sexta-feira, novembro 05, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

A Sociedade ou a Concepção da História

Em duas palavras: “abolir progressivamente e até à extinção o lucro eis a transição - a organização resultará do princípio da divisão do trabalho e da força colectiva, combinadas com a manutenção da personalidade no homem e no cidadão”. (98) Se a transição era, como a queria Proudhon neste texto, o crédito gratuito, isso significaria que qualquer um ou qualquer coisa, agindo independentemente da sociedade poderia transformá-la radicalmente. Mas Proudhon escreve também a Gauthier: “a sociedade só se corrige por ela própria”. (99). Assim encontramos ao lado de Proudhon que se contradiz (mas não há investigação sem contradição nem experimentação sem erros), um outro Proudhon que põe a transição em relação com o processo histórico e ousa empurrar a ideia de história até ao limite do seu poder e coerente desígnio.
Seguindo Proudhon nesta via, o leitor descobre o ponto de partida deste projecto: não podemos pensar a passagem da sociedade com “droit d`aubaine” a uma sociedade sem “droit d`aubaine” como o resultado duma actividade particular ou dum grupo particular, mas somente como a obra de todos no tempo, na história. A obra de todos, e somente ela, mudando o comportamento de todos os homens, pode mudar o comporta-
mento de cada um. Só a mudança da sociedade no seu conjunto pode verdadeiramente mudar a economia, o direito, a política e a moral. A sociedade sem “droit d`aubaine” exige uma economia nova, um direito novo, uma política nova, uma moral nova. Mas tudo isto não é concebível sem uma mudança histórica da sociedade no seu conjunto.
Proudhon tinha um sentido transparente do carácter histórico da realidade social. Restituía o curso da história à liberdade. E a liberdade ao povo. Não tinha nenhuma confiança na possibilidade de mudar verdadeiramente a sociedade pelo poder, pelas revoluções do alto, por golpes de Estado. Todavia, Proudhon não confundia a esfera da liberdade com a da indeterminação. A liberdade é a liberdade de se ser, e não de ser outro qualquer. O que implica desenvolvimento, história, mas história e desenvolvimento de qualquer coisa, e não de uma coisa qualquer. Ou se precisa bem este “qualquer coisa”, ou então a ideia de história como liberdade traduz-se fatalmente pela ideia do relativismo histórico. Mais: este “qualquer coisa” da história não é pensada, resta por definição indeterminada; a esfera da liberdade confunde-se com a da indeterminação e no deserto dos critérios e dos valores, este “qualquer coisa” da história transforma-se não importa o quê: é o relativismo histórico. Ora, Proudhon dirá: “Toda a revolução tem o seu ponto de partida numa revolução anterior.
Quem diz revolução, diz necessariamente progresso, diz por isso mesmo conservação. donde se segue que a revolução está em permanência na história, e que propriamente não houve várias revoluções, só houve uma e a mesma revolução” (100).
Ninguém pode negar que toda a revolução tem o seu ponto de partida numa revolução precedente. Admite-se também, geralmente, que o sentido da revolução não se reduz à ideia simples de limpeza total, de tudo destruir e de tudo recriar ex novo, do mesmo modo que a ideia do que fica, do que dura, resta implícita no próprio facto revolucionário. Este uso é como um reflexo do estado da cultura. A este respeito, a reviravolta decisiva foi o nascimento da economia política, a qual foi seguida pela distinção de origem hegeliana entre sociedade civil e sociedade política. Anteriormente, a confusão do social e do político confinava o social na obscuridade, do mesmo modo que uma mudança política radical era considerada como equivalente a uma mudança global, sem resíduo. Pelo contrário, a distinção do social e do político introduziu a sociedade no campo visual e, com a sociedade a totalidade dos factos históricos. Foi igualmente posto em destaque, ao lado do que muda, o que permanece. Mas a linguagem comum não se adaptou ainda a este novo estado da cultura, explicitando a ideia do que permanece. Portanto a revolução é choque de duas forças inimigas e a instauração dum novo equilíbrio destas forças. Não é nunca destruição total duma delas. O que muda mede-se em relação do que muda e inversamente. Segue-se que é necessário, para o acto do discurso, dispor de três termos: um para o resultado (o facto revolucionário), um para o que muda, um para o que permanece.
Ora, no uso que fazemos das coisas, só dispomos de dois termos: “revolução” para designar o resultado, o que muda e uma das forças; e “conservação”, para designar as forças que se opõem à mudança, as instituições que são derrubadas, mas não o que subsiste da ordem antiga. O que se conserva desaparece e a revolução torna-se na vitória do progresso e a destruição da conservação. Pois os homens verificam que a história continua o seu caminho e que a conservação reaparece. Daí a decepção do revolucionário, que não encontra no resultado os ideais que pareciam adquiridos na luta e na exaltação do sucesso.
Pelo contrário, Proudhon diz revolução”, pelo resultado, “progresso”, para aquilo que muda, e “conservação”, para aquilo que permanece. Repare-se que ele se serve dos mesmos termos que se utiliza em plena acção, unificando assim a linguagem da teoria e aquela da prática. É a esta condição que se evita a cisão da história da qual cada uma das partes não é mais história, e começa-se a recompô-la entregando à história um sujeito: a sociedade.
E esta análise proudhoniana da palavra “revolução” conduz ao esclarecimento da relação entre “revolução” e “história”. Reconhecendo o que permanece como medida do que muda
(e inversamente), Proudhon restitui à revolução a sua refe-
rência à revolução precedente. A conservação como o pro-
gresso são imputáveis à revolução. Dito de outro modo, a revolução e a história pensam-se com a ajuda dos mesmos conceitos. A ideia de revolução e a de história enriquecem-se mutuamente.
Podemos pensar que a história não tem sentido, que ela é um campo infinito de possibilidades. Portanto, ao agir, os homens dão um sentido à história. Este sentido identifica-se com as conquistas do pensamento e da acção. E quando os homens reconhecem nas conquistas os factos engenhosos da história, consideram estes factos como revolucio-
nários. Não é, a não ser, elevando a ideia de história até à de revolução que podemos reunificar a conceptualização da história e a motivação da acção dos homens na história. É precisamente o que faz Proudhon.
Naturalmente, nesta perspectiva, os factos históricos são tomados em consideração pelas suas constantes e não pelas variações que as diferenciam. Em substância, compõem-se num facto único, o facto da história. É este “facto” que Proudhon opõe ao relativismo histórico. Esta diligência teórica é perfeitamente legítima: ela não é de todo numa relação de exclusão recíproca, mas sobretudo numa relação de complemen-
taridade, com uma outra diligência teórica, a que é necessária para estabelecer não a natureza dum facto, mas as relações entre vários factos. E a relação entre Marx e Proudhon ilustra perfeitamente esta complementaridade: Marx estuda a história e elabora a concepção do materialismo histórico, como uma lei do desenvolvimento da história, daí pensar, virtualmente, pelo método das ciências experimentais; Proudhon estuda a história, e elabora uma teoria da natureza da história (que é o livre desenvolvimento de qualquer coisa que permanece ela-própria), quer dizer pensa, virtualmente, pelo método das ciências normativas.
Mas a concepção de história não é, na obra de Proudhon, um fim em si. Ela responde a uma questão precisa: como pensar a sociedade sem o direito ao lucro?
A sociedade faz-se por ela própria e este “fazer” revolucio-
nário, é o “fazer” primário da história. Este fazer não é a evolução (secundária) das instituições - quer se trate dos regimes políticos ou formas jurídicas da propriedade -, mas a evolução do que as liberta ou as utiliza, a saber: o comportamento do homem agarra nos momentos de libertação da consciência, de libertação da razão, de emancipação política ou social. Em última instância, este fazer é o do homem que se faz e que, ao fazer-se, “faz” as instituições correspondentes às características adquiridas do seu comportamento. É neste quadro que é necessário ler o modelo social de Proudhon.

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