Na tarde de 18 de Dezembro de 2012 a minha mulher, Rafael Marques e eu
fomos ao cinema num centro comercial em Lisboa. Quando regressámos ao carro,
estacionado no primeiro piso do parque subterrâneo, um indivíduo tentou
subitamente e com desconcertante nervo forçar a entrada no banco de trás onde
Rafael Marques já estava sentado. O episódio foi muito rápido. Durou alguns
segundos, mas os três reagimos com grande vigor e o homem, jovem e musculado,
que já tinha conseguido meter meio corpo no interior do carro, acabou por se
escapulir com rapidez surpreendente, desaparecendo entre as colunas e os carros
do estacionamento.
O alvo do que quer que se tenha passado foi, claramente, o Rafael. A
minha mulher e eu teríamos sido danos colaterais que estávamos no local errado,
ou certo, à hora certa, ou errada. Comuniquei às autoridades o que, para todos
nós que o vivemos, configurou um atentado. Na sequência da minha queixa, Rafael
Marques foi posto sob a vigilância de várias polícias especiais do nosso país.
Na altura decidimos não mediatizar o episódio, não só porque qualquer de nós
abomina o tabloidismo que seria inevitável, mas, sobretudo, porque achámos que
a segurança de Rafael Marques em Portugal seria mais bem assegurada com as
autoridades a trabalhar sem pressões mediáticas. A estratégia resultou. O
Rafael teve, e espero que continue a ter, um acompanhamento discreto mas claramente
eficaz sempre que vem a Portugal. Chegou a altura de contar estes detalhes
porque Rafael Marques está, novamente, no meio de uma emboscada. O suplício
jurídico a que está a ser sujeito em Angola, num campo minado de traições e
embustes feitos a coberto de uma lei adaptável aos moldes do ditame político,
está a ter grande destaque na imprensa internacional e a preocupar grupos que
zelam pelos direitos humanos e pela liberdade de expressão na Europa e na
América. Infelizmente em Portugal, com a excepção deste jornal e dos corajosos
despachos que a Agência Lusa tem mantido sobre a tragédia de Rafael Marques, os
relatos noticiosos, quando existem, têm sido extremamente cautelosos, numa
estratégia óbvia para não melindrar o capital angolano que hoje controla a
quase totalidade da imprensa diária em Portugal e tem influência determinante
na radiodifusão privada, incluindo televisões.
Rafael Marques disse-me uma vez que muita da sua capacidade de
intervenção advinha da sua exposição no Jornal
das 9 da SIC Notícias. Mas as suas denúncias sempre causaram grande
incómodo em Portugal. O Governo justifica a complacência para com Angola com os
postos de trabalho dos portugueses emigrados. O mesmo argumento usado no
passado para manter as mais cordiais relações com o apartheid de Pretória, ostracizando o ANC por causa dos imigrantes na África do
Sul. Foi por isso que as relações entre Lisboa e o ANC sempre foram difíceis.
Com o regime do MPLA e o poderio financeiro angolano, a atitude governamental e
empresarial é a mesma dos tempos em que Mandela estava preso em Robben Island;
não se pode ofender os anfitriões de tanto posto de trabalho, sejam eles quem
forem.
No decurso da minha actividade jornalística, fui admoestado dos
melindres que causavam as declarações que Rafael Marques fazia nos noticiários
da minha responsabilidade. Numa das comunicações que recebi por escrito na
sequência de um trabalho sobre os Diamantes
de Sangue chegaram a tentar exigir um exame prévio dos meus entrevistados.
Noutro episódio em que Rafael Marques denunciou no Jornal das 9 o conúbio entre o regime do MPLA e a revista Rumo, que a Impresa de Pinto Balsemão editava em Luanda, fui advertido dos
problemas causados a “colegas” que estavam a trabalhar em Angola. Foi neste
ambiente que a SIC, por razões que a razão há-de sempre desconhecer, aceitou
exibir em prime time, no seu
canal principal, a extraordinária “entrevista” de Henrique Cymerman a José
Eduardo dos Santos. Actualmente, a SIC transmite nos noticiários longos
panegíricos sobre os paraísos angolanos e adoptou como slogan o angolaníssimo “Estamos Juntos”, saudação decalcada do cumprimento dos
guerrilheiros angolanos, ironicamente, muito popular entre a UNITA. Até ao
cancelamento do meu contrato de trabalho, continuei a dar voz a Rafael Marques
e a divulgar as suas denúncias, fossem elas do saque dos diamantes das Lundas,
do regime de escravatura dos camponeses com os piores índices de expectativa de
vida e de mortalidade infantil do mundo, à bestialidade do tratamento de prisioneiros
nos cárceres de Angola. Prisões com que Rafael Marques está agora ameaçado,
depois de ter caído no embuste de aceitar um acordo judicial com os seus
algozes para, de surpresa, o Tribunal e a Procuradoria abjurarem tudo,
fustigando-o com uma dura e desproporcionada pena, ignorando o entendimento
lavrado por escrito em papel timbrado do Ministério da Justiça da República de
Angola, validado por um juiz, que dava por findo o processo dos Diamantes de Sangue.
O ambiente em Angola é selvático. Rafael Marques tem tentado opor-se à
criminalidade institucionalizada que faz o Departamento de Estado de Washington
descrever Angola como um local de eleição para a prática de “crimes de
oportunidade”. Mas se oportunidade para o crime existe em Angola, Portugal, no Governo,
nos media e na alta
finança, contribui para que essa oportunidade seja aproveitada por quem a
história tornou numa elite realmente desalmada. Houve alguém que durante o
estalinismo disse que as indecências da história não toleram testemunhas.
Rafael Marques tem sido a principal testemunha do que de mais indecente
se passa em Angola e, nesse processo, do que aqui em Portugal também não é
decente. É por isso que o silenciam. Cá e lá.
Sem comentários:
Enviar um comentário