quinta-feira, fevereiro 05, 2015

Não é por ser científico...

Na semana passada, o David Marçal esteve no “A Tarde é Sua” para debater homeopatia com José dos Santos Lopes, o presidente da Associação Portuguesa de Homeopatia (1). É difícil debater naquele formato, com interrupções constantes e sem tempo para explicar ou desmontar adequadamente alegações falsas, mas, tendo em conta as dificuldades, acho que o David se safou bem. Só que penso que há uma forma melhor de abordar estas coisas. 

O David começou por afirmar que «o que eu discuto é simplesmente se a homeopatia tem uma fundamentação científica ou não» e, alegando que não tem, afirmou então que o fundamento científico são «as provas experimentais, reprodutíveis e verificáveis por grupos de investigação independentes». Apesar de o David ter razão, esta não é a abordagem ideal. Primeiro, quando restringe a discussão à ciência expõe-se à alegação de que a ciência não é tudo e não explica tudo. O que é verdade mas é irrelevante porque a ciência continua a ser o melhor método para decidir se afirmações correspondem ou não à realidade e é precisamente isso que está em causa em coisas como a homeopatia. Mas o pior é que, para a maioria das pessoas, o argumento do David parece ser um argumento falacioso de autoridade porque não é claro que só a ciência possa estipular como se avalia a homeopatia ou outra treta qualquer. 

Eu proponho que se pense nisto ao contrário. Não é por ser científica que uma investigação é mais legítima. É por ser o mais rigorosa e fiável que conseguirmos que merece o rótulo de “científica”. Mas não é o rótulo que importa. O que importa é que a forma como se aborda o problema seja adequada. No caso das doenças e terapias, importa ter em conta a complexidade e diversidade das pessoas e que as doenças, e o seu tratamento, sofrem influências de muitos factores como genética, alimentação, repouso, stress e assim por diante. Portanto, se a pessoa que tomou um medicamento se curou mais depressa do que a outra que não o tomou, tanto pode ter sido pelo medicamento como por outra coisa qualquer. Mesmo testando o medicamento num grupo de pessoas de forma controlada há o risco de deixar escapar algum factor importante que afecte os resultados. Idade, peso, horas de sono, muita coisa pode ter influência. Por isso, o que precisamos é de considerar o padrão que surge quando os testes são repetidos por investigadores diferentes, de forma cuidadosa e sistemática. Se o medicamento é eficaz, nesse padrão será visível uma tendência para que se cure mais depressa quem o tomar. Não será em todos os casos, pois há mais factores envolvidos, mas haverá uma tendência tão mais saliente quanto mais eficaz for o tratamento. Por outro lado, se o medicamento não for eficaz, iremos à mesma obter alguns resultados positivos. Mas serão esporádicos, pontuais, e apenas dentro do que se espera pela imprevisibilidade devida aos outros factores, muitos dos quais não podemos controlar. É por isto que é importante considerar o padrão todo, todos os resultados, todos os estudos conforme a sua qualidade, em vez de escolher uns como exemplo. Haverá sempre exemplos positivos ou negativos, conforme se queira escolher. 

Isto é exactamente o que o David referiu como «provas experimentais, reprodutíveis e verificáveis por grupos de investigação independentes». Só que não se apresenta como uma regra arbitrária e autoritária que é assim porque a ciência manda. Nem é preciso dizer que é ciência, até porque o rótulo não importa. Assim, deixa de parecer um argumento de autoridade e deixa de poder ser falaciosamente atacado com a tal afirmação de que a ciência não é tudo. O que importa é que a natureza do problema de averiguar se um medicamento é eficaz obriga a experimentar várias vezes, com vários grupos, de várias maneiras e de forma sistemática para se poder tirar uma conclusão fiável do conjunto total de resultados. 

O mesmo problema surge no artigo que o David escreveu com Carlos Fiolhais, no Público. Por exemplo, «No caso das ciências médicas, o padrão são revisões sistemáticas da literatura, que de um modo transparente levam em conta todos os ensaios clínicos sobre um assunto. [...] é isso a medicina baseada na ciência» (2). Isto é verdade e é óbvio para quem perceba de investigação médica. Mas, por não explicar o porquê, para a generalidade das pessoas parece um mero argumento de autoridade, como se fosse assim só porque os cientistas querem. 

Em geral, tretas como a homeopatia são defendidas alegando que a ciência não é dona de tudo e escolhendo alguns exemplos a dedo. Explicando porque é que o problema tem de ser abordado como a ciência o faz evitamos facilmente estes truques. Quando fui testemunha no julgamento do Luís Grave Rodrigues, que foi processado por ter criticado uma farmácia homeopática, a advogada da queixosa vinha, previsivalmente, preparada com duas ou três referências a estudos que “comprovavam” a eficácia da homeopatia. Pediu-me então para explicar como poderia haver aqueles resultados se a homeopatia não funcionasse. Infelizmente para ela, eu tinha acabado de explicar aos juízes porque é que não se pode escolher apenas alguns estudos a dedo e se tem de considerar o padrão geral dos resultados, esse manifestamente desfavorável à homeopatia. Por isso nem tive de responder à pergunta, considerando os juízes que o assunto já estava esclarecido. Mas foi crucial explicar que era a natureza do problema que obrigava que assim fosse. Afirmar simplesmente que tem de ser assim para ser científico é muito pouco satisfatório para quem não perceba porquê. 

1- tvi, A Tarde é Sua: medicamentos homeopáticos, sim ou não?
2- Público, O Prof. Mambo e Schrödinger
3- Processado.


DAQUI