domingo, dezembro 21, 2014

O melhor método

Quando afirmo que a ciência é o melhor método para obter explicações e apurar factos, por vezes contrapõem que não porque a ciência não explica tudo. É uma objecção estranha. Ser o melhor método não implica que faça tudo; quer dizer apenas que as alternativas são piores. A física e a engenharia civil também não permitem construir uma ponte de Lisboa ao Funchal com apenas três palitos e meio quilo de farinha. No entanto, a melhor forma de construir pontes continua a ser usando estes conhecimentos. Não há alternativa que funcione tão bem. 

A ciência é o melhor método para compreender a realidade porque aproveita o que os seus predecessores faziam bem e acrescenta o que lhes faltava. O primeiro passo para compreender a realidade, que se perde na pré-história, foi tentar criar narrativas inteligíveis. A maior parte dos modelos modernos são construídos em matemática em vez de língua natural, para quantificar com rigor, mas a ideia fundamental é a mesma. Queremos uma representação simbólica do que se passa “lá fora” que possamos, dentro do possível, entender “cá dentro” na nossa mente. Daqui vem, ainda hoje, a ideia confusa de que o que é inteligível é a realidade que está “lá fora”. Mas, em rigor, nós não compreendemos pedras, nem estrelas nem gravidade. O que pode ser mais ou menos inteligível, conforme outras restrições permitam, são os modelos que inventamos para descrever essas coisas. É somente através destes que compreendemos a realidade. 

Mas esta confusão faz com que até narrativas como o Génesis ou os poemas de Homero criem facilmente a impressão de nos dar a compreender algo real apenas pela compreensão da narrativa. É uma sensação ilusória, porque nem sequer se tenta determinar se a narrativa corresponde à realidade que pretende narrar. Mas é uma ilusão tão forte que até acabou formalizada no “acreditar para compreender” de Agostinho e Anselmo, e sempre foi a base do pensamento religioso. Assim, a crença tornou-se o primeiro critério para apurar a verdade. Este problema foi o último a ser resolvido, não só pelo poder da ilusão de compreender quando se acredita mas porque, em geral, testar a correspondência entre modelos e realidade exige tecnologias de medição e técnicas de inferência que só surgiram nos últimos séculos. Aristóteles é muito criticado por julgar que as mulheres tinham menos dentes que os homens, mas não é nada fácil determinar essas coisas quando o número de dentes varia de pessoa para pessoa e se está ainda a séculos das primeiras noções de estatística. 

Mas outro problema nas narrativas mitológicas tornou-se evidente mais cedo. É a tendência para acumular alegações ad hoc, o que não só dá origem a inconsistências mas exige que se acredite em tudo porque sim. Que as folhas caem porque Perséfone vai ter com Hades. Que o Sol nasce e se põe porque Hélio o transporta numa carroça ou que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três e um só ao mesmo tempo. Para evitar estas coisas, alguns gregos inventaram a argumentação. É uma narrativa mais estruturada, na qual se pode alegar o que se quiser como ponto de partida mas, daí em diante, as coisas têm de encaixar. Não vale ir inventando conforme dá jeito. Daqui surgiram imensas ideias acerca do que é feita a matéria, de como as coisas funcionam e de porque é que as mulheres são inferiores aos homens. Mas surgiram também coisas impressionantes, como a lógica de Aristóteles ou a geometria de Euclides. Tão impressionantes que até o cristianismo aproveitou esta abordagem, mas talvez também pelas conclusões acerca das mulheres. 

Durante séculos, teólogos dedicaram-se a detalhar argumentos rigorosos onde assentavam conclusões inabaláveis acerca do momento exacto em que Deus criou a Terra ou se o Espírito Santo provém apenas do Pai ou também do Filho. O problema era o raio das premissas. Assumindo uma coisa, concluía-se isto mas, assumindo outra, já se concluía aquilo e aquilo podia não dar jeito nenhum. Enquanto os filósofos gregos aceitavam o convívio de argumentos contraditórios como parte do jogo, uma religião precisa de organizar as coisas. A solução foi declarar heresia qualquer premissa inconveniente e complementar a argumentação com o extermínio sistemático de quem não concordasse. O resultado foi a fragmentação do cristianismo nas muitas variantes que hoje temos, trazendo-o de volta aonde estavam os gregos mas com o caminho lavado em sangue. 

O problema das premissas só se resolveu, já nos últimos séculos, com a solução para o problema de aferir a correspondência entre as narrativas e a realidade. Com as técnicas e tecnologias necessárias para medir, registar e interpretar os dados, passou a ser viável testar a generalidade das alegações. Foi a revolução que faltava para a ciência. Manteve-se a ideia original de procurar narrativas inteligíveis, se bem que a inteligibilidade tenha, por vezes, de ser sacrificada em favor da correspondência à realidade. Nem sempre a explicação mais fácil de entender é a mais correcta. Preservou-se também lógica rigorosa da argumentação, mas levando-a mais longe. Em vez do argumento isolado, uma linha de inferências a unir uma verdade presumida à sua conclusão inevitável, os argumentos passaram a fazer parte de árvores de possibilidades. Cada argumento é um ramo que une uma hipótese a consequências observáveis e cada hipótese é apenas uma entre várias alternativas. Assim, cobre-se as várias possibilidades sem ter de assumir nenhuma como verdadeira à partida. É o que se infere de cada hipótese que, confrontado com a experiência, determina que ramos descartar e que ramos aceitar como parte das melhores explicações. Estas, por sua vez, abrem novas árvores de possibilidades, continuando a expansão do conhecimento. É por isso que a ciência é a melhor forma de compreender a realidade. Porque junta as abordagens anteriores num processo optimizado para se corrigir e para progredir como nenhuma das outras consegue.


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