terça-feira, janeiro 13, 2015

Bem na alma do regime

Quando foi questionado sobre a prisão de José Sócrates, Cavaco Silva sublinhou, com a sua costumeira solenidade, que as instituições estavam “a funcionar com toda a normalidade”. A carga política desta declaração é evidente, sobretudo se lembrarmos o facto de Cavaco Silva não ter afirmado o mesmo a propósito do caso BPN, da compra dos submarinos, do caso Monte Branco, do conluio entre os serviços secretos e a maçonaria, do caso BES, do caso SEF, do caso Tecnoforma e por aí adiante.
Em torno destes casos, trava-se evidentemente, mesmo de forma surda, uma luta entre as classes dominantes de que a vingança política, a chantagem e a procura de vantagens são armas e desiderato. Uns casos escondem outros, ou colocam-nos na sombra. Basta ver como, em poucos meses, a fraude no BES apagou o caso do sucateiro Manuel Godinho, o escândalo do SEF tirou da primeira linha o BES e a prisão de Sócrates anulou o SEF. Ou como antes as patifarias de Duarte Lima apagaram o escândalo do BPN. Etc.
Mas a sucessão de denúncias — normalmente bem personificadas em figuras marcantes, atingindo ora um campo político ora outro — ajuda a criar na opinião pública a ideia de que, apesar de tudo, “a Justiça funciona”. A prisão de Sócrates, em particular, reavivou a ideia de que a Justiça “ataca todos por igual” e que uma “nova era”, como chegou a ser dito, se iniciou nesse capítulo.
Na verdade, é a imagem de um sistema apodrecido que se esbate. As denúncias para todos os gostos que vão surgindo têm sempre um efeito redutor sobre a realidade, alimentando a ideia de que cada um dos casos representa uma prevaricação particular, uma excepção à regra, ao cumprimento da lei, à seriedade, à boa moral. E é como tal que a Justiça os julga e os pune (quando pune): como excepções, como casos isolados, como “maçãs podres” de um pomar essencialmente são.
Há porém uma pergunta de ordem geral a fazer: que sistema social-económico-político-judicial é este que permite a um indivíduo receber 14 milhões de euros de brinde? ou fazer desaparecer 4.900 milhões, pagos depois pelo erário público? ou roubar um banco a partir de dentro e deixar para os contribuintes um buraco de 7.000 milhões? ou vender acções com 150% de lucro de um dia para o outro? ou arruinar uma empresa com dezenas de milhares de trabalhadores dando 900 milhões a um amigo?
Que papel tem esse sistema na gestação contínua de tantos “casos isolados” da mesma espécie, levados a cabo por indivíduos da mesma espécie, isto é, ligados às estruturas do poder económico e político?
Nenhum dos casos vindos a lume será julgado nestes termos, porque fazê-lo seria julgar os pilares em que assenta todo o edifício social.
A sucessão de “excepções” mostra, com efeito, que os casos trazidos a público são apenas a ponta de um iceberg cujo imenso volume permanece fora de vistas. Nessa área submersa pratica-se uma regra espartana: podes roubar, desde que não sejas descoberto. E é essa a condição de o sistema funcionar e se manter. Os casos trazidos a público e eventualmente julgados, e eventualmente condenados, são apenas reveladores ocasionais do alma do regime e do poder.