segunda-feira, novembro 21, 2005

FATALIDADE ECONÓMICA E CAPACIDADE POLÍTICA

Todos os que conhecem um pouco de Proudhon sabem que a sua última obra, aquela que ele acabará de ditar no leito de morte, se intitula “Da Capacidade Política das Classes Operárias”. Este testamento intelectual e político é célebre com justeza, não somente porque apresentava o resumo do pensamento de Proudhon numa forma mais compacta e sintética que de costume, mas mais ainda porque exprimia um pensar operário autónomo. É deste modo que os seus contemporâneos o compreenderam e o leram. Edouard Bernstein e Jaurès consideravam no princípio do século seguinte este livro como emblemático do pensamento proudhoniano e duma forma de pensar político anti-autoritário no socialismo.
É de ter em conta para nós neste final de século que “capacidade política” é o estrito contrário de “fatalismo económico”. Encontramos a oposição do político e do económico, mas sobretudo o da fatalidade e da capacidade. O contexto contemporâneo deste fim de século vinte é percebido sob a forma duma crise. Podemos falar também duma mudança das referências e dos paradigmas sob os golpes e as críticas dum discurso “neo-liberal” que toma a sua vingança na marginalização durante os dois primeiros terços deste século pondo em causa os esquemas de pensar e de acção política e económica adquiridos após a crise de 1929 e da reconstrução do após-guerra. O resultado é antes de tudo uma confirmação da primazia do económico sobre o político pois que e ainda por cima os problemas económicos aparecem como sendo os mais urgentes e os mais massivos. Ma s não reside ainda a novidade pois que podemos dizer que o económico domina largamente o discurso político desde o século XIX, do mesmo modo nos liberais que no socialismo. O problema é que esta dominação da preocupação económica faz-se sob o signo duma análise neo-liberal que amplifica a crise e a rejeição do político, precisamente porque o político se pensa em termos de vontade e de capacidade de agir, de se organizar. O neo-liberalimo do qual Hayek é o teórico mais inteligente, advoga por uma incapacidade de querer a ordem social e uma desqualificação das decisões e das vontades políticas face ao mercado que se deve auto regular espontaneamente e domar livremente a ordem social o mais satisfatoriamente possível. Se Hayek não acredita numa ordem natural e invariável das coisas como no século XVIII e se admite portanto que esta ordem é histórica e que pode evoluir e modificar-se, pensa que não pode ser sob o golpe de vontade política do Estado. Retomando a fórmula de Ferguson, o teórico inglês do século XVIII que fez a história da “sociedade civil”, Hayek diz de novo que os fenómenos sociais “são o resultado da acção humana mas não da intervenção humana”. Desta distinção entre acção e intervenção resulta uma desqualificação da vontade humana, não na vida e nas decisões individuais, mas na organização e na orientação da vida colectiva. Resulta na nossa sociedade neste fim de século um sentimento de fatalidade ou de necessidade diante das modificações onde as perturbações sociais exigidas ou impostas do exterior e que parecem ser por uma força das coisas escapando a toda a vontade humana bem que seja o resultado das múltiplas actividades humanas.
Neste contexto, Proudhon pode ajudar-nos a reflectir, quando fala de “capacidade política”ele que respondia precisamente a um pedido dos operários de Rouen em 1864 e que redigiu o seu último livro nesta ocasião? Numa releitura parece que neste livro a noção de “capacidade política” tem um sentido rico. Não nos devemos só agarrar no sentido imediato e estreitamente político de capacidade legal ou eleitoral que reenvia à prática censitária da Monarquia de Julho. A capacidade política quer evidentemente designar a capacidade de participar na vida política sob a forma, aliás única e exclusiva, da participação nas eleições legislativas. Mas o termo tem um sentido bem mais alargado, fazendo referência à ideia de “capacidade real”, quer dizer à questão de saber o que podem fazer os homens na sociedade e sobre a sociedade. Como do mais pequeno grupo ao maior (Estado), os homens podem ter uma tomada de posição sobre a sua existência social (ou o seu destino) de outro modo que por uma adaptação individual a circunstâncias económicas percebidas como sendo totalmente exteriores e sem prejuízo, do mesmo modo que sobre o plano colectivo. Neste sentido a “capacidade política” é, pelo menos numa primeira abordagem, uma oposição à posição de Hayek, ou se quisermos o modelo tipo da posição “construtivista” que este último denuncia com o maior vigor. Falar da capacidade política da classe operária em 1864 como o faz Proudhon, é recusar a “ordem espontânea” das coisas e apelar aos homens para se agruparem e a agirem politicamente, e não somente em termos sociais, por modificar a ordem da sociedade. Hayek poderia aceitar esta acção puramente social duma classe operária organizada na condição que a ordem do mercado não seja posta em causa e que a acção humana tenha principalmente lugar no quadro da sociedade civil e sem intervenção regulamentar e autoritária do Estado. Fica que a ideia da capacidade política fazendo apelo à acção humana, e mesmo se ela é consciente que a intervenção humana não é totalmente poderosa sobre a organização da sociedades, implica a ideia duma intenção consciente, ou pelo menos tão consciente que possível, da organização desejada da sociedade. Dito de outro modo, a sociedade civil não se organiza espontaneamente da melhor forma e há lugar para uma intervenção política e portanto uma capacidade política dos homens na sociedade.
Logo que Proudhon empreende responder à verdadeira consulta que lhe dirigem os operários de Rouen, distingue a análise da situação e as respostas que lhe podem trazer.
Examinando a situação não somente política mas também social dos que o questionam, Proudhon propõe em 1864 análises que parecem ter relação com a nossa actuliadade.
Verifica em primeiro lugar uma crise da representação. Existe um corte radical entre a élite e a classe operária ou as massas. E isto vale mesmo para esta parte da élite que forma a Oposição ao Império. Foi precisamente a questão das candidaturas operárias e da abstenção operária na sua ausência que foi colocada a Proudhon. Esta separação radical da qual Proudhon como mais tarde Sorel, faz-se apologista transformando a necessidade em virtude, mostra que a massa não é em realidade representada. Proudhon escreve vigorosamente: “A multitude não podia figurar sobre a cena política: não lhe pertence”. Precisando a sua crítica, acrescenta que existe discrepância entre o País e o Estado; crítica banal, e que não deve evidentemente nada a Mauras, no quadro duma democracia representativa do qual é, por natureza, o risco maior e permanente: “A nação na sua imensa maioria não pode dizer-se representada”. A abstenção seja ela explicitamente reivindicada ou não, é, aos olhos de Proudhon, a manifestação deste facto. Há uma dúvida sobre a representatividades e por consequência a legitimidade dos representantes que são constitucionalmente aptos a querer pela nação.
É aí que intervém a ideia proudhoniana de “capacidade política”. Logo que, sob o Império, o povo vota pela oposição legal, Proudhon não vê a concentração ao regime parlamentar de tipo orleanista contra o autoritarismo imperial mas a expressão de qualquer coisa bem mais profunda: apercebe-se “que o povo operário… pela primeira vez ia falar no seu próprio e privado nome…” Não se trata simplesmente de aí ver um uso da capacidade legal que o Império tinha restabelecido integralmente, mas mais a descoberta progressiva duma capacidade real, a que permite tomar a palavra e exprimir pelo menos uma vontade própria. A resposta de Proudhon em termos de “capacidade política” permite lutar contra a inexistência social de si.Isto é o resultado da não representação política autónoma e própria da classe operária. Uma representação própria é a condição tanto como o efeito duma tomada de consciência de si e da sua vontade própria. Falando dos operários que têm nas eleições e contrariamente aos camponeses, abandonado o Império e votado pelos burgueses, Proudhon escreve: “…era digno deles de lhes dar (aos camponeses) o exemplo, declarando que no futuro não entendiam restabelecer que eles próprios. “ Deste modo não é a única actividade económica que faz existir uma classe mas também a sua capacidade política, porque ela dá uma visibilidade social aos interessados, às vontades e aos valores dum grupo. Esta visibilidade social não pode resultar que do facto de trazer ideias e vontades sobre o terreno político e saindo de qualquer modo do enterro na sociedade civil. Não se pode ser plenamente ele próprio que tendo a sua própria representação e a sua própria expressão política. Estas não são mais que a capacidade de intervir directamente e sem intermediário nem representação na vida política. A “capacidade política” não é portanto pensável se não estamos convencidos que os homens têm não somente um direito de agir sobre a sociedade mas que existe uma possibilidade de resultados. Proudhon, desconfiando do Estado, em que a anarquia positiva dava tanto de capacidade à sociedade civil, reabilita aqui um espaço próprio de expressão não somente das ideias mas vontades sobre a sociedade, espaço que é portanto tão pouco que seja o do Estado.
As respostas de Proudhon aos operários que o tinham interrogado em 1863, apresentam o mesmo grau de interesse e de actualidade que a análise que mostra uma classe de homens desapossados da sua identidade social colectiva falta duma verdadeira representação, quer dizer aquela que se exerce por si próprio sem intermediário?
É preciso examinar antes de tudo as condições concretas da capacidade política segundo Proudhon. Possuir a capacidade política não é somente ter “um zelo ardente pela Cidade”. Existe segundo ele três condições essenciais para poder intervir na vida e as orientações da sociedade pois que é a ela que deve visar a capacidade política e não a ser uma simples virtude cívica ou uma moralidade individual republicana…
É necessário que haja uma classe social tendo consciência dela própria; quer dizer que ela deve ser distinta e separada das outras. Proudhon não quer que se veja um pensar de ódio e de antagonismo ou de guerra civil. “A separação que recomendo é a condição mesma da vida. Distinguir-se, definir-se, é ser; o mesmo que confundir-se e se absorver, é perder-se. Fazer cisão, uma cisão legítima, é o único meio que temos de afirmar o nosso direito e como partido político de nos fazer reconhecer”. Poderíamos examinar à luz destes propósitos a questão contemporânea da representação dos desempregados ou a fortiori a dos excluídos ou ainda dos que chamamos o quarto mundo, quer se trate de representação política ou sindical.
A segunda condição é que deve haver uma ideia. Proudhon entende por isso, e num sentido forte, ter a noção da sua própria constituição, ou a noção das leis e das condições da sua existência. Para ele a classe operária possui desde há muito esta “ideia” na mutualidade ou mutualismo.
Por fim é preciso ser capaz de tirar conclusões práticas sobre a organização da sociedade que sejam próprias a esta classe e que permitam eventualmente desenvolver uma nova ordem política.
Para alguns estas condições parecem de bom senso, mas podemos perguntar o que pode ser um século e meio mais tarde. Que transposição é possível? Podemos reencontrar neste fim de século e face ao “fatalismo económico” as condições da capacidade política que Proudhon tinha resgatado no meio do século precedente, quer dizer as condições duma acção na e sobre a sociedade?
Se perguntarmos “que classe social”, encontramo-nos sobretudo diante duma vasta classe média central. Pareceria difícil de encontrar o grupo social mobilizador e portador duma capacidade política diferenciada e sobretudo separada das élites políticas suportadas por esta vasta classe média. As mutações do trabalho tiveram consequências sobre a classe operária e sobre o conjunto da sociedade. Será aí que encontraremos o grupo separado e consciente dele próprio que Proudhon ajudou noutra ocasião a tomar consciência dele próprio? O sindicalismo revolucionário que deve tanto a este espírito de “capacidade política” forma ainda este grupo separado?
Se nos perguntarmos “que ideia?”, é preciso lembrarmo-nos que a única expressão do sufrágio universal não chega para Proudhon para a constituir. Interpelando o “Povo soberano”, dizia-lhe à sua maneira assaz directa: “ Sim Majestade, tu és o número e a força, e só tu tens o número e a força donde resulta já que tu possuis um direito que é justo que tu exerças. Mas tu também deves ter uma Ideia, da qual tens um outro direito, superior ao primeiro…Enquanto fores número e força sem ideia, não serás nada. A soberania não te pertence; os teus candidatos serão desdenhados e tu permanecerás animal de carga.” É portanto importante interrogar sobre a mutualidade hoje, e de examinar as condições sem as quais ela pode constituir um fermento de renovação ou soluções concretas no período actual.
Se nos perguntarmos “que conclusões práticas?”, a ideia de contrato cívico e mais geralmente a cidadania alargada ao mundo económico, ideia já antiga, são uma das vias a explorar. Proudhon sublinhava a relação íntima que existe entre igualdade política e igualdade económica: “Do princípio, incontestável numa sociedade e um Estado democrático, que o direito eleitoral é inerente ao homem e ao cidadão, deduzem consequências, ou se preferirmos, corolários do maior interesse. É antes de tudo que a igualdade política uma vez declarada, posta em prática pelo exercício do sufrágio universal, a tendência da nação é à igualdade económica. Toda a história o confirma: colocar em princípio a desigualdade das fortunas, e a desigualdade política será a consequência; Que nos lembremos: entre a igualdade ou o direito político, e a igualdade ou o direito económico, existe uma íntima relação, de modo que se um dos dois for negado, o outro não tardará a desaparecer.”
Examinando as soluções de ontem para a crise económica e nomeadamente os ateliers nacionais, símbolo mesmo aos olhos dos liberais deste voluntarismo e esta vontade de organização impotentes e nefasta que eles denunciam ainda no século seguinte sob o nome de “construtivismo”, ou ainda percorrendo o que Proudhon podia aconselhar a todos os seus correspondentes, não se trata tanto de encontrar no passado soluções perdidas ou esquecidas. As questões de hoje assinalam-nos talvez problemas radicalmente novos que os que podíamos esperar tratados com o espírito de 48 ou mesmo com o socialismo dos reformadores do meio do décimo nono século. Deste ponto de vista, Proudhon não tem talvez mais soluções concretas para nos dar que os outros. Parece-nos no entanto que a ideia de “capacidade política” guarda uma frescura e uma actualidade permanente. Para além de certos aspectos técnicos que podem estar datados, tem este mérito fundamental de relembrar que para além da existência e da liberdade individual a que os liberais permanecem mais sensíveis, existe uma existência e uma liberdade colectiva sem as quais a liberdade e a vida individual são elas próprias precárias. É a experiência da classe operária tal como Proudhon em particular a compreendeu e a pôs em prática. A “capacidade política” não é somente uma capacidade cívica que se adiciona a uma capacidade individual como liberais e republicanos poderiam crer. Compromete bem mais que o que há de existência duma classe ou dum grupo de homens, e portanto os membros que a compõem. Esta problemática é perfeitamente contemporânea. Um dos aspectos da crise da sociedade portuguesa diante das modificações do trabalho, a mundialização da economia e as transformações do capitalismo, é bem um problema de “capacidade política” para aqueles que suportam os efeitos destas evoluções. A “capacidade política” é esta capacidade de afirmação de si que permite ainda querer na e sobre a sociedade, compreendida em situações de crise e de destruição do vínculo social.

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