O PÚBLICO noticiou esta semana o caso de um ex-presidente da
Junta de Freguesia de S. José, em Lisboa, João Miguel Mesquita, eleito pelo
PSD, que foi condenado em Abril passado a quatro anos e meio de prisão por ter
“gasto em benefício próprio”, entre 2005 e 2007, 12 mil euros pertencentes à
autarquia.
O Ministério Público tinha-o acusado de desviar 40 mil euros
e de falsificação de documentos, mas o tribunal só considerou provado o desvio
dos 12 mil euros. A pena de prisão de João Miguel Mesquita ficou suspensa na
condição de que o condenado pagasse à autarquia os 12.000 euros de que se tinha
“apropriado”, o que significa que não existiu qualquer sanção real para o crime
e que o condenado apenas será obrigado a repor o que roubou, como se se tivesse
enganado nas contas com a melhor boa-fé do mundo e fosse o mais impoluto dos
autarcas.
A notícia chamou-me a atenção porque me recordou um episódio
passado comigo. Há uns anos, ao sair de uma carruagem depois de uma viagem de
metro, senti-me mais leve do que quando tinha entrado. Ao apalpar os bolsos,
percebi que alguém me tinha palmado a carteira, com documentos e uns escassos
euros.
Apresentei queixa, substituí os documentos e, passados
meses, recebi um telefonema da polícia anunciando-me que tinham prendido um
carteirista e que, no meio do seu espólio, lá tinham encontrado os meus
documentos. Fui testemunhar a tribunal, juntamente com outras vítimas, e o
carteirista, que confessou os crimes, foi condenado a uns anos de cadeia. Não
me recordo de o Ministério Público ter nessa altura proposto ao carteirista a devolução
do dinheiro roubado em troca de uma pena suspensa e de uma libertação imediata,
mas penso que o arranjo lhe deveria ter agradado, já que, no meu caso, a
“indemnização” seria de vinte euros. A razão dos dois pesos da Justiça é
evidente: o meu carteirista usava uma camisa aberta aos quadrados e um blusão
de má qualidade, enquanto que os presidentes das juntas usam em geral fato e
gravata. Para mais, o ex-presidente da junta pertencia a um partido do “arco do
poder” e o meu carteirista provavelmente não teria actividade política.
Todos os casos que conheço reforçam a minha convicção de que
existe uma aplicação do Código Penal para quem usa gravata e outra,
infinitamente menos benévola, em Portugal e em todos os outros países do mundo,
para quem não usa.
Tomemos o exemplo daquele que é um dos maiores roubos da
História: a manipulação da taxa Libor, ao longo de muitos anos, por um cartel
de bancos que incluía instituições pretensamente tão respeitáveis como o
Barclays Bank, UBS, Citigroup, The Royal Bank of Scotland, Deutsche Bank,
JPMorgan, Lloyds Banking Group, Rabobank e outros. A manipulação de uma taxa
interbancária de referência como a Libor, em benefício próprio, traduziu-se em
perdas para muitos milhões de indivíduos e organizações em todo o mundo.
Milhões de estudantes ingleses, de lojas francesas, de quintas italianas e de
famílias portuguesas viram as mensalidades dos seus empréstimos aos bancos
subir durante anos para que esses mesmos bancos e outros vissem os seus lucros
crescer. Tratou-se, em linguagem corrente, de um roubo. Não um roubo como o do
meu carteirista mas um roubo sistemático, generalizado, que defraudou milhões e
que acumulou riquezas incalculáveis nos bolsos de quem já era imensamente rico.
O que aconteceu a estes bancos? Alguns pagaram multas,
outros nem isso, porque denunciaram os cúmplices em troca de imunidade, mas
ninguém foi condenado. Houve uns corretores expulsos de uns países, detenções
para interrogatórios e foi tudo. Talvez uns quantos acabem por ser presos – os
próprios bancos acusados tentarão encontrar bodes expiatórios –, mas nunca o
castigo será proporcional ao crime. Todos usam gravata. Alguém espera que o
imenso buraco do BES tenha responsáveis criminais?
O ex-presidente da junta, apesar de tudo, foi condenado e a sua
reputação saiu ferida, mas os bancos ladrões e os seus administradores e
directores continuam a ser referidos na imprensa como entidades respeitáveis e
os seus quadros são invejados nas revistas, bajulados pelos Governos e pagos
(legalmente) a peso de ouro.
A crise moral que atravessamos traduz-se nisto: condenamos
carteiristas à cadeia em nome da Justiça e tratamos com deferência e
apresentamos como exemplo organizações criminosas que operam em grande escala,
como os bancos. Não é uma novidade, mas o facto de não ser uma novidade e de
continuarmos a tolerar a situação só a torna mais grave. Continuamos a tratar
com respeito governos que se apropriam de património público para o vender ao
desbarato e que destroem monopólios do Estado para beneficiar interesses
privados obscuros – como o Governo português está a fazer com a lotaria.
Por que respeitamos estes ladrões? Por que falamos de bancos
e de organizações como a ONU, ou o FMI ou a FIFA ou tantas outras, como se
fossem respeitáveis? Por que não exigimos que obedeçam aos padrões éticos e
legais que exigimos aos outros? Apenas porque usam gravata e sabem usar
talheres? Apenas porque ficaram ricos com o dinheiro que roubaram? Somos assim
tão parvos?