sábado, janeiro 01, 2011

O NEGRO E O VERMELHO

Da Razão Política ao Pacto Social em Rousseau e o federalismo de Proudhon

"Seja qual for a opinião de Hegel, o pensador da modernidade clássica não é Descartes, mas Jean-Jacques Rousseau.

François Chatêlet (35)


A investigação que há já alguns anos empreendemos sobre Proudhon e a problemática de Federalismo levou-nos a considerar que era importante ir mais longe, historicamente falando. Sabe-se da relação directa que encontramos em Rousseau versus Revolução Francesa versus ideologias políticas do século XIX. Neste sentido para obtermos, pelo menos para nosso uso pessoal, uma melhor compreensão do Federalismo político e económico em Proudhon entendido como sustento da democracia directa(36) consideramos imperioso a ida ao percurso da razão política(37) em Rousseau na tentativa de destrinçarmos os mecanismos do poder político para o filósofo do Contrato Social (38) que tanto influenciou a Revolução Francesa.
Da mesma maneira que, para o autor Do Princípio Federativo a democracia directa é algo aceite por todos, porque todos beneficia,(39) o pacto social que Rousseau nos apresenta no seu contrato é uma lei de aceitação universal: "Só há uma lei que, pela sua natureza, exige uma aceitação unânime; é o pacto social: porque a associação covil é entre todos os actos o mais voluntário; se todo o homem nasce livre e senhor de si mesmo, ninguém poderá, seja sob que pretexto for, escravizá-lo sem o seu consentimento. Decidir que o filho do escravo deve nascer escravo, é decidir que ele não nasça homem."(40)
A aceitação do contrato tem como consequência o facto de que a opinião da maioria obrigar todos os outros. Claro que esta questão levanta o problema de como pode um homem ser livre e simultaneamente ter de conformar-se com vontades que não são as suas? Rousseau responde de imediato e da seguinte maneira: "O cidadão aprova todas as leis, aquelas que não obtiveram o seu acordo e até as que o punem se não as respeitar. A vontade constante de todos os membros do Estado é a vontade geral; é devido a ela que são cidadão e livre." Mas Rousseau não se fica por aqui, e pretende esclarecer melhor este conceito de vontade geral. Ouçamo-lo: "Quando se propõe uma lei, o que se pede de cada um não é que a aprove ou a rejeite, mas se está ou não conforme com a vontade geral, que é também a sua: cada cidadão ao entregar o seu voto, dá assim a sua opinião e, pela contagem dos votos, se exprime a vontade geral. Quando vence a opinião contrária à minha, isso só prova que eu estava enganado e que o que eu considerava como sendo a vontade geral, não o era afinal. Se a minha opinião particular a tivesse vencido, teria procedido de maneira diferente daquela que tinha querido e então deixaria de ser livre."
Pelo texto pode verificar-se que o modo de produção da racionalidade política que é exposto no Contrato Social é através destes dois operadores conceituais: o conceito de contrato ou pacto social e conceito de vontade geral. É exactamente por causa do anterior que alguém disse (41) que Rousseau é responsável por uma verdadeira revolução copernicana no pensamento político ocidental e isto porque o corpo político deixa de se apoiar em instâncias externas de legitimação para passar a gravitar em torno da vontade geral dos homens que o constituem. Os actos políticos devem manifestar a liberdade de todos e cada um dos homens a que respeitam, o que corresponde a relegar os critérios do interesse comum à vontade dos próprios interessados. Neste sentido o grande problema de Rousseau consistes em definir os princípios de direito segundo os quais este direito seja realizável. Está portanto em causa o fundamento axiológico jurídico: em que condições de validade qualquer político pode legitimamente reivindicar-se como o direito de uma sociedade de direito?(42)
Se o conceito de pacto social originário actua como princípio fundante da associação política legítima, o conceito de vontade geral é o pressuposto hipotético da sua reprodução, ou sobrevivência, segundo a mesma lógica de legitimidade.
É claro que a questão continua a ser estritamente de direito, mas é também um daqueles domínios no qual as exigências do pensamento jurídico coincidem em vastas faixas com verificações elementares ao nível do bom senso.
Na verdade, parece evidente que "se a oposição dos interesses particulares tornou necessário o estabelecimento das sociedade, sem a concordância desses mesmos interesses, ela não teria sido possível.(43)
A conceber-se o corpo político como associação de vontades livres, desde que não subsista esse conjunto de interesses comuns passível de tradução em termos de legitimidade política a associação dissolver-se-à num enfrentar de particularidades em completa ruptura e onde poderá ser criada situações ilegítimas no sentido de imposição de particularismos por indivíduos ou colectivos de interesses particulares como lei geral.
Evidentemente que Rousseau não nega que isso tenha acontecido, que aconteça e que vá continuar a acontecer. Basta ver os capítulos da obra que falam sobre os abusos de governo e a morte do corpo político. Simplesmente, a sua noção de vontade geral não se pretende programa de acção política ou fenómeno de observação empírica, mas o pressuposto hipotético de sobrevivência de todo e qualquer corpo político constituído de acordo a normas de legitimidade racional.
Rousseau com clareza soube acentuar a qualidade específica do conceito em causa: "Frequentemente se estabelece uma diferença entre a vontade de todos e a vontade geral: esta só atende ao interesse comum, a outra só escuta o interesse privado, e não é mais do que a soma das vontades particulares: mas retirai destas mesma vontades, os prós e os contras que entre si se anula, e restará a vontade geral, como soma dessas diferenças."(44)
O número de erros e de distorções ao nível da interpretação formado em torno deste tema é enorme, no entanto não nos vamos ocupar dessa questão aqui e agora.(45)
Vejamos então sinteticamente, depois do que foi dito, o que podemos concluir acerca de toda a problemática em causa.
O Contrato Social é, em primeiro lugar, uma pesquisa sobre a legitimidade do poder(46). Mas sendo livro de direito, e não de factos, não o podemos considerar uma recolha de observações sociológicas. As suas indagações dizem respeito aos princípios(47). E, por esse mesmo facto, já aqueles significam uma contestação. Parte do princípio de que a legitimidade tradicional, de suposta origem divina, não é adquirida.
Anuncia portanto uma outra legitimidade e outros princípios. O Contrato Social é também um catecismo do qual possui o tom e a linguagem dogmática. Rousseau leva até aos limites lógicos a teoria co contrato que encontramos em Hobbes. O Contrato Social expande-se largamente, procedendo além disso a uma exposição dogmática quanto à nova religião, cujo deus é a razão confundida com a natureza e o seu representante na terra, em vez do rei, o povo considerado na sua vontade geral.
O ataque contra a ordem tradicional é tão evidente que, a partir do primeiro capítulo, Rousseau empenha-se em demonstrar a anterioridade do pacto dos cidadãos, que estabelece o povo, em relação ao pacto do povo e do rei, que funda a realeza. Até então, Deus fazia os reis que, por sua vez, faziam os povos. A partir do Contrato Social, os povos fazem-se a si próprios antes de fazerem os reis. Quanto a Deus, já nem dele se fala, provisoriamente. Na ordem política, encontramos aqui o equivalente da revolução de Newton. O poder deixa portanto de ter a sua origem no arbitrário, passando a depender do consentimento geral. Por outras palavras; já não é o que é mas o que devia ser. Por felicidade, segundo Rousseau, o que é não se pode separar daquilo que deve ser. O povo é soberano pela razão de ser sempre o que deve ser. Perante esta petição de princípio, pode bem dizer-se que a razão, obstinadamente invocada por esse tempo, não se encontra nele, apesar de tudo, bem tratada. É claro que, com o Contrato Social, assistimos ao nascimento de uma mística em que a vontade geral é postulada como o próprio Deus.
Essa pessoa política, convertida em soberana, é igualmente definida como pessoa divina. Da pessoa divina, possui ela, de resto, todos os atributos. Com efeito, é infalível, pois o soberano não pode desejar abusos. Ela é totalmente livre, se na verdade a liberdade absoluta é a liberdade quanto a cada um.
Rousseau declara assim que é contra a natureza do corpo político que o soberano se imponha uma lei que não possa infringir. Ela é igualmente inalienável, indivisível e, finalmente, visa mesmo a resolver o grande problema teológico, a contradição entre todo o poder e a inocência divina. Com efeito, a vontade geral impõe-se; o seu poder é sem limites. Mas o castigo que ela imporá àquele que recuse obedecer-lhe não é mais de que uma maneira de o "forçar a ser livre". A deificação extingue-se quando Rousseau, afastando o soberano das suas próprias origens, chega a distinguir através disso a vontade geral de todos. Eis o que se pode definir logicamente das premissas de Rousseau. Se o homem é naturalmente bom, se nele a natureza se identifica com a razão, ele exprimirá a excelência da razão desde que se exprima livre e naturalmente. Não pode portanto revogar a sua decisão, que daí em diante o ultrapassa. A vontade geral é em primeiro lugar a expressão da razão universal, a qual é categórica. Assim nasceu o novo Deus.
Eis porque as palavras que mais frequentemente se encontram no Contrato Social são as palavras "Absoluto", "sagrado", e "inviolável". Assim definido, o corpo político, cuja lei é um mandamento sagrado, não passa de um produto de substituição do corpo místico de cristandade temporal. O Contrato Social acaba, de resto, com a descrição de uma religião civil e faz de Rousseau um percursor das sociedades contemporâneas, que não só excluem a oposição como a própria neutralidade. Nos tempos modernos é com efeito Rousseau o primeiro a instituir a profissão de fé civil. Também o primeiro a justificar a pena de morte numa sociedade civil e a submissão absoluta do indivíduo à realeza do soberano, Há passagens significativas em que se estabelece firmemente que é preciso saber morrer se o soberano o ordenar e que se deve, se necessário, dar-lhe razão contra si próprio.
Esta noção mística justifica o silêncio que Saint-Just manteve, desde que foi preso até à subida ao cadafalso. Conveniente desenvolvida, ela explicará também os réus entusiastas dos processos estalinistas.
Encontramo-nos aqui na aurora da uma religião, com os seus mártires, os seus ascetas e os seus santos. É o momento da fé deslumbrada e generosa, o momento em que um povo admirável derruba em Versalhes, em 1789, o cadafalso e a roda. Os cadafalsos assumem nessa altura o aspecto dos altares da religião e da injustiça. A nova fé não os pode tolerar, Mas chega um momento em que a fé, ao tornar-se dogmática, erige os seus próprios altares e exige a adoração incondicional-
Então os cadafalsos reaparecem e, apesar dos altares, da liberdade, dos juramentos e das festas da razão, as messes da nova fé irão celebrar-se num banho de sangue. É o período tristemente célebre que ficou na História com o nome de O Terror. Proudhon, leitor do Contrato Social compreendeu tudo isto muito bem. E a proposta federalista, em termos políticos e económicos que é também, obviamente, um pacto social (48) que Proudhon nos apresenta a partir dos anos 40 e até ao fim da sua vida em 1865 reflecte e um vontade individual(49)(50) de compreender o real de um modo diferente, porque a realidade reflecte-se na consciência dos homens duma maneira diferente. A critica à sociedade capitalista por um lado, e o Federalismo como possibilidade activa de solver os problemas humanos dando-lhes um rumo diferente por outro, são os pontos extremos da original concepção cientifica desenvolvida pelo cidadão de Besançon.
Concepção científica, porque não determinista e não dogmática, nem no plano político nem no plano económico, ou seja, uma possibilidade constante, porque activa de entender dum modo previsível as relações sociais. Por isso o Federalismo Proudhoniano mantém-se como teoria e como prática (fundamentalmente como prática, porque toda a teoria só tem sentido se for acompanhada duma acção material e concreta, logo objectiva) como válido, para responder aos grandes problemas e às grandes interrogações do homem contemporâneo.

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