terça-feira, janeiro 13, 2015

Treta da semana: Impossível

Demonstrando mais uma vez a extensão do seu conhecimento científico, Orlando Braga argumenta que «A evolução darwinista é impossível quando é concebida como “evolução aleatória e não guiada”, porque se não existe informação prévia (se não existir uma condução do processo que pressupõe a existência de informação), as hipóteses de algo acontecer sem essa informação tornam a evolução darwinista impossível.»(1). Há aqui alguns detalhes que não estão inteiramente correctos. 

Em primeiro lugar, a evolução não é concebida como “evolução aleatória e não guiada”. Em biologia, o termo refere-se à variação da distribuição de características hereditárias numa população conforme novas gerações substituem as anteriores. O que se propõe ser mais ou menos aleatório são os mecanismos que influenciam a evolução de uma população. No caso da selecção artificial, a evolução é guiada pela acção propositada dos criadores de animais ou plantas. No caso da selecção natural, a evolução é guiada pelo efeito das características herdadas na probabilidade de reprodução de cada organismo. Noutros casos, o acaso pode ser muito importante. Quando um pequeno grupo de escaravelhos chega a uma ilha num tronco à deriva, muitas características da nova espécie de escaravelho que existirá nessa ilha uns milhões de anos mais tarde serão determinadas por acontecimentos fortuitos como cruzarem-se aqueles escaravelhos em vez dos outros que deambularam pelo areal sem encontrar parceiro. Com populações pequenas ou características sob fraca pressão selectiva o acaso é importante, mas com populações grandes e forte pressão selectiva este tende a diluir-se e é a tendência média que domina. 

Em segundo lugar, o que Braga diz ser impossível seria meramente improvável se fosse um acontecimento único. E nem isso é, devido ao número de repetições. Braga dá «como exemplo a procura do tesouro na ilha: ou temos informação prévia da área onde pode estar o tesouro, ou prosseguimos escavando a terra de forma aleatória (sem informação). No segundo caso, a probabilidade de encontrarmos o tesouro é muito baixa se a ilha for grande.» Isto depende de quantos formos. A probabilidade de uma dada formiga, algures em Portugal, encontrar o açucareiro que deixei aberto na tenda é muito baixa. Mas como há muitas formigas, a probabilidade de alguma o encontrar é muito alta. Passa-se o mesmo com as mutações benéficas. Individualmente, têm uma probabilidade baixa, mas a evolução é um processo que ocorre em populações e ao longo de muitas gerações. 

Finalmente, Braga alega que a evolução é impossível porque «não existe informação prévia» para se encontrar o tal tesouro. Mas a evolução não procura um tesouro ou qualquer alvo predeterminado. Em retrospectiva, sabemos que estes quatro mil milhões de anos de evolução fizeram uma de muitos milhões de linhagens desembocar no Homo sapiens. Mas é presunção crer que era esse o plano inicial e que a evolução andava à procura deste tesourinho deprimente. Para mais, a pesquisa não precisa guiar-se apenas por informação “prévia”, como um mapa do tesouro. Pode ser guiada por qualquer coisa que, a cada passo, indique se está “mais quente” ou “mais frio”. É o que faz a selecção natural. Se uma mutação for desfavorável tende a ser eliminada. Se for favorável tende a propagar-se pela população. É isto que, ou vai moldando a população num aperfeiçoamento contínuo de características que, a cada momento, conferem vantagens competitivas, ou então leva à sua extinção. Este último é, de longe, o desfecho mais comum. Mas isto nem tem uma direcção fixa nem tem um tesouro em mente e muito menos precisa de um mapa. Vai-se espalhando por todas as soluções de sucesso, dos vírus à baleia azul e a caldeirada toda que há pelo meio. 

Braga alega que também o teorema de Gödel demonstra que a “evolução darwinista” é impossível. Infelizmente, a sua explicação não esclarece nada: « um computador suficientemente complexo para simular o trabalho cerebral [...] não permite calcular, em um tempo t, o que ele (computador) será num tempo t+1». O teorema de Gödel mostra que qualquer sistema formal suficientemente expressivo admite proposições verdadeiras que não podem ser demonstradas a partir dos axiomas desse sistema formal. Isto é importante para alguns problemas lógicos, matemáticos ou de computação mas não tem nada que ver com a teoria da evolução. Nem é relevante para a formalização matemática da teoria nem é preciso os escaravelhos saberem que o teorema de Goodstein sobre sequências de números naturais não pode ser demonstrado na álgebra de Peano para que os mais camuflados se escapem melhor dos predadores. 

Braga conclui alegando que «Não se quer dizer que a teoria de Darwin seja falsa; o que se quer dizer é que é impossível.» A teoria de Darwin está, em alguns aspectos, ultrapassada. Talvez a teoria da evolução que temos hoje, que uniu a biologia molecular à genética de populações, um dia venha a ser substituída também. Até agora demonstrou ser, de longe, a melhor explicação para a origem das espécies mas nunca se sabe o que o futuro reserva. No entanto, não recomendo ao Orlando Braga que conte para já com o dinheiro do prémio Nobel. 

1- O. Braga, A evolução darwinista é impossível


DAQUI