilusória, a uma entidade, qualquer que ela seja, a um princípio do qual elas fizeram uma regra e à qual obedeceram. Pensar a Revolução, é pensar esta radical transposição em que os homens cessam de obedecer, cessam de ser subordinados a um tirano, a um rei ou à comunidade elevada em novo princípio sagrado, e onde eles vão, pela primeira vez, produzir de perdurável maneira as reciprocidades, os contratos, as trocas que são as formas concretas da Justiça.
Daí a amplitude da reflexão: este desabamento anarquista toca todas as dimensões da vida humana, atinge a economia, o social, o político e o ideológico; atinge necessariamente os costumes, as relações interpessoais, a moralidade individual.
E chegamos, nas últimas partes “Da Justiça”, a uma nova provocação. Passamos duma reflexão crítica a um conjunto de afirmações sobre o casamento, sobre a condição feminina que serão inaceitáveis para muitos dos seus contemporâneos. Proudhon está, aliás, consciente que estas proposições são, em 1858, provocadoras. Será interessante notar como os anarquistas reagiram a estas provocações ou, simplesmente, as negligen-ciaram.
IV. O homem e a obra. Acabamos de relembrar os grandes eixos da obra que se podem abrir às discussões e provocá-las. Seguramente, foi por estes escritos que Proudhon se tornou conhecido e definido.
Mas terá sido sempre a obra que suscitou o interesse, a discussão, a aprovação, a admiração?
Logo que Jules Vallès, em revolta contra a sua família, contra a pobreza, chega a Paris durante a Revolução de 1848, lê avidamente os artigos do jornal “Le Peuple”. Logo que olha Proudhon como o seu modelo, será que ele meditou nas obras de 1840, 1842, 1846? Seguramente bem pouco. E logo que Bakunine faz uma imagem do anarquismo de Proudhon, é sobretudo através das suas livres discussões com o próprio Proudhon, durante o Inverno de 1844-45, e não tanto através da estudiosa leitura das obras económicas de Proudhon.
Com efeito, para muitos que tomaram posição a seu respeito, Proudhon é também uma certa personalidade, uma existência particular e significativa, um estado de espírito, um estilo de ser, uma sensibilidade política e original. Alguns pensarão que o anarquismo de Proudhon, é antes de tudo, o anarquista Proudhon, aquele que, segundo a sua definição, não se deixa governar, aquele que recusa obedecer a um senhor, seja ele qual for, e recusa igualmente ser um senhor para os outros.
Pela sua vida, pela sua personalidade, Proudhon forjou uma imagem, em parte voluntária, em parte pelo facto das circuns-
tâncias, a imagem do insubmisso. Revoltado contra todas as dimensões fundamentais da sociedade do seu tempo, contra a desigualdade económica, contra a submissão política, contra todas as submissões ideológicas.
Um revoltado que não se reconcilia. Proudhon não é como os saint-simonianos revoltados durante vinte anos mas emburguesados sob o Segundo Império.Também não é como os revoltados provisórios que encontram de seguida uma solução apaziguadora nas seitas ou em comunidades, ou mesmo num partido tranquilizador.
Há uma forte coerência entre a sua apologia da negação e a sua errância militante. Na sua carta a Marx, escrevia que estava resolvido a preservar, sem descanso, a reflexão crítica e a discussão. E, durante toda a sua vida, nunca consentiu parar, como teve oportunidade de o fazer repetidas vezes. Não parou de criticar e de duvidar.
Mas, apesar da sua agressividade, da sua virulência, contra os proprietários, contra os chefes de Estado, contra os bispos, Proudhon permanece, com efeito, um violento sem ressenti-
mentos, sem ódio irremediável. As suas vituperações conservam ainda hoje qualquer coisa de insolente regojizante na ferocidade aparente. Há nele, através da virulência verbal, uma genero-
sidade feita, talvez, de elevação mas também de benevolência, vocação a apaixonar-se pelo próximo, a sentir-se tocado pelos outros. Neste sentido, Proudhon é “humanista”, no sentido de apaixonado pelo humano.
Diremos ainda que este pensamento incarnado, sendo essencialmente crítico, negativo, fortificante, não é nunca desesperado ou desesperante. Se o sistema social é completa-
mente revoltante, se é atravessado de contradições que esmagam os indivíduos e quebram os fracos, resta saber que ele pode ser dominado. Pode ser dominado pela reflexão, que é uma forma de emancipação assim como nos revoltarmos lucidamente e compreendermos ao que nos opomos. Mas poderá ser dominado por uma revolução social que destruirá a triologia das alienações.
Proudhon afirma que o caos social pode ser superado; mas - e aqui está mais um traço da sua sensibilidade anarquista - é a cada um a responsabilidade de fazer acontecer esta revolução que não se saberá esperar passivamente. E também não se pode acreditar que esta revolução será seguida dum retorno à passividade. Não há prazo no combate pela Justiça e na sua realização efectiva. Para Proudhon, o anarquista é aquele que se não deixa governar, mas também aquele que terá sempre que traçar o combate pela sua própria liberdade e pela dos outros.
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