quarta-feira, junho 03, 2015

Crimes de oportunidade

Na tarde de 18 de Dezembro de 2012 a minha mulher, Rafael Marques e eu fomos ao cinema num centro comercial em Lisboa. Quando regressámos ao carro, estacionado no primeiro piso do parque subterrâneo, um indivíduo tentou subitamente e com desconcertante nervo forçar a entrada no banco de trás onde Rafael Marques já estava sentado. O episódio foi muito rápido. Durou alguns segundos, mas os três reagimos com grande vigor e o homem, jovem e musculado, que já tinha conseguido meter meio corpo no interior do carro, acabou por se escapulir com rapidez surpreendente, desaparecendo entre as colunas e os carros do estacionamento.
O alvo do que quer que se tenha passado foi, claramente, o Rafael. A minha mulher e eu teríamos sido danos colaterais que estávamos no local errado, ou certo, à hora certa, ou errada. Comuniquei às autoridades o que, para todos nós que o vivemos, configurou um atentado. Na sequência da minha queixa, Rafael Marques foi posto sob a vigilância de várias polícias especiais do nosso país. Na altura decidimos não mediatizar o episódio, não só porque qualquer de nós abomina o tabloidismo que seria inevitável, mas, sobretudo, porque achámos que a segurança de Rafael Marques em Portugal seria mais bem assegurada com as autoridades a trabalhar sem pressões mediáticas. A estratégia resultou. O Rafael teve, e espero que continue a ter, um acompanhamento discreto mas claramente eficaz sempre que vem a Portugal. Chegou a altura de contar estes detalhes porque Rafael Marques está, novamente, no meio de uma emboscada. O suplício jurídico a que está a ser sujeito em Angola, num campo minado de traições e embustes feitos a coberto de uma lei adaptável aos moldes do ditame político, está a ter grande destaque na imprensa internacional e a preocupar grupos que zelam pelos direitos humanos e pela liberdade de expressão na Europa e na América. Infelizmente em Portugal, com a excepção deste jornal e dos corajosos despachos que a Agência Lusa tem mantido sobre a tragédia de Rafael Marques, os relatos noticiosos, quando existem, têm sido extremamente cautelosos, numa estratégia óbvia para não melindrar o capital angolano que hoje controla a quase totalidade da imprensa diária em Portugal e tem influência determinante na radiodifusão privada, incluindo televisões.
Rafael Marques disse-me uma vez que muita da sua capacidade de intervenção advinha da sua exposição no Jornal das 9 da SIC Notícias. Mas as suas denúncias sempre causaram grande incómodo em Portugal. O Governo justifica a complacência para com Angola com os postos de trabalho dos portugueses emigrados. O mesmo argumento usado no passado para manter as mais cordiais relações com o apartheid de Pretória, ostracizando o ANC por causa dos imigrantes na África do Sul. Foi por isso que as relações entre Lisboa e o ANC sempre foram difíceis. Com o regime do MPLA e o poderio financeiro angolano, a atitude governamental e empresarial é a mesma dos tempos em que Mandela estava preso em Robben Island; não se pode ofender os anfitriões de tanto posto de trabalho, sejam eles quem forem.
No decurso da minha actividade jornalística, fui admoestado dos melindres que causavam as declarações que Rafael Marques fazia nos noticiários da minha responsabilidade. Numa das comunicações que recebi por escrito na sequência de um trabalho sobre os Diamantes de Sangue chegaram a tentar exigir um exame prévio dos meus entrevistados. Noutro episódio em que Rafael Marques denunciou no Jornal das 9 o conúbio entre o regime do MPLA e a revista Rumo, que a Impresa de Pinto Balsemão editava em Luanda, fui advertido dos problemas causados a “colegas” que estavam a trabalhar em Angola. Foi neste ambiente que a SIC, por razões que a razão há-de sempre desconhecer, aceitou exibir em prime time, no seu canal principal, a extraordinária “entrevista” de Henrique Cymerman a José Eduardo dos Santos. Actualmente, a SIC transmite nos noticiários longos panegíricos sobre os paraísos angolanos e adoptou como slogan o angolaníssimo “Estamos Juntos”, saudação decalcada do cumprimento dos guerrilheiros angolanos, ironicamente, muito popular entre a UNITA. Até ao cancelamento do meu contrato de trabalho, continuei a dar voz a Rafael Marques e a divulgar as suas denúncias, fossem elas do saque dos diamantes das Lundas, do regime de escravatura dos camponeses com os piores índices de expectativa de vida e de mortalidade infantil do mundo, à bestialidade do tratamento de prisioneiros nos cárceres de Angola. Prisões com que Rafael Marques está agora ameaçado, depois de ter caído no embuste de aceitar um acordo judicial com os seus algozes para, de surpresa, o Tribunal e a Procuradoria abjurarem tudo, fustigando-o com uma dura e desproporcionada pena, ignorando o entendimento lavrado por escrito em papel timbrado do Ministério da Justiça da República de Angola, validado por um juiz, que dava por findo o processo dos Diamantes de Sangue.
O ambiente em Angola é selvático. Rafael Marques tem tentado opor-se à criminalidade institucionalizada que faz o Departamento de Estado de Washington descrever Angola como um local de eleição para a prática de “crimes de oportunidade”. Mas se oportunidade para o crime existe em Angola, Portugal, no Governo, nos media e na alta finança, contribui para que essa oportunidade seja aproveitada por quem a história tornou numa elite realmente desalmada. Houve alguém que durante o estalinismo disse que as indecências da história não toleram testemunhas.
Rafael Marques tem sido a principal testemunha do que de mais indecente se passa em Angola e, nesse processo, do que aqui em Portugal também não é decente. É por isso que o silenciam. Cá e lá.

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