domingo, dezembro 05, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

ANTÓNIO SÉRGIO, PENSADOR LIBERTÁRIO?

Eles esquecem... que não estão de modo algum a combater o mundo existente quando combatem apenas as frases deste mundo.
Marx

Foi através de análises concretas das realidades sociais portuguesas que se afirmou a concepção sociológica de Sérgio. Sociológica, e não simplesmente histórica, à maneira tradicional. A verdade é que António Sérgio foi o introdutor na cultura portuguesa da história sociológica. Inclusivamente os seus trabalhos reputados de "históricos" e nos quais se dão aos fenómenos económicos e da luta de classes particular realce são fundamentalmente análises sociológicas, pois se situam àquele nível do conhecimento social que busca investigar os fenómenos sociais totais.
António Sérgio só acidentalmente explanou os princípios que norteiam a sua prática sociológica o que provocou dúvidas em certos pontos da sua doutrina e certa incompreensão de base nas interpretações que por via de regra têm sido proposta para o seu pensamento, atribuindo-lhe uma significação que se lhe não coaduna.
Para Sérgio como para Marx o económico é não só o factor capital, mas determinante da história em todas as suas esferas, sem exclusão do mundo das ideias. O facto é que, neste ponto como em tantos outros, foi a doutrina de Sérgio muito mal percebida por uma parte considerável dos seus leitores. Dá-se o caso que os que se inclinaram a considerar da mesma espécie as concepções da história de Sérgio e de Marx desentenderam radicalmente uma e outra. Em parte, porém, não é porventura de excluir que de princípio certas afirmações de Sérgio o tenham por vezes levado demasiado longe neste rumo, para melhor salientar o que lhe era particular no modo de conceber a história portuguesa.
Mais tarde, Sérgio foi naturalmente impelido a marcar mais incisivamente o que o distanciava da doutrinação em voga, e bem assim a repulsar intenções que desacertadamente lhe haviam atribuído.
Com efeito, reiteradas vezes Sérgio se opôs resolutamente ao que, na época em que ideou os seus primeiros escritos de matéria histórico-sociológica, se entendia em geral por determinismo económico e isto apesar de todos os seus ensaios histórico-sociológicos estarem organizados em função dos problemas chave da economia do país, sob o duplo aspecto do condicionalismo económico-social e da consciente finalidade económica das descobertas marítimas e das conquistas portuguesas.
É fora de dúvida, e sob mais de um aspecto, que as investigações de Sérgio neste domínio são por completo estranhas às categorias do materialismo histórico. Ele próprio o disse sem rodeios: "Em mim, as interpretações económicas dos aconteceres históricos não têm coisa alguma de materialistas; para mim, os sucessos resultam das ideias dos homens (embora ideias sobre vantagens económicas). De resto, o de que se convenceu "foi disto e só disto: que as acções da política (da política, note-se: não me refiro às ciências, ou à filosofia, ou às artes) têm sido dominadas, na maioria dos casos, pela ideia de se conseguirem umas determinadas vantagens, a que cabe a designação de materiais-económicas, entendido este termo numa acepção bem larga."
A filosofia implícita nos seus escritos da história sociológica é sempre de facto uma filosofia idealista. Em Sérgio, o reconhecimento dos motivos económicos da acção guerreira, e em geral da acção política, solidário da convicção que se não se deve considerar a estrutura económica como anterior à política, mas sim como contemporânea e inseparável dela. Sérgio recusa as categorias de base económica e de superestrutura: o seu modo de ver não considera a actividade social-económica como infraestrutura, de que a actividade social política fosse a superestrutura; vê-as a ambas como dois aspectos "coincidentes", "contemporâneos" (inseparáveis e correlativos): Alega que se a estrutura jurídico é uma regulamentação da vida económica, a economia, por consequência, não pode proceder a estrutura política, não lhe pode servir de pedestal.
É porém minha convicção que se esta tem sido sempre a teoria histórica de Sérgio, a sua análise concreta dos problemas históricos não poucas vezes inculca a noção contrária, e que é a seguinte: que a actividade económica é anterior, e serve de base, à organização política de uma sociedade. Ao que supomos foi por terem atentado mais na obra histórica de Sérgio do que na sua teoria da história que os leitores, em regra geral , foram levados a admitir - erróneamente - que Sérgio aceitava os princípios do materialismo histórico.
Alguns até, viam nisso uma contradição entre um materialismo histórico implícito e uma explícita orientação filosófica geral idealista. Por tudo o que se disse, Sérgio afirma sem equívoco a sua oposição de princípio à filosofia do marxismo-leninismo.
Não queremos entrar em pormenores nem queremos agora e aqui, discutir se as hipóteses alvitradas por Sérgio para a Inteligência do surto da nacionalidade e dos seus motivos, co condicionamento das navegações, da conquista de Ceuta ou da crise social de 1383-1385 e da relação de forças de classe, por exemplo, são, ou não de aceitar, como não vem tão pouco ao caso aqui até que ponto as suas análises histórico-sociológicas contradizem efectivamente os princípios teóricos da concepção materialista da história e as suas consequências práticas.
Indique-se simplesmente que nesses ensaios, como noutros, - Sérgio insistiu neste ponto - o que sobrevela ( em oposição a certa história então em voga, ocamente retórica ou de pura erudição arquivística) são a desconfiança em relação às formulações simplistas, o apego à norma da dúvida metódica, do espírito crítico ensaístico, da objectividade indagadora em exame das coisas, a atitude interrogativa, numa palavra, a atitude filosófica da problemática. É a introdução da temática social-económica, das relações de classe e dos conflitos de classe, a perspectiva sociológica, digamos assim, em que coloca os sucessos.
O que sobreleva são as virtualidades pedagógicas, é o método racionalista. Ele mesmo o disse: "o que vale sobretudo (nos meus escritos históricos) é o operar da análise, o espírito ensaístico (...); depois, é o feixe de luz de positividade sociológica a que a operação do analista fez observar os factos; e a conclusão particular é o que importa menos."
A este propósito é necessário ter presente as relações que António Sérgio manteve ao longo de vários anos, com o orgão da C.G.T. desde o seu aparecimento até à sua ilegalidade pelo Estado Novo. É verdade que António Sérgio que chegou a ser Ministro da Educação em 1924 (Ministro da Instrução Pública como se designava então) foi fortemente criticado pela Batalha no artigo do seu suplemento semanal intitulado "Palavras, Palavras e ... Palavras. A Obra do Sr. António Sérgio, Ministro da Instrução. Com esta Nova Experiência Política, o Grupo Seara Nova é mais uma Ilusão que se Desfez". O Título é amplamente significativo do seu conteúdo.
Aqui fica uma passagem ilustrativa: "...Afinal, o que é que podemos concluir do trabalho do Sr.António Sérgio, ministro?
Palavras, palavras e... palavras. Prometimentos banais, lugares-comuns, e muito personalismo. Ia fazer, ia reformar, ia ...etc. Ora isto todos têm dito; todos os trinta e um ministros da Informação Pública que temos tido deram-nos o mesmo molho de pasteleiro..."
No entanto, António Sérgio tinha sido o primeiro intelectual convidado por A Batalha logo no seu primeiro número para uma entrevista acerca de um dos grandes problemas nacionais que mais preocupava o pedagogo - o da Educação. Esta circunstância podia-se explicar pela simpatia dos militantes sindicais em relação ao ensaísta que, tal como eles, criticou os partidos burgueses, fossem eles republicanos ou monárquicos. Essa simpatia continuou a seguir à publicação da entrevista em que António Sérgio afirma que : "O parasitismo da Escola é o reflexo parasitário da nossa sociedade" em consequência da reacção negativa de alguns professores.
Essa simpatia transforma-se mais tarde em antipatia quando A Batalha critica abertamente a acção da Seara Nova, à qual Sérgio pertencia, devido ao facto dos princípios de independência política terem sido quebrados quando a sua intervenção apenas teórica se transformou em responsabilidades práticas governativas por parte de alguns dos seus membros. É nesse sentido que A Batalha se refere quando afirma: "Nunca atacámos, no Dr. António Sérgio, o pedagogo. Referimo-nos em discordância, mas ao ministro."
O problema que se coloca aqui é o do não complemento entre a atitude prática e o envolvimento teórico. E será que esta questão se coloca unicamente a António Sérgio ou não será antes problema fundamental que com acuidade se põe a todos nós?

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