segunda-feira, junho 22, 2015

Treta da semana: Não percebe

Gabriel Silva escreveu no Blasfémias que «Não se percebe» porque há tantas greves no Metro de Lisboa. Já contam 47 em cinco anos. «Mas se uma empresa é assim tão má que tenha justificado em 5 anos tanta greve, não será mesmo melhor mudar de patrões? Não deveriam as 46 greves anteriores serem um poderoso argumento para os trabalhadores querem a concessão a outros gestores?» (1) Sim. É razoável assumir que o objectivo da greve é mudar algo que está mal na gestão. Mas percebe-se que a greve seja contra a concessão da exploração a privados se se perceber que o problema está precisamente nesse tipo de gestão. 

Em muitos casos, vender bens ou serviços úteis é lucrativo. Quando o útil e o rentável andam de mãos dadas, a iniciativa privada é a melhor forma de distribuir o esforço e os proveitos. Basta deixar cada um decidir por si como quer aplicar o seu dinheiro, seja a adquirir o que deseja seja a tentar ficar mais rico, e a coisa resolve-se pelo melhor. É o caso de barbearias, fábricas de bolachas, cinemas e lojas de pronto a vestir, por exemplo. Mas, noutros casos – tendencialmente nas coisas mais importantes – acontece o contrário e o lucro é avesso à utilidade. Hospitais, escolas, esquadras de polícia e tribunais são alguns exemplos de actividades nas quais ter o lucro como principal objectivo degradaria muito a utilidade do serviço. 

O metropolitano de Lisboa é um serviço deste tipo. Beneficia muito mais gente do que apenas quem paga bilhetes. Beneficia estabelecimentos aonde clientes se desloquem de Metro, empresas com empregados que tenham de atravessar Lisboa para trabalhar e toda a gente que se desloque em Lisboa, mesmo que de autocarro ou de automóvel. Além disso, este benefício todo não pode ser financiado apenas pelos bilhetes de quem viaja de Metro. Não chega e, se se aumenta o preço dos bilhetes, menos gente anda de Metro e lá se vai o benefício. Tal como escolas, esquadras e hospitais, os sistemas de transportes colectivos devem ser pagos principalmente pelos impostos para que o custo possa ser melhor repartido, e de forma mais justa, por todos aqueles que beneficiam indirectamente destes serviços e infraestrutura. 

No entanto, nestes últimos anos o Metro de Lisboa tem sido gerido como se fosse uma loja de roupa ou um salão de jogos, dando primazia à diferença entre o dinheiro que entra e o que sai. Isto é mau para todos e só se agrava pela concessão da exploração comercial a privados. É importante perceber que grande parte da despesa, incluindo juros das dívidas contraídas para a construção das linhas, obras e até a manutenção dos comboios, continua a cargo do Estado. Aos privados caberá a tarefa de, em regime de exclusividade, cobrar bilhetes, gerir os trabalhadores e meter a diferença ao bolso. Assume-se que o Metro funcionará melhor se o objectivo do gestor for maximizar o lucro dos accionistas em vez optimizar o transporte de pessoas mas esta premissa é muito duvidosa. 

É claro que as greves do Metro não se devem somente – nem principalmente – ao interesse público. Há outros factores importantes, desde a influência da CGTP aos receios dos trabalhadores, que serão as primeiras vítimas da conversão deste serviço público em negócio privado. Mas, em todo o caso, o problema fundamental é o de que a empresa privada, visando o lucro dos accionistas, é muito diferente da empresa pública criada para prestar um serviço à população. O transtorno causado por cada greve do Metro devia tornar claro para todos de que lado da divisória esta empresa deveria estar. 

Infelizmente, muita gente partilha a perplexidade do Gabriel Silva e não percebe esta diferença. Julgam que o lucro é o único critério para avaliar uma empresa. Mas isso só serve para empresas que não façam nada de essencial. Essas é que podem ficar nas mãos de privados livres de decidir como as querem gerir e de as encerrar se não derem lucro. Com serviços importantes não se pode fazer o mesmo, e isto é um factor importante na atractividade de empresas como a TAP, a Carris ou o Metro. Os investidores privados sabem que, mesmo que não consigam tirar dividendos dessas empresas abandonando a sua missão original e orientando-as para o lucro, se a coisa der para o torto o Estado terá de comprar de volta as empresas ou as concessões que vendeu porque não são empresas que se possa deixar falir. Não é difícil de perceber porque é que os trabalhadores não querem que a empresa fique a cargo de quem até pode lucrar afundando-a. Nós também não devíamos estar satisfeitos com estas privatizações. 

1- Gabriel Silva, Não se percebe


DAQUI

Sem comentários: