segunda-feira, abril 27, 2015

O LOBO A GUARDAR A CAPOEIRA

No meio das entrevistas de rua realizadas durante a manifestação do 25 de Abril em Lisboa, e nas quais o auricular da jornalista a incitava a concentrar as perguntas na assinatura de uma coligação contra o 25 de Abril há muito anunciada, surgiu um cavalheiro cuja imagem não me é muito familiar, por culpa minha, confesso. Convidado, como todos os outros, a comentar a tão excitante coligação, decidida a renascer dos escombros para servir os restos do país ao insaciável mercado, o cavalheiro escusou-se polidamente: aos partidos o que é dos partidos, aos sindicatos o que é dos sindicatos, sábia e prudente opinião dentro do consagrado estilo a minha política é o trabalho e não tenho nada a ver com o resto, não me comprometam.

Ainda assim, e porque alguma coisa me escapara antes, deduzi que o cavalheiro era sindicalista. Pelo andar da conversa não tardei a perceber que era mais do que isso, muito mais, aliás, porque é o chefe de uma central sindical conhecida por UGT.

Como estávamos no 25 de Abril, dia propenso a memórias e evocações, revi em flashes curtos um pouco da história dessa entidade, desde os tempos da “Carta Aberta” pela “liberdade sindical”, ainda na pré-história deste grupo cujo nascimento teve o glorioso patrocínio do senhor embaixador Carlucci e da central sindical norte-americana, a AFL-CIO, que em boa verdade deveria escrever-se AFL-CIA-Mafia, mas isso são contos que não vêm ao caso. Lembro-me também de fotografias publicadas nesses tempos testemunhando o nascimento da criatura, selado depois de negociações segredadas nos Passos Perdidos, em plena Assembleia da República, entre destacados dirigentes do PS e do PSD. Enfim, outros tempos, velharias da História que as sensibilidades do 25 de Abril trazem à superfície; mas os tempos são outros, os da modernidade, há que nos adaptarmos à realidade. Tanto mais que o cavalheiro entrevistado, e logo em plena manifestação do 25 de Abril, sentenciara aos partidos o que é dos partidos, aos sindicatos o que é dos sindicatos.

Como o auricular da jornalista pé de microfone insistisse na previsão do futuro dos trabalhadores à luz da assinatura da nefanda coligação, o cavalheiro acabou por avançar um pouco sobre o tema. Repetiu várias vezes a palavra da moda, “compromisso”, e nesse contexto manifestou a esperança no que de bom pode trazer aos trabalhadores um compromisso – e juro que a expressão foi esta – “dentro do arco da governabilidade”.

Como sabem, a expressão “arco da governabilidade”, por sinal usada de preferência pelo dr. Portas, é um sinónimo de arco da governação, arco da austeridade, arco da exploração, arco censório, da trapaça, centrão… Enfim designações que definem a democracia tal como hoje se pratica, o um-dó-li-tá entre PS, PSD e CDS, quando não todos juntos e ao molho, seja o que Deus quiser…

Pois bem, o cavalheiro, aquele chefe de uma central sindical aposta todas as suas esperanças, e as dos trabalhadores, pois é a isso que se dedica, no compromisso dentro do tal arco, no que em nada difere da arqueológica figura que ainda se arrasta dentro do palácio de Belém. Ora sabendo nós o que significa a coligação de trastes agora renovada e, por outro lado – neste caso o lado é o mesmo – o conteúdo do programa eleitoral produzido para o PS por encartados tecnocratas neoliberais, prometendo mais “flexibilização do mercado de trabalho”, alguma coisa que nos diz que, apesar de vivermos em modernidade, a tal UGT continua com os tiques de nascença, resultantes de um lamentável exercício de manipulação genética suprimindo o alelo associado aos trabalhadores.

Ao-fim-e-ao-cabo o que o ilustre cavalheiro nos revelou no invernoso 25 de Abril que tivemos foi um sintoma da prolongada agonia dessa criatura contra natura, cujo comportamento é tão aberrante como deixar um lobo a guardar a capoeira.