sexta-feira, março 27, 2015

Manual dos espiões do SIS prevê escutas ilegais, vigilâncias e pagamento a fontes

Nada disto está previsto na lei mas consta das 222 páginas do Manual de Procedimentos do SIS, a que o i teve acesso

Não estão previstas na lei mas fazem parte do manual que define as regras dos agentes das secretas. Um oficial de informações pode obter notícias através da “intercepção das telecomunicações” (escutas ambientais ou intercepção de dados através de meios electrónicos), vigiar pessoas que não são suspeitas em qualquer processo-crime e pagar a fontes por informações que, em muitos casos, deveriam estar cobertas por sigilo. Tudo isto está descrito nas 222 páginas do Manual de Procedimentos do Serviço de Informações de Segurança (SIS), a que o i teve acesso, e cuja autenticidade confirmou junto de fontes dos serviços de informações.
O i questionou Júlio Pereira, secretário-geral do Serviço de Informações da República Portuguesa (SIRP), sobre os procedimentos que constam do manual, e sobre o facto de serem contrários ao que dita a lei, mas não obteve qualquer resposta.
O manual que entrou em vigor em 2006 começa por um glossário técnico que descreve os termos mais ou menos “encriptados” com que um espião terá de conviver. Aqui se descreve de que formas um agente dos serviços de informações pode obter notícias. Não só através de fontes abertas e documentos não classificados (através de simples pesquisas na internet), mas também através de imagens, de fontes humanas, da intercepção de sistemas de comunicações e de sistemas electrónicos, da “intercepção de sinais electromagnéticos” (como radares) ou através da intercepção de telecomunicações.
Fontes dos serviços contactadas pelo i explicam que, no caso da intercepção das telecomunicações, não estão em causa escutas como as que são feitas pela Polícia Judiciária (em que um pedido do juiz tem de ser enviado à operadora telefónica), mas as chamadas escutas ilegais: escutas ambientais, feitas por intermédio de microfones, ou de dispositivos instalados nos telemóveis. Outras práticas de intercepção podem passar por estratégias como a instalação de programas que permitem extrair os dados de um email ou de um computador.
No capítulo dedicado aos procedimentos de pesquisa humana explica-se em detalhe como os agentes devem captar informadores e contactos, nalguns casos relacionados com “instituições” e “empresas”. Aqui devem ser tidos em conta os acessos do alvo, o seu perfil, carácter, vulnerabilidades e motivação.
Captar e “controlar” uma fonte humana é essencial na estratégia dos serviços. A ponto de o manual não só deixar em aberto a possibilidade de pagamentos a estas fontes como de os recomendar. “Procurar que a motivação principal seja monetária, pois o controlo será mais fácil, efectivo e duradouro”, realça o documento. Noutra página, o manual reforça que “a gestão de fontes humanas é fundamental e dela depende a obtenção das notícias”, não devendo por isso “ser encarada como uma mera troca de conhecimentos por favores ou dinheiro”.
E quanto é que se paga? É variável. Deve evitar-se que “o montante pago levante suspeitas a terceiros” e tomar-se em consideração “os hábitos de consumo” e “o tipo de vida” da fonte, realça o documento. Todas estas despesas são depois aprovadas por superiores.
Nenhum destes procedimentos está previsto na lei. A Lei Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa é feita “ao contrário”. Ou seja, não diz o que um agente das secretas pode fazer, mas apenas o que não pode fazer: “Os funcionários ou agentes, civis ou militares, dos serviços de informações previstos na presente lei não podem exercer poderes, praticar actos ou desenvolver actividades do âmbito ou competência específica dos tribunais ou das entidades com funções policiais.” Não estando aqui previsto nada em específico, as regras estabelecem-se através da lei penal. E a esse nível as actividades elencadas no manual de procedimentos do SIS, e aqui descritas, seriam ilegais. Até as vigilâncias são apenas permitidas a órgãos de polícia criminal. Ao serem feitas pelos serviços – e sem autorização para tal – poderá estar em causa a violação de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Acesso a dados sigilosos E como devem os espiões elaborar relatórios sobre os seus alvos? Não só através de pesquisas no Google ou em bases de dados; podem também recorrer a forças de segurança nacionais e estrangeiras, a serviços congéneres e a uma lista de entidades públicas, como as Finanças, a EDP, a PT ou a TV Cabo, bancos, seguradoras e operadoras de telecomunicações móveis. Todos estes dados deveriam estar protegidos por lei: funcionários das Finanças ou das operadoras, por exemplo, estão vinculados ao dever de sigilo.

Este capítulo vai ao encontro dos argumentos usados por Jorge Silva Carvalho nacontestação enviada às Varas Criminais de Lisboa – onde o julgamento do chamado Caso das Secretas tem início agendado para 16 de Abril. No documento, o ex-director do SIED acusado de corrupção passiva, violação do segredo de Estado, abuso de poder e acesso ilegítimo a dados pessoais confessa que acedeu à facturação detalhada de Nuno Simas, então jornalista do “Público”, através de uma funcionária da Optimus, mas diz que o fez porque tal prática respeitava “o modus operandi dos serviços secretos portugueses”. A defesa do ex-espião da secreta externa alega ter sido criado “um edifício legislativo que aponta num sentido e uma prática que aponta em sentido contrário”.