quinta-feira, fevereiro 24, 2011

O NEGRO E O VERMELHO

Proudon Epistológrafo

No estudo que ele consagrou ao nosso autor, Sainte-Beuve escrevia: “Eu sou persuadido que, no futuro, a correspondência de Proudhon será a sua maior obra viva, e que a maior parte dos seus livros não serão mais que o acessório e como peças o apoio” (1). Nós partilharemos este aviso, o adjectivo “acessório” excluído. A crítica, encerrada na sua juventude no santo-simonismo, aprovava a simpatia para inúmeras ideias proudhonianas mas conhecia mal a obra. É sobretudo o homem, a sua franqueza e o seu estilo, que lhe interessavam. A matéria deste primeiro ensaio biográfico - que não vai, por outro lado, além de 1848 - é tirada quase unicamente nas cartas, nas quais ele tinha tido comunicação e as manutenções a este propósito. Se só se pode prestar homenagem a este retrato geral penetrando, isso não implica ter como definitivos todos os julgamentos que ele contem.
Seguramente Proudhon encontra-se entre os grandes epistológrafos do século XIX, o equivalente a um George Sand que ele não amava nada. Os contemporâneos, ver os próximos, ignoravam este aspectos do seu génio ou não faziam mais que suspeitá-lo. É somente dez anos depois da morte do escrivão, quando foram publicados os catorze volumes da Correspondência, que a revelação fez falta. Apesar de incompleto, este momento impressiona de repente pelo seu ampliador. Completar, ver modificar certos pontos, a imagem do filósofo-polémista, a variedade de tom e a riqueza de conteúdo destas cartas, desde que a qualidade dos inúmeros destinatários, afirme o comentário indispensável da obra propriamente dita. Quanto em dizer, como Saint-Beuve, que a Correspondência é o aspecto mais duradouro, nós queremos ir também longe. A trintena dos volumes deixados por Proudhon, não somente são ocultados pelas suas cartas mas pelo contrário, tomam um acréscimo de interesse sob o seu esclarecimento.
Incontestavelmente, é impossível apanhar verdadeiramente a personalidade de Proudhon e de aproximar a base do seu pensamento sem levar em conta este contraponto permanente aos seus escritos publicados. Admitemos também que a reflexão sobre ela mesma com quatro décadas de uma produção ardente, pode aparecer mais próxima ao leitor de hoje do que certas obras ou passagens cujo contexto escapa-lhe ou a problemática aparece à vista absoluta. Retemos enfim que ao redor mesmo de uma referência ao proudhonismo -------------“stricto sensu”, estas trocas tão vivas e documentadas são uma referência de primeira ordem para a história intelectual da época. Rapidamente, cada um, segundo as suas preocupações lá encontrará interesse e prazer.
O objectivo de uma obra principal é efectivamente encontrar públicos diferentes, por razões que não se reencontravam inteiramente. A correspondência de Proudhon é, sem dúvida, um caso notável. Não mais que, como existem outros exemplos junto dos “homens de letras”, o escritor tinha “peaufiné”as suas missivas na intenção de as publicar um dia, dirigindo-as antes demais para a posteridade do que para aqueles que ele escrevia. No oposto, Proudhon epistológrafo é a espontaneidade mesmo, tendo tido esta virtude rara de manter-se com as suas correspondentes como se ele as tivesse diante de si. Nada menos apressado do que nestas cartas escritas na direcção do escritor, a maior parte do tempo do primeiro lançamento e quase sem risco, ao ritmo de muitos numa só jornada. O rude Pierre-Joseph, tão rico em qualidades inatas, incapaz de dissimulação, coloca-se todo no que ele escreve. Sem deixar nunca de ser ele mesmo, fala, pode-se dizer a cada um na sua própria língua, respondendo exactamente à exigência daquele que o interpreta ou explicando com precisão o que não se encontra noutro lado. Aos mais íntimos, ele vai até confiar nas confissões nas quais a autenticidade não exerce nenhuma dúvida.
Se Proudhon é um epistológrafo também talentoso e atacante é porque ele crê antes de mais no diálogo, tendo mesmo falta de ar ou de alimentos, só se expandindo bem como o outro. Conhece-se a frase - tirada precisamente de uma carta - onde ele diz que, no isolamento, mais que monologar, ele falava do seu chapéu. Para além de outras passagens manifestantes do seu gosto profundo pela mudança, sobretudo pela escrita. Todas as suas obras são, mais ou menos explicitamente, uma polémica com o indivíduo ou uma escola do pensamento. No limite, ele inventa um adversário suposto, tal como o cardial Mathieu ao longo dos milhares de páginas da Justiça.
Quando ele se dirige a um amigo vê ainda mais a sua satisfação, discutindo sempre mais com uma espécie cumplicidade jubilatória, como um lutador exaltado à escolha de um parceiro. Movendo-se como um verdadeiro contraditório, ei-lo prestes a defender unhas e dentes, mostrando-se mais atento,a ver diferente em todas as suas lutas públicas. É isto que dá a estas cartas, tão diferentes para pessoas diferentes, esta extensão de registos e esta multiplicidade de esclarecimentos que fazem a qualidade.
Por diversas retomadas o autor destas missivas, longe de pensar em torná-las um dia públicas, insiste para que elas não sejam comunicadas a qualquer um: ele exige mesmo queimá-las. Não se verá a elegância inexistente, se se conhecia o pudor de Proudhon aos olhos da sua vida privada. Portanto no fim da vida, ele parece, ao menos parcialmente, ter mudado de opinião, dizendo meio-prazeiroso, meio-sério ao cidadão Rolland: “Se eu tivesse tempo, e se eu sonhasse para a posteridade, eu copiaria as minhas cartas. São os momentos onde, quando eu leio Voltaire, Srª de Sévigné, o género para a verdade, o realismo, o espírito e mil e outras coisas não se encontram por aí” (2). Não era descrever-se com justiça?
Além dos anos anteriores, Ackermann tinha também recebido esta confidência, mais directa ainda: “… a nossa correspondência nos consolará e poderá algum dia interessar o público” ( 15-10-39, Cor.I, 156 ). Mas ele não vai mais longe que as suas notas incidentes. Ao contrário de um egotista, Proudhon não tinha tido intenção em reunir estas cartas, fossem elas adequadas entre si, e nem guardou a cópia. Acreditemos sobretudo que o seu conselho de as fazer desaparecer tinha sido muito bem seguido, mesmo involuntariamente. Em todo o caso uma grande parte, na qual o volume é difícil de estimar - ao menos o dobro e talvez o triplo do que nós temos - foi perdido. De vez em quando reapareciam blocos mais ou menos consideráveis.
Muitos entre os destinatários, sobretudo os mais próximos, não se equivocam àcerca do valor do tesouro que eles detêem. É assim que Alfred Darimon, braço direito de Proudhon nas suas actividades de escrita, oferece a Sainte-Beuve consultar junto dele as inúmeras cartas na sua posse antes de lhe oferecer um estudo mais aprofundado. Outros destinatários crêem-no sem nenhuma dúvida. Pouco antes da morte de Proudhon, em 1865, um dos seus próximos colaboradores e executores testamentários, Jérome-Amédée Langlois (3), toma a iniciativa de reunir tudo o que era acessível à Correspondência. O conjunto forma a matéria de catorze volumes publicados em 1875 pela Livraria Internacional. A.Lacroix e Cie, igualmente editor desde 1867 das primeiras obras completas em vinte e seis volumes.
O conjunto forma no total 1493 cartas ( 1498 depois da mesa, mais 5 entre elas figuram duas vezes ). Muitas das vezes nós não lhe somos devedores! Infelizmente, realizada activamente com meios falíveis, esta edição é lacunar e sempre errónea. O estudo faz referência a este assunto - o de Pierre Haubtmann, ao fim do I tomo do seu Pierre-Joseph Proudhon - reacende um certo número destas omissões, erros ou mesmo correcções desastradas.
Desde a edição Lacroix, dois volumes de cartas que não lá figuravam foram publicadas por Grasset: Cartas ao Cidadão Rolland em 1946 e Cartas de Proudhon à sua mulher em 1950, um e outro evocados ao longo desta jornada. Junto do mesmo editor, Daniel Halévy e Louis Guilloux, tinham dado em 1929 uma antologia da Correspondência de Proudhon, num volume da colecção “Os Escritos” dirigida por Jean Guéhenno. Por outro lado, muitas séries de cartas reencontradas de diferentes épocas foram publicadas, quer seja na livraria, quer seja nas revistas. Recordemos nomeadamente: Cartas inéditas a Gustave Chaudey e a vários Comtois, reunidas por Edouard Droz ( Besançon, 1911 ); Proudhon explica ele próprio, Cartas inéditas a N.Villiaumé ( Paris, Alcan-Lévy, s.d. ); “Cartas inéditas”, in A Actualidade da História ( Janeiro-Março 1954, Março-Maio-Outubro 1955 ). Muitas ligações, em particular a das cartas aos irmãos Gauthier, são passadas junto dos mercados autográficos e algumas entre elas podiam ser encontradas na Biblioteca de Besançon.
Os volumes da grande edição venderam-se dificilmente. A Livraria Flammarion, que tinha retomado os fundos Lacroix, abaixaria o preço de 70 F para 50, depois para 20. Apesar disso os inúmeros números restantes em revistas foram destruídas durante a guerra de 1914. Passados alguns anos, as edições Slatkine-Champion efectuaram uma diminuição, sempre disponível mas a um preço elevado.
Será possível dispôr um dia de uma edição corrigida e completa desta Correspondência? Somente a podemos desejar. Mas é necessário primeiramente, proceder a um inventário exaustivo dos inúmeros inéditos ou das publicações parciais dispersas nas revistas, nas bibliotecas ou nas colecções privadas. Trabalho de longo fôlego, pena seduzida. Isto poderia ser uma das missões da nossa sociedade, o dia no qual ela disponibilizaria mais meios.
“A verdadeira biografia de Proudhon encontra-se quase toda completa na sua Correspondência”, escreveu Langlois na introdução à edição Lacroix. Ele estava bem colocado para o saber. Depois dele todos aqueles que estudaram a obra e tentaram traçar um retrato psicológico e moral do seu autor - Sainte-Beuve, seguramente, depois Droz, Halévy, Dolléans, de Lubac, Haubtmann, etc. - utilizaram esta fonte de riqueza quase inesgotável. As suas obras contêm inúmeros extratos significativos destas cartas.
Mas nada substitui uma leitura directa, quer seja integral, quer seja transversal em função de um tema de interesse particular. Ela procura a felicidade rara de se encontrar face a face, como se ele nos falasse directamente, com este génio muito diverso e variado que não queria alguns estereótipos. Um homem por vezes inteiro e complexo, caloroso, atento a tudo, com a sua vigorosa alegria, suas angústias, suas dúvidas, e sempre a sua inflexível equidade. Através do seu autor, enredado em tantas querelas da época a correspondência de Proudhon introduz-nos em primeira mão - e isso não é o seu meio interesse - no quotidiano de um século tumultoso, tão próximo de nós por tantos aspectos. Enfim, e é sem dúvida no seu lado mais resistente, que estas cartas fazem-nos entender a voz de um grande escritor francês, ao estado para assim dizer nascente. Lá, ele é o menos apressado, portanto o mais resistente.
Mesmo se vós não estais de acordo em tudo com Proudhon, uma ou outra das suas proposições parece-vos ultrapassada, ou irrita-vos mesmo, mergulha-vos neste rio poderoso e impetuoso, alternadamente profundo, ardente ou refrescante: vós não vos arrependeréis certamente.

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