quinta-feira, janeiro 15, 2015

Vejam lá se o reconhecem

Onda! Hoje toda a gente partilha caricaturas da edição especial desta Quarta-feira do Charlie Hebdo. E fazem muito bem. Olhar para os outros – sim, outros, essa moda do je suis Charli há-de passar – é quase sempre bom. Mas falta um grande quase. Quando olhamos para os outros e deixamos de olhar para nós próprios, estreitamos horizontes ao invés de alargá-los. E esquecemo-nos de quem somos, o que não é mesmo nada bom. Por tudo isto, e porque já há gente em número suficiente a partilhar o que toda a gente partilha, não me apetece ser mais um. Mas não prescindo de aqui partilhar uma caricatura. É da autoria do Rui Zink, chama-se “Manual do bom fascista (ou não)” e segue abaixo. Vejam lá se reconhecem o boneco. A seguir imaginem-no maravilhado ao descobrir que deixa de estar sozinho porque existe uma organização de outros bonecos iguais a ele que, para além de lhe fornecer os meios necessários para poder fazer “justiça” pelas próprias mãos, ainda lhe oferece o conforto de o fazer acreditar que tudo o que faça será ao serviço da “mãe Pátria” ou na qualidade de soldado de Deus. Creio que não necessitam de lhe pôr um turbante na cabeça para perceberem como o massacre do Charlie Hebdo tem servido para canalizar o medo e a intolerância que, distracção nossa, estes cromos continuam a não despertar.

DAQUI


Manual do bom fascista (ou não)

 1. O fascista nunca ofende. É sempre ofendido.

 2. O fascista coloca a honra acima de tudo. A dele.

 3. Excepção feita, por vezes, «ao meu Benfica».

4. O fascista tem sempre razão.

 5. O fascista tolera pretos, desde que saibam o seu lugar.

 6. E joguem bem.

 7. O fascista respeita as mulheres e só lhes bate quando estão a pedi-las.

 8. O fascista não gosta de ser chamado fascista. Acha que o retrato não lhe faz justiça.

 9. E a justiça é muito importante para o fascista. Ele não suporta injustiças.

 10. O fascista é sempre justo, mesmo quando reconhece que «exagerou um bocadinho».

11. O fascista não pensa. Ele é mais que a modos de que um homem de assão.

 12. O fascista é contra o acordo ortográfico. Pelo direito a continuar a escrever no verdadeiro portuguez de Tentúgal.

 13. O fascista não tem saudades de Salazar.

 14. Acha apenas é que Portugal precisava de um outro Salazar.

 15. Alguém que pusesse isto nos eixos. Ou no eixo.

 16. O fascista tem saudades de quando Portugal era Grande.

 17. Até porque «eles gostavam de nós».

18. E sabe que a descolonização foi muito mal feita.

 19. Agora vão lá para a terra deles.

 20. O fascista acha que os políticos são todos corruptos.

 21. E que isto só vai lá com uma grande mudança.

 22. E por ele ia tudo preso.

 23. E devíamos ter um governo a sério, que não se metesse em política.

 24. Como o nosso presidente, só que em mais firme.

 25. O fascista acha que temos de ser rigorosos.

 26. Indigna-o é que o «sô guarda» não tenha fechado os olhos.

 27. Afinal «foi só um instantinho».

28. E isto temos de ser uns para os outros.

 29. O fascista nunca leu um livro. Mas é contra o acordo ortográfico porque lhe disseram que é contra os brasileiros. E aí tudo bem.

 30. O fascista é nacionalista. Para ele Portugal é tudo. Excepto, talvez, o Sporting.

 31. O fascista agora já gosta do Pepe.

 32. O fascista acha que Portugal está a ser destruído. E por quem. (Pelos imigrantes.)

 33. O fascista sabe como se resolvia isto. «Era assim.»

34. O fascista não faz ameaças. Promete. «Um dia eu perco a cabeça e não respondo por mim.»

35. O fascista indigna-se que não lhe reconheçam o direito à diferença, como aos paneleiros e às gajas e aos [preencher ao gosto do freguês].

 36. O fascista é contra o direito à diferença.

 37. Mas escandaliza-se que não lhe reconheçam o direito à diferença.

 38. O fascista é contra a liberdade de expressão.

 39. Mas acha uma injustiça não o deixarem falar.

 40. O fascista é a favor da censura.

 41. Mas sente-se vítima da censura.

 42. O fascista se mandasse nisto ia tudo preso.

 43. O fascista não gosta de ser preso…

44. O fascista é contra a injustiça.

 45. Mas se ele mandasse ia tudo a eito.

 46. E fazia a folha a uns não sei quantos. Era uma limpeza.

 47. Muito gosta o fascista de usar a palavra «limpeza».

48. E, justiça lhe seja feita, nem sempre é para compensar.

 49. O fascista sabe avaliar qualquer situação em poucos segundos.

 50. E tem a solução para tudo.

 51. O fascista é assim a modos que uma espécie de Chuck Norris.

 52. Só que sem golpes de Karate amaricados e falando em bom português.

 53. O fascista é contra a democracia.

 54. Mas acha que «isto não é democracia».

55. O fascista acha que «as mulheres são todas umas putas».

56. Sobretudo as que não querem nada com ele.

 57. O fascista detesta que lhe chamem fascista.

 58. O fascista por vezes sabe que, ao negar que o é, está a ser manhoso.

 59. Outras vezes não sabe mesmo.

 60. Aí é preciso explicar-lhe, com muita paciência:

 61. «Ó Xico, tu achas que a culpa disto tudo é dos imigrantes, que deviam ir todos para a terra deles, que somos vítimas dum complô larilo-judaico, que os muçulmanos estão todos com 500 anos de atraso coitaditos, receias que percamos a nossa identidade milenar, achas que temos de andar todos armados, que a sociedade deve ser ‘viril’ e não ‘efeminada’, a palavra que mais usas é ‘detesto´… Então desculpa lá mas és fascista, homem!»

62. Ocasionalmente podemos acrescentar: «Ou isso ou um atraso de vida, filho....»

63. O fascista ao ouvir isso – ou ao ler estas linhas – enfurece-se. Mas como, se reagir sugere que ficou picado e enfiou a carapuça? É um dilema, até porque (ver alínea 34) ele não é menino de se ficar.

 64. Aqui, o fascista fica frustrado. E vocês não queiram ver o fascista frustrado. «És muita espertinho, vamos lá a ver se continuas assim depois de veres os dentes no chão.»

65. «Ou de levares um balázio.»

66. O fascista odeia o humor, porque odeia as coisas que não entende.

 67. É pela mesmíssima razão que o fascista odeia o mundo.

 68. Isso o fascista tem em comum com o humorista e o poeta.

 69. Diga-se de passagem. Também eles não entendem o mundo.

 70. Só que eles sabem que o amor é isso mesmo. Gostar do que não entendemos.

 71. E que o encontro é isso: tentar entender quem está do outro lado.

 72. E trazê-lo para o nosso lado.

 73. Ou não.