terça-feira, novembro 29, 2005

O SOCIAL E A ESTRUTURA IDEOLÓGICA NO PENSAMENTO DE MARX E ENGELS.

A teoria marxista defende que em toda a sociedade existem três níveis: económico, jurídico-político e ideológico. Estes níveis articulam-se entre si de um modo complexo, sendo o económico o determinante em última instância. Se empregarmos a metáfora arquitectónica de Marx e Engels (o edifício como um alicerce ou infraestrutura e uma superestrutura que se constrói sobre esse alicerce), diremos que a ideologia pertence àsuperestrutura. Mas a ideologia não é apenas uma instância da superestrutura, desliza também pelas outras pontas do edifício social, é como o cimento que assegura a coesão do edifício. A ideologia firma os indivíduos nos seus papeis, nas suas funções e nas suas relações sociais.
A ideologia impregna todas as actividades do homem, incluindo a prática económica e política. Está presente no modo como ele encara as obrigações da produção, na ideia que fazem os trabalhadores do mecanismo da produção. Revela-se nas atitudes e nos juízos políticos, no cinismo, na honestidade, na resignação e na rebelião. Governa os comportamentos familiares dos indivíduos e as suas relações com os outros homens e com a natureza. Está presente nos seus juízos acerca do "sentido da vida", etc.
A ideologia está presente a tal ponto em todos os actos e gestos dos indivíduos que chega a ser indiscenível da sua "experiência vivida", pelo que toda a análise imediata do "vivido" está profundamente marcada pela acção da ideologia.
Quando pensamos estar perante uma percepção obscura e desnudada da realidade ou uma prática pura, o que acontece, na verdade, é que estamos frente a uma percepção ou a uma prática "impuras", marcadas pelas estruturas invisíveis da ideologia. Como não apreendemos a sua acção, tomamos a percepção das coisas e do mundo como percepções das "coisas em si", sem nos apercebermos de que também esta percepção sofre a acção deformadora da ideologia.
O nível ideológico é, portanto, uma realidade objectiva indispensável à existência de qualquer sociedade, mesmo da sociedade comunista.
O que constitui este nível? Incluem-se nele dois tipos de sistemas: os sistemas de ideias - representações sociais (ideologias em sentido restrito) e os sistemas de atitudes -comportamentos sociais (costumes).
Os sistemas de ideias - representações sociais abrangem as ideias políticas, morais, religiosas, estéticas e filosóficas dos homens de uma dada sociedade. Estas ideias surgem sob a forma de representações diversas do mundo e do papel do homem dentro dele. As ideologias não são representações objectivas, científicas do mundo, mas representações repletas de elementos imaginários; mais do que descrever uma realidade, exprimem desejos, esperanças, nostalgias. As ideologias podem conter elementos de conhecimento, mas nelas predominam os elementos que têm uma função de adaptação à realidade. O homem vive as suas relações com o mundo dentro de uma ideologia. É ela que lhe adequa a consciência, atitudes e condutas às tarefas e condições próprias da existência. Por exemplo: a ideologia religiosa que exalta o sofrimento e a morte fornece aos explorados um tipo de representações que lhes permita suportar melhor as suas condições de existência.
Os sistemas de atitudes - comportamentos são constituídos pelo conjunto de hábitos, costumes e tendências para reagir de uma determinada maneira. É mais fácil uma pessoa modificar a sua forma de representar o mundo, ou seja, a sua ideologia em sentido restrito, do que mudar as suas formas habituais de viver e resolver os problemas vitais. É por isso que entre as ideologias em sentido restrito e os sistemas de atitudes - comportamentos nem sempre há uma relação de identidade. As relações dialécticas que se estabelecem entre ambos podem ir desde a identidade total ou parcial até à contradição. É importante considerar estes sistemas de atitudes - comportamentos, porque através deles se exprimem determinadas tendências ideológicas. Assim, por exemplo, certos costumes, certos "hábitos de trabalho", certo "estilo de direcção e mando", podem ser contrários à ideologia do proletariado, mesmo quando se revelem em militantes ou dirigentes socialistas. Certos hábitos de trabalho e de mando, quando se desenvolvem, podem tornar-se signos de distinção social, convertendo-se em tomadas de posição (conscientes ou não) na luta de classes ideológicas. O comportamento tecnocrático ou burocrático de alguns dirigentes marxistas é um sintoma da penetração da ideologia burguesa nas fileiras da classe operária.
Vimos que tanto numa sociedade sem classes como numa sociedade de classes a ideologia tem como função assegurar uma determinada relação dos homens entre si e com as suas condições de existência, adaptar os indivíduos às tarefas fixadas pela sociedade. Numa sociedade de classes, esta função é dominada pelo modo como os homens estão divididos em classes. O papel da ideologia consiste em assegurar a coesão dos homens na estrutura geral da exploração de classe: assegurar o domínio de uma classe sobre as outras, fazendo com que os explorados aceitem as suas próprias condições de exploração, como algo fundado na "vontade de Deus", na "natureza" ou no "dever moral", etc.
Mas a ideologia não é uma "mentira piedosa" inventada pelos exploradores para enganar os explorados; ela serve também aos indivíduos da classe dominante para legitimar enquanto tais, fazendo passar por desejada por "Deus", "fixada pela natureza" ou pelo "dever moral" o domínio que exercem sobre os explorados. Serve de laço de coesão social, identifica-os como membros de uma mesma classe, a classe dos exploradores. A "mentira piedosa" da ideologia tem, assim, um duplo papel: exerce-se sobre a consciência dos explorados, para que aceitem como natural a sua condição de explorados; e, sobre os membros da classe dominante, para legitimar a exploração e o domínio.
As ideologias, como todas as realidades sociais, só são inteligíveis através da sua estrutura. Da ideologia fazem parte representações, imagens, sinais, etc., mas não são estes elementos considerados isoladamente que constituem a ideologia. Éo seu sistema, o modo como se combinam, que lhes dá sentido; é a estrutura que determina o seu significado e a sua função. Porque é determinada pela sua estrutura, a ideologia subsiste como uma realidade para lá das vivências subjectivas deste ou daquele indivíduo. A ideologia não se confunde com as formas individuais em que é vivida, podendo por isso ser objecto de um estudo objectivo. É por isso que podemos falar da natureza e das funções da ideologia e estudá-la.
O estudo objectivo da ideologia revela-nos que, apesar de ser uma realidade difusa em todo o corpo social, ela pode ser dividida em regiões particulares, centradas sobre diferentes temas. É assim que distinguimos regiões relativamente autónomas no seio do nível ideológico: ideologia moral, religiosa, jurídica, política, estética, filosófica, etc.
Nem todas estas regiões existiram sempre na história. Prevê-se que algumas desaparecerão ou se confundirão com outras no decurso da história do socialismo e do comunismo. Consoante as sociedades, as classes sociais que nela existem, assim esta ou aquela região ideológica domina as outras. Por exemplo: Marx e Engels indicam-nos que a ideologia religiosa exerceu uma influência dominante em todos os movimentos de rebelião camponesa do século XIV ao século XVIII, e até em certas formas primitivas do movimento operário. A mesma ideologia religiosa parece desempenhar um papel dominante na história da liberdade de algumas raças oprimidas, como a dos negros nos Estados Unidos.
Em cada uma das regiões anteriormente assinaladas a ideologia pode existir sob duas formas:
1. Forma mais ou menos difusa, mais ou menos inconsciente, ou ideologias práticas;
2. Forma mais ou menos consciente, reflexiva, sistematizada, ou ideologias teóricas.
Sabemos que podem existir ideologias religiosas com regras, rituais, etc., sem que possuam uma teologia sistemática; o aparecimento de uma teologia representa um maior grau de sistematização teórica da ideologia religiosa. O mesmo acontece com as outras regiões da ideologia. Elas podem existir sob uma forma não teorizada, não sistemática, sob a forma de costumes, tendências, gestos, etc. ... ou, pelo contrário, sob uma forma sistematizada e reflexiva, como "teoria" moral, "teoria" política, etc. A forma superior de teorização da ideologia é a filosofia, no sentido tradicional do termo. Convém esclarecer que estas "ideologias teóricas" podem incluir elementos de tipo científico, mas porque estes elementos estão integrados numa estrutura de tipo ideológico, permitem apenas um conhecimento parcial, deformado ou limitado pela situação que esses elementos ocupam na estrutura.
Não existem apenas regiões ideológicas, existem também diferentes tendências ideológicas.
Ao afirmar que "as ideias dominantes são as ideias da classe dominante", Marx abria-nos o caminho para o estudo das diversas tendências ideológicas. Assim como há classes dominantes e classes dominadas, também as tendências ideológicas são dominantes, ou dominadas.
Portanto, no interior do nível ideológico em geral, podemos registar diferentes tendências ideológicas que exprimem as "representações" das diferentes classes sociais: ideologia burguesa, pequeno-burguesa, proletária.
Mas não devemos esquecer que nas sociedades capitalistas "as ideologias pequeno-burguesas e proletárias são ideologias subordinadas, e que sempre triunfam sobre elas, mesmo nos protestos dos explorados, as ideias da classe dominante". Esta verdade científica é de importância primordial para compreender a história do movimento operário e a prática dos comunistas. Que quer dizer Marx quando afirma que a ideologia da classe burguesa domina as outras ideologias e em particular, a ideologia proletária? Quer dizer que o protesto operário contra a exploração se processa dentro da estrutura do sistema e, em grande medida, dentro das próprias representações e noções de referência da ideologia dominante burguesa. Por exemplo: a luta operária centrada na obtenção de maior poder de compra. A pressão da ideologia burguesa é de tal ordem que a classe operária não pode, por si só, libertar-se radicalmente dessa ideologia. Mesmo ao exprimir os seus protestos e as suas esperanças utiliza elementos da ideologia burguesa, continuando a estar dela prisioneira, aprisionada na sua estrutura dominante. Para que a ideologia operária expontânea se transforme ao ponto de se libertar da ideologia burguesa, é necessário que receba do exterior o concurso da ciência, transformando-se sob a influência deste elemento novo, radicalmente distinto da ideologia.
Vimos que o nível ideológico é constituído pelo conjunto de representações e comportamentos sociais. Para o marxismo, o fio condutor que explica estas ideias e comportamentos é a forma como os homens produzem os bens materiais, quer dizer, a estrutura económica da sociedade. Não são as ideias que ditam o comportamento dos homens, mas a forma como estes participam na produção de bens materiais que determina os seus pensamentos e acções.
Mas afirmar que a economia determina as ideias dos homens implicará reduzir o nível ideológico a um simples reflexo do nível económico? O marxismo não defende que o ideológico se reduz simplesmente ao económico. Pelo contrário, afirma que o nível ideológico tem um conteúdo próprio e leis próprias de funcionamento e desenvolvimento. Como dissemos acima, este nível é constituído por diversas tendências ideológicas (burguesa, pequeno-burguesa, proletária, etc.), em que uma delas domina as outras e determina, em certa medida, as suas formas de existência. Por outro lado, a região dominante (religiosa, moral, filosófica, etc.) não é determinada directamente pela economia, mas pelas características próprias da estrutura ideológica de uma dada sociedade. Conforme as tradições religiosas ou laicas de uma sociedade, assim a ideologia dominante burguesa se manifestará através de expressões religiosas, morais ou filosóficas. A classe dominante sabe sempre utilizar a linguagem que lhe permite uma maior comunicação com as classes dominadas, conferindo assim um conteúdo de classe à matéria ideológica que lhe oferece a tradição, os hábitos e os costumes dessa sociedade.
O nível ideológico não é um simples reflexo do nível económico, mas antes uma realidade que possui uma estrutura própria e as suas próprias leis de funcionamento e desenvolvimento (matéria ideológica preexistente, tendência dominante e sua forma de actuação sobre as tendências subordinadas, etc.). A determinação económica actua sobre esta estrutura no seu conjunto. Temos assim que o produto ideológico éo resultado de dois tipos de determinações: uma que é inerente àprópria estrutura ideológica e outra que lhe é exterior (jurídico-política e económica). A determinação por parte da economia não é directa, mecânica, mas complexa, estrutural.
Vejamos o que diz Engels a este respeito numa carta dirigida a Conrad Schmidt, de 27 de Outubro de 1890:
"No que se refere às regiões ideológicas ... a religião, a filosofia, etc., são compostas de um resíduo que vem da pré-história e que o período histórico encontrou diante de si e aproveitou".
Quer dizer, cada novo período histórico (marcado por uma nova determinação económica) depara com um material deixado pelo período histórico anterior e é sobre esse material que vai actuar a nova determinação económica.
Mas não se trata apenas de material ideológico, trata-se também, sobretudo no caso de ideologias que vieram a adquirir um grau elevado de sistematização, de todo um "aparelho" que permite desenvolver esse material: bibliotecas, ficheiros, trabalhos de investigação, estrutura educacional, etc. A pobreza ou a riqueza filosófica de um país não dependem directamente da riqueza ou da pobreza económica, mas da pobreza ou riqueza do material e do aparelho filosófico deixado pelo período anterior.
Engels acrescenta, na carta já citada:
"A economia nada cria directamente por si própria, limita-se a determinar o tipo de modificações e de desenvolvimento do material intelectual existente; mais ainda, muitas vezes "faz" isto indirectamente, pois são os reflexos políticos, jurídicos e morais, que exercem uma acção mais directa sobre a filosofia".
Se insistimos na autonomia relativa da estrutura ideológica relativamente à estrutura económica, não é pelo prazer de dar precisões teóricas, mas porque o esquecimento deste facto tem graves implicações políticas.
Muitos críticos do marxismo pretendem negar a sua validade afirmando que Marx se enganou no que toca à classe operária: "à medida que o capitalismo se foi desenvolvendo, a classe operária - em vez de crescer e amadurecer em termos de consciência de classe - foi-se aburguesando e adaptando cada vez mais ao sistema". Se o marxismo sustentasse que a consciência de classe ou a ideologia são um simples reflexo das condições económicas, poderia, sem dúvida, afirmar-se que Marx se tinha enganado. Mas o marxismo defende uma coisa muito diferente: as condições económicas criam as condições materiais objectivas (concentrações de grandes massas de trabalhadores nos centros urbanos; divisão técnica e organização do trabalho dentro das fábricas, o que cria entre os trabalhadores hábitos de cooperação e disciplina; mobilidade territorial da mão-de-obra, o que lhes abriu novos horizontes, etc.) que servem de base à tomada de consciência de classe do proletariado. Mas estas condições não criam nada directamente. Para que o proletariado descubra os seus verdadeiros interesses de classe, para que adquira uma consciência de classe proletária, é necessária a intervenção de factores extra-económicos; é necessário por a teoria marxista nas mãos do proletariado, único instrumento capaz de libertar a tendência ideológica proletária das deformações reformistas e economicistas, produtos da ideologia burguesa dominante.

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