quarta-feira, setembro 24, 2014

Três confusões

Adivinhando-se um reavivar da contenda pelo copyright, a propósito da nova taxa, achei pertinente apontar três confusões nos conceitos que se invoca para justificar que todos devemos dinheiro aos autores por trabalho que não lhes encomendámos. 

Se um cozinheiro profissional trabalha e não lhe pagam é claro que estão a violar os seus direitos e que isso tem de ser ilegal. O mesmo para qualquer outro profissional, seja cabeleireiro, professor, canalizador ou o que calhar. Por isso, se afirmam que a lei deve garantir que os músicos profissionais têm direito a uma remuneração, ninguém estranha. No entanto, neste caso, há um abuso do termo “profissional”. Quando pensamos num profissional pensamos em alguém que trabalha sob contrato, desempenhando uma tarefa que lhe prometeram remunerar ou vendendo algo a quem se comprometeu comprar. Por exemplo, se o cozinheiro tem um contrato com o restaurante ou o músico tem um contrato com a orquestra e não lhes pagam o prometido, então a lei deve intervir. Mas alguém que inventa receitas na esperança de as vender não é um cozinheiro profissional. E se, como é quase certo, os seus potenciais clientes preferirem partilhar as receitas gratuitamente entre si em vez de lhas comprar, não tem qualquer legitimidade para exigir pagamento porque ninguém lhe encomendou nada. 

Há artistas e autores que trabalham como profissionais. Em jornais, orquestras e corpos de baile, por exemplo. E, com a tecnologia que temos, qualquer um pode trabalhar de forma profissional se acordar com o seu público a remuneração pelo trabalho que vai fazer. Também já há artistas a fazer isto pela Internet, até porque o princípio é o mesmo que vender bilhetes para um concerto. Tal como nas outras profissões, também na arte o trabalho profissional, no sentido rigoroso do termo, não carece de direitos especiais para garantir uma remuneração justa porque esta é acordada entre as partes à partida. O problema do copyright só persiste porque, por pressão dos distribuidores e pelas limitações tecnológicas de outrora, tornou-se tradição os autores trabalharem sem qualquer garantia de remuneração e só depois tentarem encontrar quem lhes dê alguma coisa. É uma abordagem legítima, mas fazer as coisas por essa ordem é característica de amadores e não de profissionais. 

Mesmo admitindo que monopólios, taxas e restrições sobre a cópia só são necessários por falta do profissionalismo de garantir a remuneração antes de fazer o trabalho, há quem argumente que, ainda assim, um artista que produz algo que outros apreciem merece ser remunerado. Em muitos casos a alegação é duvidosa. Por exemplo, quando penso no que o Tozé Brito merece pelo que fez à música portuguesa, não é remuneração que me ocorre. Mas mesmo que o artista mereça ser remunerado é preciso distinguir dois sentidos de “merecer”. Num sentido, a coisa merecida é tão importante e justa que todos temos a obrigação de a garantir. Por exemplo, quando dizemos que as crianças merecem ter acesso à educação ou que um trabalhador merece receber o salário que lhe prometeram pelo trabalho que fez estamos a dizer que deve ser assim nem que seja pela força, cobrando impostos ou ameaçando procedimentos judiciais. Mas quando dizemos que os bombeiros merecem ganhar mais do que os futebolistas estamos a afirmar que seria justo mas sem defender que a lei o obrigue. Esta distinção é importante quando se invoca o mérito dos autores, que até o podem ter, para justificar legislação que esse mérito não justifica. Mérito por mérito, diria ser maior o do bombeiro que o do músico. 

Finalmente, os “direitos do autor”. Isto pode referir um conjunto de privilégios que se atribui ao autor por ser diferente dos restantes cidadãos, uma noção que ninguém estranharia no século XVI, quando se inventou estas leis. Um exemplo extremo deste conceito é o (mítico) droit du seigneur, segundo o qual o nobre teria o direito de desvirginar as filhas dos plebeus. Mas o sentido mais adequado à sociedade moderna é o que usamos nos “direitos do trabalhador estudante” ou “direitos do eleitor”. Estas expressões não designam privilégios exclusivos dos membros de uma classe mas, pelo contrário, direitos concedidos a todos para que seja mais fácil desempenharem esse papel na sociedade. Por exemplo, o direito de faltar ao trabalho para fazer exames não é uma recompensa nem um privilégio. Serve para tornar mais fácil a quem trabalha continuar os estudos. Esta mudança de perspectiva inverte o que devem ser os “direitos do autor”. Em vez do direito, de uns poucos, de receberem dinheiro pelo que outros fazem ou proibirem a partilha de informação, devem ser direitos de todos para que seja mais fácil qualquer um ser autor. E isto dá o contrário do que temos. Em vez do monopólio sobre a obra o direito do autor devia ser o direito de acesso e partilha de informação, porque é disso que ele precisa para criar. Em vez do direito de proibir a criação de obras derivadas, o autor devia ter o direito de transformar livremente qualquer elemento da sua cultura. Quer por justiça quer para incentivar a criatividade, em vez de conceder privilégios a quem já criou devíamos conceder a todos os direitos que os ajudem a criar. 

Prevejo que, nos próximos tempos, se fale muito dos direitos dos autores profissionais e de como merecem ser pagos pelo seu trabalho. Gostava que, sempre que isso acontecesse, se lembrassem destas três confusões. Qualquer profissional, no sentido rigoroso do termo, tem o direito à remuneração garantido por lei em virtude do contrato que celebrou pela venda do seu trabalho. Se não tem é amador. Muita gente merece muita coisa, mas só em casos excepcionais é que isso justifica coagir terceiros pela força da lei. E, finalmente, numa sociedade igualitária e digital, os direitos do autor não devem ser privilégios aristocráticos dos membros da SPA. Devem ser direitos de todos e devem facilitar o acesso, a partilha e a transformação das obras para que se maximize a criatividade.


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