Desde que entrou em funções, o governo de Passos Coelho apostou numa permanente confrontação com a Constituição e com o Tribunal Constitucional. Em todas as refregas, uma por cada Orçamento do Estado e mais umas quantas de permeio, a técnica foi a mesma: violar direitos, que o governo sabia estarem a ser infringidos, esperar o veredicto e culpar depois o TC e a Constituição pelas penalizações sobre os assalariados, quando não pela persistência da crise.
O episódio mais recente deu-se na abertura da discussão do OE 2015 em que o primeiro-ministro foi mais longe que em casos anteriores: anunciou antecipadamente que não irá cumprir a determinação do Tribunal Constitucional a respeito da reposição dos salários cortados aos funcionários públicos ao abrigo do acordo estabelecido com a troika.
É a técnica do golpe de Estado: cria-se uma pressão permanente sobre as instituições para mostrar que não servem os (“bons”) propósitos da governação e procura-se assim justificar a sua subversão, no caso a Constituição.
A técnica não tem sido tão mal sucedida como por vezes se ouve dizer.
A técnica não tem sido tão mal sucedida como por vezes se ouve dizer.
Não é que a massa da população, atingida pelas medidas de austeridade, dê grande crédito aos argumentos do governo para as aplicar, ainda menos que as aceite de bom grado. O sucesso está noutro campo: todas as forças políticas da área do poder estão hoje decididas a fazer uma revisão constitucional, que acham “óbvia”, PS incluído.
Um dos motes é dado pela crise económica. Já se fala em incluir na Constituição uma ressalva respeitante ao “estado de necessidade financeira”. Isto é, a possibilidade de, à semelhança do estado de excepção ou do estado de emergência, suspender direitos consagrados constitucionalmente sem que isso configure uma ilegalidade. No caso de declaração do estado de necessidade financeira, os alvos seriam obviamente os direitos relativos a salários, pensões, idade de reforma, prestações sociais, gastos do Estado com a saúde e a escola pública e o mais que a imaginação dos governantes ditasse. Tudo, dir-se-á, o que já tem sido atacado nos últimos anos com o justificativo da crise económica — mas, no caso de invocação do “estado de necessidade financeira”, com uma agravante: a de o governo ter as mãos livres à partida e nem sequer ter de sujeitar-se a pareceres do Tribunal Constitucional.
Na reforma constitucional que a direita tem impulsionado, aquilo que estará em jogo não será propriamente a abolição formal de direitos fundamentais, como o da Igualdade. O propósito será certamente outro: criar um dispositivo constitucional que dê ao poder executivo uma margem tal de actuação que o torne imune a qualquer escrutínio.
Ao capital, que manda nisto tudo, pouco importa que a Igualdade continue pendurada, como um emblema, no texto da Constituição. Importa-lhe sim é ter um governo que faça o que ele determinar sem ter de ficar sujeito ao incómodo de qualquer fiscalização.
Ao capital, que manda nisto tudo, pouco importa que a Igualdade continue pendurada, como um emblema, no texto da Constituição. Importa-lhe sim é ter um governo que faça o que ele determinar sem ter de ficar sujeito ao incómodo de qualquer fiscalização.