segunda-feira, novembro 03, 2014

Treta da semana (passada): não fazer publicidade.

No passado dia 21, o Clube de Filosofia Al-Mu'tamid organizou na Mesquita de Lisboa um debate sobre o Estado Islâmico. Naturalmente, David Munir, o xeque da mesquita, criticou o Estado Islâmico. O intrigante foi a forma como criticou essa organização criminosa que anda a massacrar populações, a escravizar, a torturar e a violar crianças, tudo em nome do islão. Segundo Munir, «à luz da religião o líder do Estado Islâmico não tem direito a declarar, como fez, a constituição de um califado, e insistiu que as bases do islão são de paz, não de guerra.»(1) Com tanto defeito a apontar, limitou-se a um detalhe técnico e um par de banalidades. É interessante pensar porquê. 

Também na audiência questionaram o porquê dos representantes da comunidade islâmica não condenarem mais claramente as atrocidades daquele grupo. «"Vocês não sentem necessidade de uma demonstração de renúncia? Sei lá, um anúncio no jornal a dizer 'não tenho nada que ver com aquilo'?"» A resposta de Mahomed Abed, coordenador cultural da mesquita, foi de que «Ao ir pelo outro caminho estaríamos a fazer publicidade»(2). 

Há várias razões para não ficar satisfeito com a resposta. Evitar a publicidade ao Estado Islâmico pressupõe que pouca gente tenha ouvido falar desse grupo, o que não é plausível. Pressupõe também que não falar no assunto contribua para resolver o problema de ter milhares de homens armados a cometer atrocidades no Iraque e na Síria, outra premissa que me parece incorrecta. Finalmente, organizarem um debate público sobre o Estado Islâmico contradiz claramente a tese de que não repudiam esse grupo apenas para evitar fazer publicidade. Tem de haver outra razão. 

Uma diferença importante entre o islão e as outras religiões com mais aderentes é o seu livro sagrado. A Bíblia, os Vedas e os Sutras são compilações de textos muito diversos, de fontes diferentes e que os crentes aceitam como relatos inspirados mas que podem ser interpretados com alguma flexibilidade. Em contraste, o Corão é um texto muito mais uniforme, conciso e coerente e que os muçulmanos assumem como sendo uma recitação da palavra divina. Não tem partes que se possa descartar como alegóricas ou metafóricas nem se dá a grandes interpretações. Por exemplo, 4:89 expõe claramente como se deve lidar com quem abandona a fé: «Anseiam (os hipócritas) que renegueis, como renegaram eles, para que sejais todos iguais. Não tomeis a nenhum deles por confidente, até que tenham migrado pela causa de Deus. Porém, se se rebelarem, capturai-os então, matai-os, onde quer que os acheis, e não tomeis a nenhum deles por confidente nem por socorredor.»(3) No Antigo Testamento também há exemplos deste género, mas enquanto cristãos podem invocar que o Novo Testamento se sobrepõe ao antigo e judeus podem interpretar tais trechos como relatos históricos de práticas que já não se aplicam, para um muçulmano é muito mais difícil descartar as ordens do Corão enquanto mantém a fé neste livro como registo das palavras do seu deus. 

Esta diferença tem consequências práticas. Não é certamente coincidência que os 23 países que punem explicitamente a apostasia como um crime estejam entre os 49 países de maioria muçulmana. Dos outros países, sejam seculares ou dominados por outras religiões, nenhum considera a apostasia um crime. A razão mais plausível não parece ser económica ou social. Parece ser a de que o islão tem um texto sagrado que é aceite como a palavra directa de Deus onde está explícito que se deve matar quem se rebelar contra esta religião. 

Outra diferença importante é a vida e o legado do fundador da religião. Jesus pregou, rezou, ensinou e foi crucificado. Buda pregou, jejuou, ensinou e abandonou o seu corpo. Maomé unificou as tribos de Medina e conquistou Meca com um exército que depois enviou para destruir todos os templos das outras religiões na península arábica. Nos hadiths é-lhe atribuída a ordem de que«Quem quer que abandone a sua religião Islâmica, então matai-o»(4). Consumou o seu casamento com Aisha quando esta tinha nove ou dez anos (5). E assim por diante. Um muçulmano não pode descartar estas coisas como um cristão faz com as barbaridades do Antigo Testamento porque trata-se do Profeta, a peça central da sua religião. É tão difícil a um muçulmano condenar inequivocamente estas práticas pela barbaridade que são como seria a um cristão admitir que a história da ressurreição é fictícia. 

Não é por medo da publicidade que os líderes dos muçulmanos moderados se limitam a acusar o Estado Islâmico, e extremistas afins, de meras falhas processuais como a de não ter «direito a declarar, como fez, a constituição de um califado». O problema é que aquilo que os extremistas fazem é cópia chapada do que fez o fundador do islão, e é impossível condenar os actos daqueles sem uma censura implícita aos actos deste. Censura essa que Maomé deixou bem claro como deve ser castigada. 

PS: Se tiverem oportunidade, recomendo a entrevista que Sam Harris deu a Cenk Uygur. São três horas, mas vale a pena: Sam Harris and Cenk Uygur Clear the Air on Religious Violence and Islam 

1- Público, A noite em que a mesquita de Lisboa se encheu para debater o Estado Islâmico
2- Expresso, Sheikh David Munir. "Nós não temos mesquitas clandestinas. Isso não existe. Vocês conhecem-nos"
3- eBookLibris, O Alcorão Sagrado
4- Center for Muslim-Jewish engagement (vis WebCite), Dealing with Apostates.
5- Wikipedia, Aisha.


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