sábado, outubro 18, 2014

A longa história de uma mentira

A anatomia do estrondoso declínio da PT é, também, a reconstituição de uma das mais longas e perniciosas mentiras que condicionaram o debate público em Portugal. A ideia que um pequeno país, sem liquidez e músculo financeiro, conseguiria manter os centros estratégicos sem o papel do Estado. Foi isso que nos "venderam" desde a primeira vaga das privatizações. O Estado é ineficaz a gerir empresas e, como tal, devia afastar-se da economia como o diabo foge da cruz.
O que importava, diziam-nos, era que os centros estratégicos ficassem em mãos portuguesas. Foi assim que o Estado vendeu por tuta e meia sectores inteiros da economia nacional, apenas para os vermos escassas semanas depois a serem transacionados a capitais estrangeiros com avultadíssimos lucros. O Totta e Açores, vendido a Champalimaud que logo se encarregou de o despachar para um dos maiores bancos do país vizinho, é apenas o exemplo mais falado, mas está longe de esgotar a lista.
As "golden share", ou ações preferenciais que mantinham o poder de veto e de influência do Estado nas opções estratégicas das empresas, foram o passo seguinte. Mas até isso era demasiado, veio dizer-nos Pedro Passos Coelho e o seu liberalismo de pacotilha. O resultado está à vista.
Há quatro anos a PT tinha a liderança do mercado móvel da América latina. Hoje, é uma empresa endividada até ao pescoço, que perdeu 90% (sim, noventa por cento) do seu valor, sem capacidade de investimento, escorraçada pelo obsoleto parceiro brasileiro, e à beira de ser comprada por um fundo especulativo. O mesmo fundo que, depois de adquirir a Cabovisão, fez do despedimento de 100 funcionários o seu primeiro ato de gestão.
Durante décadas a maior empresa portuguesa, e a primeira de dimensão internacional, a Portugal Telecom (PT), foi também a empresa que mais investiu em tecnologia e investigação no nosso país. A PT, fruto do seu investimento no centro tecnológico de Aveiro, foi a primeira empresa mundial a criar um cartão pré pago. Foi com ele que reagiu à entrada das multinacionais de comunicações no nosso país e que revolucionou o mercado brasileiro, tornando a VIVO o maior operador móvel da América latina. O mesmo aconteceu com os acessos à internet, rede 3G e um sem número de produtos nascidos da articulação entre uma empresa com capitais públicos e uma universidade do Estado.
Não é coincidência. O início do fim da PT coincide, temporalmente, com a alienação da Golden Share do Estado na empresa. A venda da Vivo foi mais uma machadada na destruição de valor da companhia que poderia ter sido travada pelo Estado não fosse este, apesar da sua oposição inicial, se ter vergado à pressão do maior accionista da PT: o BES. O banco de Ricardo Salgado precisava de liquidez e o futuro de uma empresa estratégica portuguesa era a sua última preocupação.
Foram essas necessidades de liquidez que fizeram com que a PT, durante anos e anos a fio, fosse a empresa que mais generosos dividendos foi distribuindo. A distribuição de dividendos muito acima das suas possibilidades, foi o esquema encontrado por Zeinal Bava e Henrique Granadeiro para gerirem uma complexa teia de interesses. A sua ligação umbilical às necessidades da finança, leia-se Banco Espírito Santo, acabou por descapitalizar a empresa, endividando-a, e colocando o seu futuro em risco.
Desta política de desresponsabilização do Estado e de subjugação das empresas industriais portuguesas à finança sobram apenas dúvidas e preocupações. Preocupações sobre o futuro do operador incumbente de comunicações, sobre o futuro de milhares de trabalhadores ou o futuro do investimento em infraestruturas vitais para a modernização do país.
Em nome dos interesses financeiros que a governavam, a PT tomou sempre as decisões erradas: vendeu a Vivo, o seu maior ativo, apenas para gerar receitas de curto prazo; distribuiu dividendos para contentar acionistas em detrimento do investimento na própria empresa; fundiu-se com uma empresa, a Oi, que a canibalizou; e, como se não bastasse, empenhou o seu fundo de tesouraria na dívida ruinosa na RioForte, que lhe viria a custar quase 30% da sua participação na empresa brasileira. Agora, sem poder, a PT arrisca-se a ser vendida a um qualquer fundo estrangeiro.
Todas estas más decisões podiam ter sido evitadas se, em vez do BES ou da Ongoing, o accionista da Portugal Telecom fosse o Estado e, se em vez dos interesses puramente financeiros, o interesse nacional tivesse prevalecido. Toldado pelo seu dogmatismo liberal, este governo de maioria PSD/CDS, não sem a colaboração das decisões dos governos PS anteriores, desfez-se de todos os mecanismos de intervenção na PT - desde a Golden Share à participação da Caixa Geral de Depósitos -  e agora contenta-se em assumir a posição de mero espectador de uma cena sem final feliz.
Nada do que nos prometeram nas privatizações funcionou. Os antigos monopólios do Estado tornaram-se em monopólios privados, a anunciada competitividade nunca desceu preços (como vemos na energia e gasolina), e, hoje, não só não temos uma economia mais dinâmica como o país se encontra refém de interesses que não controla nem tem capacidade de influenciar. A economia definha e o Estado assiste. Enquanto isso há quem vá ganhando com o vazio criado. Muito.