O governo anunciou que vai substituir os cortes que havia decretado nos salários dos funcionários públicos, recentemente reprovados pelo Tribunal Constitucional, pelos cortes nos salários dos funcionários públicos decretados pelo último governo de Sócrates, então aprovados pelo Tribunal Constitucional (TC).
Se a memória não me engana, a aprovação dos cortes de Sócrates, por parte do TC, foi acompanhada de uma ressalva que pressupunha que esses cortes tivessem um carácter provisório e excepcional. Todavia, parece que, atendendo às explicações informais que o presidente do TC tem por hábito dar no final da leitura pública das decisões que o tribunal toma, a situação agora já não é precisamente essa. Na realidade, a justificação avançada para o chumbo dos últimos cortes decretados pelo actual governo foi, segundo deu a entender o presidente do TC, apenas a circunstância de eles serem mais gravosos do que os decretados pelo governo anterior — quer no aumento das percentagens de redução salarial, quer na diminuição do número de funcionários isentos da mesma. A razão do chumbo terá sido, pois, o agravamento dos cortes e não o facto de os cortes se perpetuarem. Se for este o ponto de vista dominante dentro do TC (dando assim sinais de cedência às pressões do governo), estamos perante uma situação verdadeiramente esdrúxula, isto é: o carácter provisório e excepcional dos cortes já não é constitucionalmente exigido, o que constitucionalnente passou a ser exigido é que os cortes não sejam maiores e mais abrangentes do que os cortes do governo anterior. E foi precisamente isto que o governo acabou de pôr em marcha.
Perante esta situação, os funcionários públicos têm razões para se sentirem confortados. Na verdade, deixam de estar sujeitos a uma medida de direita e inconstitucional para passarem a estar sujeitos a uma medida de esquerda e constitucional. Não se cansando Sócrates de se autoclassificar como um homem de esquerda, não se inibindo o PS de se auto-afirmar como um partido de esquerda, distinto do PSD e do CDS, teremos de entender que os cortes nos salários operados pelo ex-primeiro-ministro socialista foram uma medida de esquerda, acrescida do facto de ter sido considerada constitucional.
É, pois, um alívio para os funcionários públicos que vão continuar a ver os seus salários reduzidos: de uma só vez, vêem-se livres de cortes salariais de direita e inconstitucionais e passam a ter cortes salariais de esquerda e constitucionais. Os funcionários públicos sentirão certamente o privilégio de poderem ser apontados como um exemplo de quem sente a diferença clara entre ser governado por partidos de direita e ser governado pelo PS, que, segundo o próprio faz constar, é de esquerda.
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