quarta-feira, novembro 23, 2005

PARA UMA POESIA LIBERTÁRIA Reflexões sobre "A Ideia" de um poema

Desconheço a existência duma poesia libertária. Se a luta dos anarquistas do ponto de vista social e económico é rica, porque extensa e significativa, em termos poéticos tem-se pautado por uma certa miserabilidade.
Refiro-me concretamente ao que se tem feito a partir dos anos 40, fundamentais também para a renovação da arte nas suas múltiplas facetas.
Relativamente importante será o de estabelecer uma concreta poética específica; Aquilo a que os Antigos chamavam Arte Poética. Digo relativamente importante porque a arte poética naquilo a que poderíamos chamar História da Poesia não desempenhou mais do que uma norma geral de actuação.
No entanto é importante definir alguns tópicos em termos teóricos e práticos. Daí que eu apresente alguns poemas que considero de teor libertário e que podem suscitar um diálogo crítico.
O nosso objectivo, é, após acrescentar estes pequeno trabalho, poder posteriormente continuá-lo com outros poemas, que apresentem a poesia libertária no seu carácter intimista e universalista: é o que está já presente no seguinte texto.

1. ARTE POÉTICA

A que juízo chegaremos
Se a única promessa
Que vale a pena
É a liberdade?
Sei que não sou deus
Mas a poesia
Tem que ser impessoal
Para ser eterna
Não importa
Que a morte nos surpreenda
No verso ler-se-à o poema
Não afastes o amanhã
O poeta é o confidente
A poesia a confidência

(1983)

Não há uma poesia que especificamente se bata pelos principais temas libertários. Serve de prova aquilo que A Ideia tem publicado no domínio poético ao longo destes anos. Será então importante deixar as cretinices de lado e utilizar esta arma em prol do movimento libertário. É neste sentido que se inscreve o poema que a seguir se apresenta:

2. ESPERO PELO DIA

Espero pelo dia
Em que os operários cheguem mais tarde
ao trabalho
Ou que saiam mais cedo
E que sintam pelo menos uma vez
O desejo de não trabalhar mais.

Espero pelo dia
Em que todas as pessoas
Deixem de ler jornais e partem os televisores
e que ensinem às gerações futuras
Os meios de evitarem os veículos mais grosseiros
da mentira.

Espero pelo dia
Em que os supermercados
Abrirão as suas portas
E distribuirão gratuitamente as suas mercadorias
por toda a gente
que ajudaram na sua produção
ou que simplesmente delas necessitam.

Espero pelo dia
Em que à primeira oportunidade
todo e qualquer subordinado parta as ventas
ao seu chefe
e que compreenda nessa altura
que não bate num ser humano.

Espero pelo dia
Em que o estado seja abolido
e com ele o seu cão de guarda - a polícia
e todas as forças militares
e que desta maneira
a felicidade seja possível

Espero pelo dia
Em que todos os assalariados
Atirem a sua folha de vencimento
À cabeça do caixa
E que cada um
Seja o seu próprio e único senhor

Espero pelo dia
Em que a divisão social do trabalho
seja abolida
em que não haja
função de senhor e função de escravo
e em que os intelectuais
não sejam o exército de reserva da burocracia.

Espero pelo dia
Em que os políticos
tenham o seu lugar assegurado
nas salas de circo
como os palhaços do espectáculo ideológico
e onde as crianças
poderão atirar-lhes amendoins livremente.

Espero pelo dia
Em que todos os operários
rasguem o seu cartão do sindicato
e onde cada um disponha livremente
de si próprio
sem depender de quem quer que seja.

Espero pelo dia
Em que a família
não seja mais a aprendizagem de papel
e condicionamento da submissão
o caminho do recalcamento
a destruição sistemática da criatividade infantil.

Espero pelo dia
Em que a procura da felicidade
seja a procura do vivido autêntico
do não falsificado
do não invertido
do não sacrificado
A especifidade humana
supõe a organização colectiva harmonizada
das paixões individuais.

Espero pelo dia
Em que a construção da sociedade
se faça em moldes internacionais
liquidando os preconceitos imbecis dos nacionalismos
e dos regionalismos
e onde as diferenças não criam mais barreiras.

Espero pelo dia
Em que o esforço de perfeição
seja dirigido não para as frases
mas para os actos
onde não haja nem bem falantes
nem oradores com efeitos de estilo
e onde as palavras
não mais sirvam para dissimular
mas que conduzem a verdade
a resultados práticos.

Espero pelo dia
Em que este poema
não seja considerado político
mas social e total
Em que o mundo sendo diferente
será melhor
Em que o comportamento humano
e a nossa percepção do real
serão alteradas pela revolução permanente.

Canto e luta pela reinversão do mundo invertido. (1983)

Não há poesia livre sem movimento libertário. Fundamentalmente a poesia portuguesa dos últimos 20 anos, tem de certa maneira, retornado ao estilo Barroco. Priveligia-se a forma em detrimento do conteúdo... moda poética de 89, é a palavra rebuscada, a de um sentimentalismo piegas, em suma idealista, na sua forma liberal, o que também está de acordo com as modas políticas vigentes. Neste sentido a poética libertária, tem uma palavra de revolta que pode tocar o absurdo realista.

3. AMANHÃ QUANDO FOR TER CONTIGO

Amanhã quando for ter contigo
os políticos da nossa cidade
serão enviados para o Júlio de Matos
Amanhã quando for ter contigo
Veremos os chimpanzés do jardim zoológico
passearem no Rossio
Os polícias serão enviados
a fazer cursos de reciclagem nos jardins-escolas
Amanhã quando for ter contigo
Os camiões do exército
serão postos à disposição do ministério dos transportes
para reforçarem as frotas da carris e da rodoviária
A associação dos touros
promoverá uma greve contra a violência
à entrada da praça do Campo Pequeno
Amanhã quando for ter contigo
elementos da polícia de intervenção
serão espancados por civis no Estádio Nacional
Os magistrados serão acusados por réus
os alunos darão aulas aos professores
os contribuintes irão cobrar impostos às finanças
Os mortos abandonarão os cemitérios
e reinvindicarão o direito à vida
Amanhã
porque vou ter contigo

(1983)

A poética libertária sofrerá influências nítidas de tópicos de certos movimentos libertários contemporâneos, como seja por exemplo, o existencialismo. Isso não será, de toso prejudicial, pelo contrário.
Não se busca uma nova linguagem em termos linguísticos, senão voltaríamos ao problema da primazia da forma. O que se pretende é num tom directo, objectivo, universal, (e tudo isto não excluiu, como tentei dizer à pouco, o pessoal, o íntimo, o único) dar um outro tratamento às questões que constituem o universo libertário e isso pode ser visualizado, até nas mais pequenas coisas.

4. RESPIRAR

Respiro a terra
a palavra e o acto
o momento de uma vida
e a lembrança
que não precisa de me ocorrer
O poeta é o ser
que deve fidelidade à palavra
por isso
o acto poético
não se confunde
com o acto político

(1983)

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